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Eu vou para Maracangalha… eu vou!

Vivemos uma espécie de pesadelo – bem o sabemos. Nunca nem sequer sonhamos um dia com esta tremenda subversão cotidiana da realidade. De repente, ficou tudo fora do lugar. Resta apenas manter o amor à vida no coração e, a cada dia, cultivar a certeza de que podemos e devemos fazer algo a favor da existência.

O mais triste é constatar que as coisas podem ficar piores – veja-se, por exemplo, a indecência da má qualidade da água no Rio de Janeiro. A CEDAE fez a proeza de desinventar a ideia preciosa da água encanada, uma grande conquista da civilização. Ela não trabalha com água potável – e quem duvidar, visite os seus mananciais de captação. Aquilo lá não é água de beber. Como explicar a escolha de insistir em levar todo aquele esgoto para as torneiras?

Há, no entanto, uma grande vantagem soturna na crise da água. Afinal, a pandemia liquidou a chance de apostarmos no verbo fugir – fugir para onde, no meio de uma pandemia mundial? Para a Lua? Júpiter? Para Marte? Não temos voos regulares… Já com a contribuição da CEDAE, podemos recuperar o verbo antigo e sonhar: vou fugir!

Não sei bem para onde. Nas artes, em especial na música, existem algumas sugestões sedutoras. Há a enigmática Maracangalha, de Caymmi, há aquele lugar além do horizonte para viver em paz, segundo Roberto e Erasmo, e ainda se pode contar com a voz de Elis exaltando a casa no campo, de José Rodrigues Trindade e Luis Otavio de Melo Carvalho.

Quer dizer, segundo a dica da CEDAE, se o destino da fuga parece continuar confuso, dá para saber claramente de onde se quer fugir – fugir da cidade maravilhosa, cheia de encantos mil. A empresa se tornou uma inimiga exemplar da formosa cidade e devia ser pressionada com aquelas bombas de sucção monumentais para começar a agir a favor da neutralização do desgaste gerado. Até a água do chuveiro dá medo, com o cheiro nauseabundo.

Antigamente – eu sou carioca e sempre vivi no Rio – a população costumava cantar sorrindo alguns problemas sinistros. Por exemplo: lata d’água na cabeça, lá vai Maria… com a deusa Marlene. Ou Rio de Janeiro, cidade que nos seduz, de dia falta água, de noite falta luz, de Vitor Simon e Fernando Martins. Mas, em geral, não havia o medo de morrer por beber água da bica, claro, depois de filtrada e fervida. Agora, nos superamos.

Lembro logo de Ibsen. Lembro de dois textos muito necessários para que se constitua uma identidade carioca de outra ordem, uma identidade em que não haja espaço para a canalhice e a má fé. Ou, ao menos, para que o espaço dos vermes humanos possa ser bem reduzido e não comprometa a saúde social, tanto objetiva, física, quanto moral, abstrata.

Sim, Ibsen – O Inimigo do Povo, já escrevi isto tantas vezes, devia ser cartaz permanente e obrigatório na cidade. Agora, acrescento mais um texto, Solness, o Construtor, sobre o velho poder crápula, maléfico, preocupado em destruir a energia jovem empenhada em renovação.

Não sei se existem autores nacionais tão fortes e necessários. Talvez Jorge Andrade tenha bastante desta luz, mas, miséria nacional extrema, não temos palco nem produção para montar Jorge Andrade, com seus textos imensos. Jorge Andrade está muito acima de nós. Seria mais fácil montar Ibsen…

Bom, vejamos. Aí está todo o drama: não sei se conseguimos mais fugir. Perdemos a hora da largada. Teremos que ficar por aqui. Seremos obrigados a conviver com o esforço da CEDAE para ajudar a destruir o Rio e a sua população. Já que perdemos o tal do verbo de ação, fugir,  não precisamos ficar calados e inativos, contemplando a cena, como se estivéssemos imóveis vendo uma grande peça de teatro de terror no escuro. Podemos agir.

Sim, o teatro pode ajudar a lutar contra esta calamidade nossa, de cor tão local, capaz de elevar ao insuportável o potencial amargo da pandemia. Afinal, há aquela irresistível frase de Lorca: “O teatro é a poesia que sai do livro para descer à rua.” O grande objetivo do teatro é o contágio poético, portanto, mudar a vida, celebrar a saúde do viver.

A frase de Lorca é epígrafe para um festival francês de nome bastante oportuno – Paroles Citoyennes, Palavras Cidadãs em tradução literal. Na verdade, é um festival de Paris, promovido por uma associação dedicada a promover a cidade de Paris, a Théâtres Parisiens Associés. Nesta quarta edição, que acontecerá do dia 6 ao dia 28 de abril, o festival acontecerá integralmente virtual, para ser visto de casa, com venda de ingressos e toda a rotina da ida ao teatro, mas simplesmente como teatro de poltrona. Três espetáculos serão apresentados no palco do Théâtre Antoine…

E assim caminha o teatro pelo mundo, ainda com raras possibilidades de recuperação das práticas usuais antigas, mas com a certeza de que é preciso estar presente, acontecer. Este ato atesta não apenas o compromisso da arte com a sua história e o seu fazer, mas com as comunidades, as cidades, a cidadania. Não se pensa em por em risco a saúde humana geral, ao contrário, o esforço é para unir forças a favor da vida.

Não temos uma associação dos teatros cariocas, um instrumento que seria benéfico para a cidade. Contudo, quando se lê a notícia parisiense, imediatamente vem à lembrança a APTR, uma associação combativa identificada com a grandeza do teatro e a potência do Rio de Janeiro.

Contamos com um núcleo forte de instituições voltadas para política de fortalecimento da arte e da inteligência no Rio de Janeiro. Além da APTR, Sesc, Sesi, Senai, Fundação Cesgranrio, Instituto Moreira Salles… definitivamente, não estamos sós, nadando a esmo em águas turvas.

Talvez um terceiro lugar, quem sabe uma força política progressista, além das associações e da cidadania, pudesse colaborar para articular as forças e garantir a sobrevivência do encanto da cidade. Parece urgente a construção de uma rede, um véu, uma ferramenta de proteção, não para nos impedir de fugir, mas para travar o bom combate a favor do Rio.

Por aqui, não falta inteligência, capacidade de criação e originalidade. Considere-se, por exemplo, o mais recente trabalho do  excelente ator Claudio Mendes, comemoração dos seus 35 anos de carreira.

Em parceria com o diretor Isaac Bernat, sob o patrocínio do Sesc, ele criou uma websérie de valor estratégico para o teatro carioca. Trata-se de um estudo cênico, digamos assim, das Lições Dramáticas escritas por João Caetano (1808-1863), de certa forma o nosso primeiro livro de reflexão sobre a técnica do teatro.

A maestria da proposta merece destaque: em primeiro lugar, ela traz para a cena o texto de João Caetano, habilmente estudado pelo professor e historiador Décio de Almeida Prado. Em segundo, aponta-se para a importância de pensar a arte do palco, com a inclusão de trechos de peças de vários tempos que fizeram autoreferrência ao teatro.

Mas há ainda mais – um violão e um cavaquinho trazem para o diálogo sonoridades brasileiras irresistíveis, condimentam o desempenho sempre tão intenso deste ator-empreendedor da nossa época, que entendeu profundamente o sentido da vida de João Caetano. Claudio Mendes é um grande mestre da cena.

A bem da verdade, talvez para higienizar a água podre que aqui nos servem, o palco do Rio de Janeiro está fervendo. Uma rápida consulta à programação teatral atesta o fato, demonstra que, apesar dos vilões tantos, o teatro não abdicou, não fugiu à luta e oferece múltiplas oportunidades para mergulhar na poesia.

Faça o teste: consulte o Sympla, o Youtube, verifique os sites dos teatros, dos grupos e companhias mais amados da sua vida e constate a grande verdade. Você, cidadão carioca, não está sozinho. Para lhe ajudar a atravessar a onda sinistra, o teatro está do seu lado, para assegurar-lhe que, afinal, Marancangalha não é longe, é apenas uma forma de ficar feliz por aqui.

FICHA TÉCNICA:

LIÇÕES DRAMÁTICAS POR JOÃO CAETANO

Texto: João Caetano

Dramaturgia: Claudio Mendes e Isaac Bernat

Direção: Isaac Bernat

Assistência de Direção: Julia Bernat

Atuação: Claudio Mendes

Músicos: André Mendes e Pedro Cantalice

Cenário e Figurinos:  Carlos Alberto Nunes

Iluminação: Aurélio de Simoni

Equipe de Filmagem: Fita Amarela (Artur Pereira Silva, Marcelo Linhares, Sergio de Oliveira Manso,  André Luiz de Oliveira, Bernardo Cunha Ladeira)

Costureira: Katia Salles

Equipe de Iluminação:  Juquinha e Felipe Antelo

Contra Regra: Zé Derly

Fotos: Claudia Ribeiro

Programação Visual e Mídia Sociais: Silvana Andrade

Direção de Produção:  Bárbara Montes Claros

Idealização: Claudio Mendes

Realização: Sesc Rio e J. R. Mac Niven Produções

Assessoria de Imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

SERVIÇO:

ESTREIA: dia 1º de abril, às 19h

ONDE ASSISTIR: canal do Sesc Rio no YouTube 

ACESSO ABERTO E GRATUITO

(https://www.youtube.com/user/portalsescrio)

DURAÇÃO: 12 episódios de aproximadamente 10 min cada (todos os episódios serão disponibilizados desde a estreia) / CLASSIFICAÇÃO ETÁRIA: livre

TEMPORADA: até 1º de julho (disponível pelo período de 90 dias a partir da estreia)

PARA LER E SABER MAIS: