Rabiscos humanos hesitantes, seres vagos perdidos na paisagem, amortecidos pelo medo de existir. Elas estão ali, se movem em um cenário de papel riscado, uma vasta folha em branco pontilhada por algaravias de lápis, daquelas dispersivas, traçadas a esmo, quando estamos em estado de liberdade, entregues ao desejo mais imediato, universal, de expressão. A peça é A Primeira Vista, de Daniel MacIvor (A beautiful view, no original – expressão bem mais forte), novo cartaz do Teatro Poeira.

 

O cenário, de Marcos Chaves, é deslumbrante, mais do que adequado ao texto. Funciona com um impacto diabólico para a direção de Enrique Diaz, uma orquestração minuciosa deste novo teatro proposto por Daniel MacIvor. É coisa para gente antenada, em sintonia com o andamento do século: quer dizer, é anti-teatro, não-teatro ou arte performática, uma senda estética arquitetada para a explosão sensível de duas artistas intérpretes do mundo de hoje. Simplesmente imperdível. A proposta não é a apresentação de um drama – quer dizer, uma ação dramática dotada de sentido, principio, meio e fim, com uma lição transparente no final; a rigor, o que se vê é uma forma de anti-ação, executada por vitrines humanas eloqüentes, suportes existenciais hábeis para traduzir algo do que acontece ao nosso redor hoje, sob um tom de cumplicidade explícita com a platéia, gente feita da mesma matéria, pura perplexidade e hesitação diante do mundo.

 

Elas são duas mulheres do nosso tempo, duas grandes atrizes, artistas de absoluta grandeza, em uma cena de intensa contemporaneidade. Drica Moraes e Mariana Lima, sob contagiante pulsação humanista, humor cortante e sofisticada expressão de arte, nos convidam a flertar com a época delirante vivida por nosso ocidente: uma época em que somos a forma mais nobre de viver, mas em que persistimos entregues ao mais cego transe cotidiano, como se fôssemos apenas pedaços desejantes de afeto cego, irrelevantes nômades existenciais, órfãos de toda a metafísica. “Nada é suficiente” é uma expressão recorrente do texto, lema de vida ambíguo de uma das mulheres, Lane no original. Ao longo do espetáculo, através de fiapos de situações e de enfrentamentos sentimentais a um só tempo corriqueiros e inusitados – exemplos áureos da liberdade de vida de hoje – a platéia tem a rara oportunidade de contemplar duas atrizes em estado de criação, uma das raras formas do estado de graça acessíveis aos mortais. É, elas são divinas – não perca.

 

Drica Moraes, épica, é mais solar, exuberante, expansiva e transgressiva – irradia a mais inquieta e intensa energia do ato de viver, um jorro de luz pura em comunhão com a capacidade de criar, etérea e sinuosa ninfa, filha do espírito histrião do palco, um ato humano de desafio permanente diante do sentido de tudo. Mariana Lima, lírica, é mais telúrica, mais densa, aterrada com o abismo dos sentimentos humanos, sacerdotisa dos ritos da dor e da percepção da alma dilacerada, materialização requintada da sombra existencial sublime de todos nós. São opostos complementares, um pouco um balé expressivo perceptível nos gestos, na expressão dos rostos, nas escolhas dramáticas de cada uma em cena. O jogo aparece no figurino de Antônio Medeiros, autêntica roupa de arte que fala das escolhas e do gosto da sociedade atual sob um viés estético; reúne os sapatos entre o tênis e a botina ao jeans e às camisetas estilosas, sob jaquetas do tipo esportivo, aliás uma peça de roupa transformada em imagem-ícone da liberdade desde a juventudes transviada.

 

Falar em não-teatro aqui é importante. No texto, duas mulheres imprecisas em tudo, esboços de gente, oscilam diante das possibilidades várias do dia-a-dia, desde o emprego ao amor, sem falar no trabalho, na diversão, no olhar para os outros, para a vida e a morte, e, afinal, no medo de existir e de ser. Medo de existir e de ser livre diante destas experiências existenciais novas, ocidentais, disponíveis hoje no dia-a-dia, enfrentadas primeiro pelos homens, agora pelas mulheres. Esta ação-não-ação, uma demonstração sensível, um jogo cerrado, acontece como narração e como contracena, interpretação, apresentação e performance, incorpora a presença do público, instado reiteradas vezes a transitar de voyeur a cúmplice, interlocutor e parceiro. Há inclusive um precioso número de platéia em que cada espectador precisa escolher o seu foco de atenção, pois as atrizes sustentam, em paralelo ousado, ações simultâneas excludentes. Este acontecimento teatral, uma forma nova do palco, um fluxo de arte intenso, é viabilizado também por uma arquitetura luminosa notável (iluminação de Maneco Quinderé) e graças a uma exploração hábil dos sons – ruídos, músicas, execução de números musicais. A música (Fabiano Krieger e Lucas Marcier) se dá sob um tom de cumplicidade, expansão da atmosfera gerada pela música popular, que foi capaz de levar os sujeitos comuns, desde o século passado, a uma rotina de expressão sentimental jamais vista na História.

 

Portanto, a conclusão é simples: não perca, não deixe de ir ver, em especial se você sobrevive cercado de perplexidade, olhos arregalados diante da vida, dispostos a tentar perceber a existência – ou não – de uma mecânica da paisagem em que nos foi dado o direito de desfilar entregues à nossa própria alquimia interior, como se fôssemos donos do mundo. Ou mais – corra para ver, se a sua arte é o palco, a cena que sabe da ilusão de tudo, sabe do lancinante vazio, impossível de descrever, que é a vida, aquela paisagem bonita construída pelo olhar mais singelo dos frágeis seres humanos, entregues ao desvario de ser. Afinal, trata-se apenas de uma brincadeira requintada de duas atrizes fascinantes, cujo vôo é traçado em conjunto com uma equipe de seres devotados às ousadias maiores de sua arte. Uma gente interessada em imprimir sua marca nos rumos do mundo.