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E os deuses nos deram Bibi

 
Um dia os deuses – todos os deuses – reunidos em assembleia olharam para a Terra de soslaio e sentiram uma pena absurda do Brasil. Rápidos, fizeram uma confraria, tomaram uma decisão fulminante, decidiram enfrentar nossos males e mandaram para cá, envolta na mais pura luz, uma deusa da humanidade absoluta. Bibi Ferreira nasceu.

 

De lá para cá, outra coisa ela não fez a não ser honrar a decisão dos deuses a nosso favor. Incansável, ela materializa a poesia, nos doa a crença no poder da arte, o amor aos valores mais sublimes da vida, o culto à delicadeza, a devoção ao belo, como se fosse obrigatório o gesto cotidiano de ser melhor, sempre.

 

Não foi em vão: agora, no Teatro Oi Casa Grande, temos todos a oportunidade áurea de celebrar a deusa. Bibi, uma vida em musical, é um espetáculo histórico, precioso, retumbante, um acontecimento exemplar na vida do palco do país. Em cena, há uma irresistível alquimia de história de vida, história, teatro, música, dança, circo, televisão. Tudo exposto no mais alto padrão teatral. Imperdível. Enfim, um alento oportuno para o nosso agora, quando estamos tão derrotados diante de nós.

 

Então, não espere nada. Corra, você não pode deixar de ver. Para contar a história da vida e da arte de Bibi Ferreira, o musical biográfico precisou se reinventar, se reestruturar como história do teatro, da música, da cena, do país. Houve um autêntico tsunami criativo, uma obra afortunada à altura da biografada. Diante dela, você vai ter uma sensação rara, inédita – a sensação de que, povo massacrado há séculos, somos feitos de arte, sobrevivemos disto, é a arte que nos alimenta. E exatamente por isto conseguimos ter Bibi, esta graça dos deuses. Nós merecemos contar com esta estrela.

 

Bibi Ferreira é um nome da arte aqui, é sinônimo de arte. Nascida numa família de artistas, teve uma formação cultural cuidada, como se fosse seguir outro rumo, mas aos vinte e quatro dias de nascida já estava em cena, substituindo uma boneca sumida. O seu pai, Procópio Ferreira, um legítimo homem de teatro, foi um dos maiores atores nacionais. A sua mãe, Aída Izquierdo Ferreira, bailarina e atriz, pertencia a uma família artística circense.

 

Para sublinhar esta condição natural de vida em arte, o libreto do musical, numa opção muito feliz, ambienta o relato da história num circo, homenagem ao Circo Queirolo, parte importante da história da família da atriz. Assim, a peça de Artur Xexéo e Luanna Guimarães, genial, foi desenhada como uma revista de circo, isto é, um relato sucessivo de fatos a partir de um enfoque circense. Como acontece nas revistas, há narração – três narradores costuram os quadros de encenação da história de vida, entremeados com números musicais, por vezes números musicais da vida da atriz.

 

Espevitada, cheia de iniciativa e de encanto, Bibi Ferreira, uma atuação inesquecível de Amanda Acosta, tenta se intrometer arbitrariamente na ação desde o primeiro momento do espetáculo – a nota cômica surge perfeita, pois, afinal, trata-se de teatro e da maior atriz brasileira de todos os tempos.

 

As suas tentativas para romper a lógica narrativa são impedidas pelo excelente Mestre de Cerimônias, desempenho carismático de Leo Bahia, um irresistível comandante da ação. Ele explora o tom mais eufórico do animador, a vivacidade e a autoridade do mestre, esbanja bom uso da voz, da expressão facial e do corpo. Brinca com a quebra da quarta parede, um lugar teatral de jogo explorado por Bibi ao longo de sua carreira.

 

Ao seu lado, compondo a narração inteligente, tornando-a muito dinâmica, aparece a Cigana, composição de intensa teatralidade de Flávia Santana, e a avó Irma, divertida coquete espanhola, de Rosana Penna. Esta chave de condução permite a diluição do didatismo, mesmo diante do relato cronológico, dá oportunidade para explorar o humor, imprescindível para falar de Bibi, e honra as duas grandes condições que a própria atriz costuma considerar como decisivas para a construção de sua carreira – a sorte, portanto a cigana, e o ambiente familiar artístico de qualidade, portanto o circo, o teatro e a avó.

 

Talvez seja impossível enumerar o extenso rol de acertos deste trabalho, tal a sua riqueza. Mas precisa ser ressaltada de saída a felicidade da direção, de Tadeu Aguiar, hábil articulador das linhas poéticas em jogo, criador de cenas teatrais memoráveis, de impacto sensível muito forte. Merecem destaque especial as soluções teatrais construídas para situar os grandes musicais da carreira de Bibi – tanto My Fair Lady, como Hello, Dolly, O Homem de La Mancha, Gota d’Água e Piaf despontam e acontecem no palco como narração dramático-musical, rememoração criativa.

 

Graças à dramaturgia inteligente, contracenas límpidas, coreografias inspiradas, canto cristalino, figurinos precisos, luz sofisticada, os sucessos espetaculares da atriz se impõem nesta sua qualidade, são espetaculares de verdade. Não são reproduções enfadonhas, mas antes recortes vivos de sensações teatrais vibrantes – e assim geram uma vertigem de emoção violenta naqueles que viram as montagens originais. Ou trazem, para os mais novos, a força de uma história imponente.

 

Sim, inteligente – a impressão é a de que o adjetivo estratégico para definir a montagem é este mesmo, inteligente. Houve um pensamento generoso sobre o significado histórico da atriz. A partir da definição de Bibi Ferreira como mulher-teatro ou mulher-arte, mulher-poesia, foi desenhada uma cena estruturada como teatro-arte em todos os detalhes. A decorrência natural é a extrema organicidade de tudo, a cena se estrutura em harmonia, como se fosse um diamante.

 

O cenário multifacetado de Natália Lana, engenhoso, inventivo e belo, além de usar os recursos do circo e do teatro no circo, registra com sutileza o teatro de cada época da vida da biografada. Isto significa a presença viva da própria história do teatro, pois, além dos efeitos circenses de lona, alegria e decoração, surgem o velho gabinete, o telão da revista, a escadaria do musical, o despojamento moderno, a cena como invenção poética. Para sublinhar o efeito, as tapadeiras, nas laterais, estão ao contrário, indicando a necessidade de virar a cena pelo avesso para expor a força da história da atriz, pura história do teatro.

 

Portanto, tudo no palco respira amor à arte e à inteligência cênica. Os figurinos de Ney Madeira e Dani Vidal transbordam beleza, situam a ação, os perfis e a época, funcionam tecnicamente de forma exemplar, com superposições limpas e mutações em cena aberta exatas. Surgem como modelos exatos de construções teatrais.

 

A luz de Rogério Wiltgen chega a ser metafísica – além de cumprir com as rotinas técnicas e atender às necessidades de movimentação, ela tece atmosferas sentimentais, históricas e teatrais de elevada densidade. O efeito azul em Manhã de Carnaval é pungente, as luzes-lâmpadas em gambiarra para sublinhar as teias luminosas do amor na arrebatadora cena-bailado do encontro com Paulo Pontes aceleram os corações.

 

O mesmo caminho marca o trabalho de Sueli Guerra, minucioso, preocupado em explorar a teatralidade e a história do teatro, numa linha autoral clara, diferenciada da proposta de gesto natural, procurada por outros artistas. Vale observar a busca de uma combinação sofisticada, que mistura a limpeza dos gestos, a teatralidade decidida dos movimentos, a pulsação musical e a força expressiva dos corpos, condições importantes para tornar o espetáculo mais quente, mais brasileiro, menos estático. A coreografia também se orienta sob estes princípios – lida com a riquíssima história de Bibi como atriz e como diretora, explora o universo coreográfico e gestual relacionado a ela e aos seus espetáculos.

 

Mas há ainda mais: há a música. A trilha do espetáculo reúne canções brasileiras históricas, tradicionais, canções de musicais e músicas originais, deliciosas, compostas por Thereza Tinoco em sintonia fina com a tessitura dramática. A direção musical e os arranjos de Tony Lucchesi se afirmam como procedimentos de teatro musical, a massa sonora e os efeitos musicais surgem estruturados a favor da ação e dos climas sentimentais. Merece destaque o arranjo sensível, lírico, para os momentos de amor e de ruptura.

 

A produção monumental, traduzida numa ficha técnica imensa abaixo bem resumida, envolve um vasto elenco, notável por sua unidade e por transmitir uma energia criativa positiva, exemplar, em cena. Além de um belo diretor de cena, capaz de conceber um desenho de palco e de movimentações limpo, eficiente, estético, Tadeu Aguiar é um exímio diretor de atores.

 

Cada intérprete, mais ou menos experiente, mais ou menos solar, está no palco sempre a cavaleiro, sempre senhor de sua função na arte. Nenhum ator cruza a cena insensível ao mar de emoções que precisa ser exposto. Como costuma ocorrer nos musicais brasileiros, em particular nos biográficos, o trabalho dos atores segue a linha da composição exterior. Mas, sob a direção de Tadeu Aguiar, as composições se inclinam sempre para o orgânico, a interioridade, condição que dilui a caricatura e amplia bastante o impacto das atuações.

 

Soberana, majestosa, irrequieta, brejeira, matreira, sedutora, carismática, veemente, sensível, delicada, espirituosa, vibrante – quantos adjetivos poderiam ser reunidos para dar conta desta atuação antológica? Amanda Acosta catalisa toda a energia dos deuses para expor, em corpo vivo, a genialidade de Bibi Ferreira.

 

O seu desempenho é um feito histórico, programa imperdível, obrigatório para todos os que amam o teatro. Da expressão facial aos trejeitos físicos, da voz à estruturação do gesto, ela traz Bibi para bem junto de nós, ela nos abraça. E neste abraço, ela arrasta a plateia para os recantos mais sutis do sentimento, brinca com esta possibilidade, suscita o pensamento sensível mais requintado a respeito da vida, brinca com a devoção conquistada apenas para ampliar a devoção, como Bibi Ferreira costuma fazer.

 

Chris Penna, encarregado do supremo desafio de materializar Procópio Ferreira, tem o seu primeiro papel de grande destaque em musical; recorre a uma composição um pouco pesada, muito detalhada, mas alcança o efeito desejado, em particular quando registra o processo de envelhecimento do ator, quando se inclina ao esmaecimento dos truques e do tom mais mecânico. Simone Centurione também recorre à composição exterior para expor a força de Aída Izquierdo Ferreira, usa a exterioridade para traduzir a autoridade e a grandeza da mãe, com alcance bastante positivo.

 

Analu Pimenta constrói a amiga Vanda a partir de uma composição física apoiada em eficiente arranjo vocal. Luisa Vianna surpreende com a clareza e a força gestual objetivas escolhidas para traduzir a dedicada e sempre discreta Neide.

 

Um total de mais onze atores completa a ficha técnica com brilho e competência, em atuações sempre desenhadas a partir da composição exterior, mais ou menos sensível, aqui e ali mais interiorizada. Nenhuma opção obscurece a proposta, a afinação domina o palco. O elenco de apoio se desdobra em pequenos papéis pontuais e cumpre também a vasta função de coro, solução que viabiliza a construção do imenso painel humano que envolve a vida da atriz.

 

Portanto, prepare-se – são muitas cenas antológicas, há um jorro criativo belíssimo. A beleza delicada da cena de teatro de gabinete é mais do que elegante. A hilária cena musical dos críticos figura entre os grandes achados da montagem. As apoteoses circenses fazem vibrar nosso coração infantil. Felizmente estamos diante de um acontecimento emocionante de verdade, um encontro de almas especial para todos os brasileiros conhecedores de Bibi Ferreira e amantes de teatro.

 

Então, o fato é evidente, o seu alcance é cristalino: assim como Bibi, pura poesia em forma de gente, foi capaz sempre de nos levar a comungar com os céus e com as fibras mais sutis de estruturação da vida, este espetáculo generoso nos faz mergulhar em sua história de vida e arte para sairmos do teatro renovados. Afinal, ela foi eleita para isto pelos deuses. Resta a nós, simples mortais brasileiros desvalidos, a humildade de contemplar toda esta beleza e concluir que sim, os deuses estão do nosso lado, e que, com esta luz, podemos sim nos tornar seres humanos melhores.

 

Ficha Técnica
 

TEXTO: Artur Xexéo e Luanna Guimarães
MÚSICA ORIGINAL: Thereza Tinoco
DIREÇÃO: Tadeu Aguiar
DIREÇÃO MUSICAL E ARRANJOS: Tony Lucchesi
ELENCO: Amanda Acosta, Analu Pimenta, André Luiz Odin, Bel Lima, Caio Giovani, Carlos Darzé, Chris Penna, Fernanda Gabriela, Flavia Santana, Guilherme Logullo, João Telles, Julie Duarte, Leandro Melo, Leo Bahia, Leonam Moraes Luísa Vianna, Moira Osório Rosana Penna, Simone Centurione.
MÚSICOS: Alexandre Queiroz (Regência e Piano), Miguel Schönmann, Léo Bandeira, David Nascimento, Thais Ferreira, Luiz Felipe Ferreira, Everson Moraes, Gilberto Pereira.
COREOGRAFIA: Sueli Guerra
CENOGRAFIA: Natalia Lana
FIGURINO: Ney Madeira e Dani Vidal
DESENHO DE LUZ: Rogerio Wiltgen
DESENHO DE SOM: Gabriel D’Ângelo
VISAGISTA: Ulysses Rabelo
FOTOS: Guga Melgar
ASSISTENCIA DE DIREÇÃO: Flavia Rinaldi
ASSISTENCIA DE COREOGRAFIA: Olivia Vivone
ASSISTENCIA DE DIREÇÃO MUSICAL: Alexandre Queiroz
ASSISTENCIA DE ILUMINAÇÃO: Wagner Azevedo
COORDENAÇÃO DE PRODUÇAO: Eduardo Bakr
PRODUÇAO GERAL: Cláudia Negri
REALIZAÇÃO: Negri e Tinoco Produções Artísticas
ASSESSORIA DE IMPRENSA: Meise Halabi

Serviço:
ESTREIA: 5 de janeiro de 2018
LOCAL: Teatro Oi Casa Grande – Av. Afrânio de Melo Franco, 290 | Leblon – RJ | 21 2511 0800
HORÁRIOS: Quinta e sexta 20h30 | Sábado 17 e 21h | Domingo 19h Duração 140 minutos | Um intervalo
CLASSIFICAÇÃO ETÁRIA: 10 anos
CAPACIDADE: 926 lugares –
INGRESSOS: Plateia VIP R$ 150 (inteira) | Plateia Setor 1 R$ 120 (inteira) 2º piso – Camarote R$ 150 (inteira) Balcão 2 R$ 90 (inteira) | Balcão 3 R$ 50 (inteira)
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