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Françoise Forton

Desista: não adianta nem tentar.  Por mais que você se esforce, não vai encontrar uma atriz como Françoise Forton. Mais grave: não vai encontrar uma pessoa como Françoise Forton. Não, não é aquele papo barato de que ninguém é igual a ninguém, cada pessoa é única. Nem é retórica delirante de celebração fúnebre. Nada disto – o caso é de reconhecimento objetivo de uma raridade humana.

Repare nas fotos dela – há sempre um brilho intenso no olhar, um brilho gerado na alma, mesmo sob expressões tristes, atmosferas melancólicas. O primeiro ponto a considerar está aí. A intensidade deste brilho conhecia várias modulações, percorria sentimentos, estados de espírito, afetos.

Pois é isto: a complexidade do simples. Um simples olhar, indício de um universo. A alma de Françoise Forton fervia de intensidade sentimental e ela buscava doar esta benção para os contemporâneos, os bem aventurados contemporâneos. Agora, repare um pouco mais, analise os vídeos. Dá para perceber uma corrente expressiva curiosa – há uma irradiação do brilho interior para os gestos, para a fluidez do corpo. Assim, dá para perceber a busca de uma interlocução profundamente construída, com certeza gerada por uma condição técnica, o balé, mas cultivada com preciosismo por toda a vida. O resultado, de extrema beleza, sugere um pouco como se a alma dançasse no corpo. Como assim?

Pois bem, vá mais adiante, verifique a fala, a forma das palavras, os gestos, a relação entre olhar, intenção, fala e gesto. Esmiúce  cenas, pesquise contracenas. Você vai constatar a existência de uma organicidade expressiva, uma força generosa de ser. Uma palavra para resumir tudo isto? Elegância. Mais exatamente,  duas palavras, elegância existencial.

Um amor de vinil, com Maurício Baduh.

Se o autor traça uma trajetória com palavras em ação, estas formas vivas criadas pelo dramaturgo só podem existir em plenitude através dos atores. Neste nó – nó, como o cerne da madeira, por onde passa a vida – acontece o teatro, em sua plenitude. E, em sua diferença, torna a arte uma arte singular, traça uma distância  total de todas as outras artes. Teatro é vida em movimento.  Em pulsação.

O entendimento profundo do raciocínio resulta  nesta expressão estratégica – sim, elegância existencial. Quer dizer, uma atitude inspirada numa visão da vida, numa visão do ato de existir, logo na delicadeza do existir. Não há nenhum rompante gratuito, nem tampouco vigora aí um fluxo que não seja poesia autoral. Autoralidade de atores. Atores. Ou um pouco mais?

Sim, são atores únicos e raros os que compreendem a necessidade de exercer o ofício em associação com uma ideia de finalidade da vida. Não trabalham com a exposição superficial dos fatos, nem cogitam erigir a cena como vitrine de pequenas excentricidades humanas. Atuar importa no reconhecimento de um estado coletivo de pertencimento e diálogo, portanto, apontar uma proximidade, seguir uma devoção profundamente humana, distante de messianismos ou arroubos de vedete.

A entrega passa por uma escolha, claro, o compromisso fundamental. Françoise Forton obedecia a esta marca de origem: escolheu ser atriz, entregou-se à arte com profunda devoção e seguiu convicta este caminho. A consequência desta diretriz transparecia clara na sua forma expressiva e ampliava a potência artística dos trabalhos. A cena mais simples, a peça mais singela nascia sempre com palpitante intensidade humana.

Nós sempre teremos Paris, com Aloisio de Abreu.

Uma linha nítida assinala o perfil dos artistas sob esta orientação. Fran, como costumava ser chamada de perto, não era diva, não era estrela, nunca esteve deslumbrada ou mascarada diante da arte e do mundo. O seu desejo de arte se renovava a cada trabalho e nunca ofuscava o seu olhar para o cotidiano. Incansável guerreira da arte, chamei-a assim uma vez num texto. Que atriz era esta?

Existem muitos tipos de atores – os esforços para estabelecer classificações, definir diferentes categorias de intérpretes, é antigo. Para alguns, existem tantos tipos de atores quantos seres dedicados ao ofício, uma escolha inclinada a invalidar qualquer classificação. Antigamente, era possível raciocinar a respeito da arte a partir de categorias fixas, tipologias e funções expressivas; dizem as más línguas que a televisão ainda faz isto, tanto tempo depois, um meio para viabilizar uma dramaturgia de longa duração.

Nesta tipologia antiga, seria razoável classificar Fran como ingênua, por causa da telenovela Estúpido Cúpido, o sucesso responsável por sua consagração nacional? O papel da jovem ingênua sonhadora, amorosa, teria esta classificação. Pode ser? Analisar o caso é revelador.

De saída, cabe a refutar a hipótese. Nada mais longe da realidade da atriz, pois as ingênuas, sem que isto signifique preconceito ou desqualificação, carregam um tom avoado, um colorido ligeiro dominante, um jeito de ser, enfim, capaz de aplainar todas as tensões interiores. Ingênuas são seres de espírito leve, esvoaçante, frutos de uma visão saltitante da vida.

Françoise Forton, ao contrário, sempre soube da existência de um travo amargo, mesmo que delicado, sob o farfalhar doce dos frufrus. O brilho do olhar da atriz, constatação primeira, não nascia da fascinação infantil diante do mundo ou do desejo simplório de sedução do outro, porém, antes, nascia da constatação do desafio profundo contido no ato de existir. Existir, imponderável abismo, eterna pergunta.

Por isto, Françoise Forton se jogava inteira, sem rede de proteção, para o bem e para o mal. Abraçava a arte sem fronteira. Na escolha profunda, se revelou sempre filha dileta de Glauce Rocha, a sensacional atriz brasileira trágica e moderna, sua madrinha e de certa forma mãe adotiva, quando ainda jovem se mudou para o Rio de Janeiro.

Por isto, para se equilibrar na beira do abismo e ter o que dizer aos próximos, Françoise Forton não parava quieta.  Para ela, trabalhar funcionava como modo de vida  – se é que o verbo trabalhar pode definir de forma exata a sua dedicação à arte. Ela vivia imersa no ofício, era um bicho de teatro ou um bicho de arte em tempo integral. Isto significa dizer algo muito preciso: tanto ela podia pegar uma vassoura para varrer o palco, como podia se engajar na produção da peça, ajudar a resolver o cenário, ou organizar com maestria um coquetel-para-ontem em função de alguma necessidade política da arte.

Incansável, dedicada, amiga, se destacava sempre por ser a gentileza em pessoa. Elegância, no seu caso, era também professar um respeito comovedor ao próximo. Nada de palavras rudes, nada de figurações grosseiras, nada de rispidez pontilhava o seu cotidiano. Inteligente e culta, dona de um humor refinado, exigente demais consigo mesma, Françoise Forton iluminava os lugares em que se movia e tornava o ar ambiente mais etéreo.

O amor ao teatro acabou coroado por um sublime amor de teatro, graças ao belo romance vivido com Eduardo Barata, produtor, líder teatral, assessor de imprensa. Casaram-se cercados pela aclamação dos amigos do teatro e se revelaram como parceiros complementares dispostos a combater a favor da cena nacional. A parceria de amor se estendeu da vida à arte.

Depois de uma luta acirrada contra um câncer surpreendentemente agressivo, Françoise Forton faleceu neste domingo, 16 de janeiro, e nos legou também um exemplo de crença elevada no poder da vida. Guerreira na arte, pela qual sempre combateu com todas as armas ao seu alcance, ela nos deixou como uma luminosa guerreira da vida, pois enfrentou a doença com absoluta galhardia.

Ela nos deixa de herança uma grande inspiração: assumir a necessidade de lutar pelo teatro brasileiro. Unir todas as forças a favor da arte do teatro e da arte do ator. Sim, especialmente a favor do ator. Existe uma potência criativa na arte brasileira à espera de nossa atenção. Precisamos nos dedicar mais aos nossos atores, aprender mais com o elevado grau de doação de arte que deles recebemos. Não dá mais para aceitar que a grande tradição artística existente no país vegete como legado descartável.

Atores não existem para o esquecimento. Eles possuem um dom exemplar, a capacidade de materializar a força da vida. Em cena, eles se transformam e, na plateia, nos transformam. Celebrar a sua obra é acreditar na grandeza da vida humana. Assim poderemos celebrar de verdade, para sempre, para não esquecer jamais, a arte de Françoise Forton.