High-res version

As dores do tempo

Às vezes sonhamos acordados: e se pudéssemos fazer sorvete do tempo? Congelar o tempo bom, para sorvê-lo calmamente, por longos dias, sempre que a dor batesse e maltratasse o ser. Congelar o tempo ruim, esquecê-lo no freezer. Bastava um sorvete e pronto, todo o mal passou.

Infelizmente não temos esta fórmula, o tempo passa lépido, bom ou mau, não faz caso de nós. Em vez de ser sorvete, é aquela água corredeira: tão rápida chega, mais depressa se vai. E quando a dor se apresenta senhora do carro de cronos, prepare-se, não há o que fazer, além de sofrer.

Curioso observar como este paraíso tropical abençoado por Deus, promessa de futuro luminoso, desde muito tempo o país do futuro, desatrelou as rédeas da alegria e mergulhou num pântano sombrio. Da alegria fez-se o pranto – será?

Não fizemos lockdown para derrubar a pandemia. As razões foram várias, desde o desgoverno do país até a frigidez cidadã. Agora, no seu segundo ano, a peste campeia ainda mais desenfreada. Não temos a menor ideia do que poderá ocorrer, pois não assumimos, coletivamente, como país, um pacto solidário de luta contra a ruína.

Algumas pessoas não admitem a possibilidade de fazer isolamento, mudar rotina, abrir mão de privilégios. Outras defendem o sofisma ordinário de que a economia não pode ser sacrificada pela saúde. Como se a economia prosperasse entre mortos.

A situação é tão patética que surgem pessoas com a coragem de comemorar a doença de um ou outro cidadão – quer dizer, não aprendemos nada, não cimentamos laços de humanidade diante de uma catástrofe histórica. Seres rústicos e violentos persistem no seu padrão moral indigente. A hora é a de perguntar a respeito da escala de valores que estrutura a sociedade brasileira.

Logicamente, duas falhas trágicas do país estão expostas para quem quiser dimensioná-las. A primeira, nossa incapacidade de construir uma escola nacional universal. O que isto quer dizer? Não conseguimos – e ano que vem comemoraremos o bicentenário da Independência do país – estabelecer a escola, a nossa escola, uma escola, como realidade nacional, benefício para todos. Um lugar que nos oferecesse o mesmo idioma humano.

A segunda falha trágica é o nosso palco. Apesar da riqueza de ideias a respeito, vigentes no século XIX, não edificamos um teatro brasileiro. Isto significa que optamos por deixar a sensibilidade do país ao léu, sem trato, sem densidade. O que mais fizemos foi dançar na rua – não que esteja errado dançar na rua, o fato é que a ordem da civilização, à qual pertencemos, supõe vivências coletivas um pouco adiante, nem que seja para questioná-las.

Vale, então, acionar o teatro para olhar a vida nacional na pandemia, neste emaranhado confuso de sentimentos, ideias, solidão e descaminho. Precisamos conversar com as almas, digamos. Tentar de novo ainda mais uma vez. Se o alcance será modesto, impossível dimensionar. O que não é admissível é cruzar os braços.

As perguntas urgentes continuam sob o foco, as mesmas de sempre, talvez um pouco mais ácidas ou dolorosas – que tipo de gente nós somos, que tipo de sociedade construímos, quais as perguntas precisamos formular diante da nossa realidade…? Com que tipo de poder pretendemos conviver? Qual a batida do coração – se é que ele bate – quando pensamos na nossa gente?

De repente o tempo presente se impôs diante de nós como nunca: o que acontece por aqui, agora? Quem nos questiona é o imediato, deslocando a velha mania nacional de jogar a ênfase para o futuro. A resposta pode esclarecer muita coisa a nosso respeito.

 Por exemplo, na peça Nave mãe, em cartaz até o dia 29 de abril, teatron, Alan Pellegrino, autor do texto e ator do espetáculo, aborda o trabalho escravo. Com certeza a nossa incompetência para gerenciar a pandemia trará como consequência, ao lado da miséria e da fome, a expansão do trabalho escravo, que nunca foi completamente extinto por aqui.

A rusticidade histórica de nossa sociedade é de tal ordem que é possível encontrar trabalho escravo em São Paulo, justamente onde vigora a dinâmica econômica mais sofisticada do país. A peça pretende, justamente, oferecer um panorama social do nosso presente. A opção exige algumas idas e vindas no tempo, para situar os diferentes indivíduos envolvidos na trama.

Segundo a sinopse, Guará, um típico brasileiro comum, anônimo invisível, parte de sua cidade natal fascinado por uma oferta de trabalho na fictícia Cidade das Formigas. O trabalho impõe o seu ingresso numa facção – como são chamadas certas empresas clandestinas – voltada à confecção de roupas. O quadro é objetivo: trata-se de trabalho análogo à escravidão, pautado pela exploração e pela opressão.

A proposta sofreu a influência da pandemia não apenas no formato, online, mas também no tema, nas cores de tratamento da questão. Significa, contudo, um trabalho teatral continuado: Pellegrino foi dirigido por Joelson Gusson, diretor do ator em trabalhos anteriores (Hotel Brasil,  2017; Volta Seca, 2018) e os dois integram a companhia Dragão Voador.

O presente está em cena também em Correspondentes Quarentenados, aqui sob uma forma bem ousada de teatron, definida pela equipe como uma instalação cênica virtual. As apresentações gratuitas estão disponíveis até amanhã. Neste caso, está em órbita direta a vivência da quarentena.  

A direção, da experiente Susanna Kruger, criadora de algumas representações teatrais marcadas pela invenção espacial, lida com a ideia de parceria, coautoria do público. O projeto trabalhou correspondências do isolamento na pandemia, com o objetivo de retratar a subjetividade compartilhada.

O ponto de partida foram doze cartas escritas no interior de um projeto acadêmico coordenado pelo professor Marcelo dos Santos. Na transposição para a cena, elas foram tratadas pelos atores, que criaram composições marcadas pela ação e pela leitura, desenhos de sentimentos e intenções

O elenco reúne atores profissionais convidados e alunos da diretora. Juntos online na mesma transmissão via Zoom, mas em salas simultâneas, eles apresentam as cenas ininterruptamente, durante 50 minutos – o espectador decide, então, a partir de um roteiro, as cenas que deseja seguir, na ordem que preferir. Portanto, quem assiste é também autor do espetáculo – pode entrar, sair, zapear à vontade, construir a sua versão.

Talvez seja justo concluir que este tipo de teatro ferramenta, capaz de jogar em cena os temas mais urgentes e ácidos, capaz de jogar o foco no cidadão espectador, deve ser visto como um procedimento ajustado ao nosso presente. Afinal, parece claro que estamos atrasados com o relógio do grande tempo humano.

Acertar a hora, ajustar o olhar e movimentar o cérebro importam para que se chegue a uma sensibilidade brasileira renovada, capaz de saber o que é, no tempo, o valor maior, a dimensão do humano. Pois, se não podemos congelar o tempo, ele, traiçoeiro, pode nos congelar, nos transformar em sorvete, neste caso um alimento vigoroso da indiferença e da apatia social: pura falência humana.

Ficha técnica:

Nave Mãe

Idealização, dramaturgia e performance: Alan Pellegrino

Direção: Joelson Gusson e Alan Pellegrino

Diálogo Artístico: LuisaFriese

Coordenação de Projeto: Sarah Alonso

Cenário e figurino: Joelson Gusson

Iluminação: GuigaEnsá

Preparação vocal: Jorge Maia

Produtor associado: Osvan Costa

Produção executiva: Máximo Cutrim

Assessoria de imprensa: Christovam Chevalier

Mídias sociais: Marianne Lorole

Programação Visual: Joelson Gusson

Fotos: Carol Nunes

Filmagem: Ubuntú Produtora

Produção: Riquixá Invenções Artísticas

Realização: Dragão Voador

Serviço:

Nave Mãe

Temporada: 18 a 29 de abril

Transmissões: após a estreia, o espetáculo ficará disponível gratuitamente no canal da Dragão Voador no YouTube

Duração: 35 minutos

Classificação: 12 anos

Ficha técnica:

Correspondentes Quarentenados

Texto: Cartas diversas, projeto Correspondentes Quarentenados, do Professor Marcelo dos Santos

Direção Geral e Artística – Susanna Kruger

Atores convidados – Ana Paula Secco, João Sant’Anna, Karina Ramil, Lincoln Oliveira, Mel Lisboa e Vanessa Pascale

Alunos convidados do curso “A Transcendência das linguagens do ator” da Casa de Cultura Laura Alvim – Akemi Ono, Cris Santos, Cristovam Freitas, Duda Persson, Grazi Neves e Sulamita Gonçalves

Produção executiva – Susanna Kruger

Design gráfico e assistente de produção – Luana Manuel

Assistente de direção – Mark Benjamin

Tradução das cenas em Libras – Luana Jordão

Transmissão multiplaraforma – Tomás Ribas

Orientação da seleção da correspondência – Marcelo dos Santos

Pseudônimos das cartas selecionadas: Bervyin, Blossom, Céu, Filhote, Guerrilheira, Helô M., Laura, Luna, Lux, Maria Estela Cervantes, Niçu e Vento Solar

Assessoria de imprensa – Luciana Duque

SERVIÇO

Correspondentes Quarentenados

Temporada: 17 a 20 de abril de 2021

Horários: Todos os dias: 19h e 21h

SITE: https://correspondentesqua.wixsite.com/correspondentes

Ingressos: Gratuito

Duração: 50 minutos

Classificação: Livre