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Uma nova dinâmica em dramaturgia está em discussão: a telenovela Avenida Brasil. Além de arrebatar o país de norte a sul, a obra, de autoria de Joao Emanuel Carneiro, propõe um desenho diferente para o fluxo da ação no seriado padrão convencional da tevê brasileira. Talvez muito do sucesso do programa venha daí – pois há uma forma de condução da ação dotada de extrema habilidade, eficiente para cativar a emoção e a razão do telespectador. A este trunfo, somam-se os vários acertos da produção, da escalação do elenco à edição de imagens. Assim, mesmo figuras como eu própria, com o tempo preso nas apresentações de teatro, fui fisgada e passei a acompanhar cada capítulo com atenção, milagre possível com a internet.

 

Há, portanto, um produto novo no ar e é importante dimensionar o seu contorno. Este texto não pretende esgotar o assunto, mas apenas fazer um inventário de pontos de referência de extrema importância. Para tanto, é preciso situar a técnica de dramaturgia no que diz respeito à trama e ao desenho de personagens, bem como a direção e o desenho artístico das cenas. De saída, vale constatar que estamos diante de um fato histórico: há uma autêntica revolução em curso nesta novela. O exame dos itens apontados será feito aqui a partir da fruição simples de capítulos exibidos na TV, sem quaisquer audições especiais e sem a leitura dos textos.

 

O primeiro tema a considerar – o mais importante – é a escritura do texto da novela, o tratamento dispensado à trama. O assunto escolhido – a vingança – descartado o seu valor na história do melodrama e das diversões populares, é um tópico quente na violenta sociedade brasileira atual, pródiga em injustiças e barbáries, pobre em reconhecimento do valor transcendental do Direito. A vingança – ou a justiça, o que seria bem mais civilizado – é um clamor surdo e violento do Brasil hoje. Ainda assim, ele remete de imediato ao perfil dos indivíduos em sociedade: a vingança é um ato de sentimento e de vontade de uma pessoa. Portanto, envolve unidades reduzidas de expressão, focos, em lugar de grandes painéis.

 

Um primeiro mérito surpreendente da novela, em sintonia, portanto, com este tema, foi abrir mão do formato tradicional de estrutura de trama e subtramas de longa extensão e apresentação progressiva. Em lugar de uma saga linear, do tradicional caminho de trama principal enovelada em uma cerrada teia de subtramas, Avenida Brasil trouxe uma trama central nítida, mas densa, alentada como o logradouro que lhe empresta o nome.

 

Isto significa reconhecer uma dinâmica da ação bastante peculiar: o que se apresenta é sim a saga de um herói – neste caso uma heroína – dedicada a uma aventura de vingança e de resgate de sua identidade pessoal. Mas o foco é antes, mais a pessoa do que a trajetória. E assim a saga se esgarça, se apresenta como via de mão dupla e de trânsito pesado – quer dizer, a novela trouxe a interessante inovação da antitrama, uma estrutura espelhada em que cada elemento do fluxo principal conta com outro elemento de efeito contrário, a possibilidade até imediata de sua negação. Nestas condições, a progressão da trama deixou de ser linear e passou a contar com reviravoltas pontuais, surpreendentes, ainda que este desenho trabalhoso tenha sido usado demais, à exaustão e até de forma abusiva, com eventuais cochilos a respeito de fatos e situações. Um dos mais graves foi a reviravolta de Max contra Nina, quando ele decide segui-la da Marina da Glória até Ipanema, com sucesso, e penetra no apartamento de Jorginho para ouvir todo o plano dela contra ele e Carminha. Isto sem falar na questão da perda do controle das fotos, por Nina, e por lances de roubo de dinheiro de todo implausíveis.

 

Descontados os exageros, considere-se o efeito. Uma terminologia adequada para definir este tipo de tratamento da trama seria a designação de trama em labirinto, pois o espectador é levado a uma desorientação diante da condução dos fatos. Como cada capítulo adquire um peso enorme neste encaminhamento, funcionando como se fosse um nó ou uma rotatória, se poderia também definir este procedimento como “fuxico”, a pequena rodela artesanal de pano que se fecha sobre si. Assim, a forma nova da dramaturgia proposta por Avenida Brasil poderia receber o nome de trama de labirinto em fuxico.

 

Sem dúvida estes procedimentos exigem um quadro de atores dotados de imensa disponibilidade interpretativa; em certo grau, eles devem estar dispostos a variações de partitura razoáveis, cotidianas, atuar sem estabilidade interpretativa, um certo conforto que era bastante habitual no gênero novela e compensava a necessidade de dar conta de uma rotina de trabalho extenuante. Uma figura como o personagem de Santiago incomodou muita gente, ao passar de velhinho bondoso a malvado mor. E deixou um travo amargo para os fãs da novela – quase a totalidade dos fãs talvez – que sonhavam com a punição exemplar de Carminha como a maior vilã de todos os tempos.

 

Em tais condições, nunca serão suficientes as palavras disponíveis no idioma para comentar o desempenho de Adriana Esteves, um terremoto existencial absoluto, uma mestre artesã dos modos da face e da fala. Murilo Benício, na contenção e na hesitação contemplativa que escolheu para desenhar o jogador Tufão, foi um partner de alto desempenho. Tanto Debora Falabella quanto Marcelo Novaes também se aproveitaram de certa contenção, a primeira com excelência louvável, pois deveria passar um tom impermeável em momentos de enorme tensão. A construção de Max, inclusive, partiu de dados de composição física bastante fortes, um meio para driblar o malabarismo social e existencial que precisava cumprir na sua vida dupla. Ressalte-se ainda a extrema sensibilidade de Vera Holtz para definir um quadro de esperança em meio a condições de vida caóticas, a inteligência de Leticia Isnard no desenho afetado, mas humano, de Ivana.

 

Enfim, são muitos os detalhes relativos à interpretação que deveriam ser considerados. O elenco escreveu páginas históricas no trabalho em televisão. Mas o mais importante é destacar a qualidade da direção de ator. A opção por uma linha interpretativa mais solta, mais moderna, com espontaneidade e improviso, tornou as cenas coletivas deliciosas. Ao mesmo tempo, a direção de cena e a edição de imagem conquistou outro trunfo: uma notável forma de contar a história, em ondas circulares, closes, detalhamentos de imagens, trouxe um olhar novo para a tela, muito adequado ao que o desenho da trama propunha. A variação de luz e cor, do início sombrio para o final, foi uma escolha de rara beleza.

 

Diversos comentaristas falaram em cinema na tevê, o que parece ser um grande erro – a rigor, o que todos nós vimos foi o encontro da TV com a TV. Quer dizer, longe de decadente, o gênero novela encontrou aqui a sua forma excelente de expressão. E nós pudemos passear nossas sensibilidades brasileiras individualistas, carentes de heróis e de justiça por uma avenida de tons e sentimentos contraditórios, exaltados, surpreendentes. Um pouco como a nossa vida aqui. Só dá para desejar que seja também muito boa a próxima novela, pois, depois deste sucesso, por ela estará de novo passeando a alma do país.