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Conversa de festival: o corpo

Um dos grandes méritos dos festivais é o estímulo à conversa de arte. Neste campo, o Festival de Curitiba alcança um desempenho notável. A orientação do evento é esta, favorecer o encontro e a fala. Enquanto uma companhia, um elenco e um número de convidados está na cidade, tudo funciona para favorecer o encontro, a conversa, a troca de ideias.

Curioso observar que acontece até uma bela conversa sem palavras, a conversa contracena, quer dizer, o bate papo animado de uma cena com a outra. De repente, ver tal produção ao lado daquela outra promove um pensamento teatral novo, estimula a descoberta de ligações e rupturas que, de outra forma, na simples sucessão dos cartazes, não seriam perceptíveis.

Na edição de 2019, uma conversa interessante no primeiro bloco de montagens do festival, da estreia do evento até este fim de semana passado, diz respeito à performance e ao corpo em cena. O teatro brasileiro vive hoje uma intensidade física do ator bastante peculiar.

Assim, se for feito um estudo ao redor de alguns trabalhos, tais como as apresentações de As Comadres, Abujamra Presente, Recital da Onça e O Frenético Dancing Days, que vai estrear em breve no festival, é possível dimensionar um espaço de expressão próprio do nosso tempo, talvez uma metáfora interessante a respeito da necessidade da presença integral, hoje, da pessoa na ordem dos acontecimentos sociais.

Não se trata de comparar obras disparatadas, dotadas de identidades precisas e distintas, elaboradas cada uma segundo uma fatura objetiva peculiar. O que se pretende não é uma aproximação de tecidos diversos, dissociados, mas sim tentar perceber aquilo ali que faz com que pertençamos todos a um hoje acelerado, sempre renovado, vivido com intensidade.

Neste hoje, há uma diferença impactante ao redor de formas físicas expressivas recentes, que já se tornaram passado. A mais notável sem dúvida nasceu com a proposta moderna, que precisa ser citada, pois o presente acontece em diálogo com ela. Esta forma, agora transformada em solução envelhecida, se distingue como uma escultura física da palavra, digamos.

De certa forma, a palavra surgia nesta poética como um buril, uma ferramenta apta para dar forma, dar corpo, a um sentimento interior e, em consequência, a um corpo necessário a este fluxo verbo-intencional. Numa liberdade didática extrema, se poderia dizer que o ator moderno, aquele nascido na cena dos anos 1940-1950, era um corpo em letras, aquele corpo que transpirava subtexto, uma energia que vinha da palavra exterior para movimentá-lo.

A lição foi quebrada nos idos de 1970 – muita gente que viveu estes então novos tempos teatrais, se surpreendia com as iniciativas de Klauss e Angel Vianna voltadas para emancipar o corpo, dar ao corpo o direito à fala e à primazia expressiva. Na ocasião, para os defensores da realeza da palavra e da razão objetiva, a expressão corporal devia ser reduzida ao seu lugar verdadeiro, subalterno, subserviente, quase o mesmo lugar dimensionado por Procópio Ferreira, para ficar num exemplo bem eloquente.

A rigor, a grande diferença entre os antigos e os modernos era a mudança do trajeto da palavra — para os antigos, ela brotava das belas ideias, do autor ou do ator, mas sempre filtrada pelo ator, governada por sua decisão absoluta. Ela era impregnada por emoção pensada e, assim, diretamente jogada para o público, com a maior intensidade possível. O ator fingia descaradamente, digamos, e para ser convincente precisava de um corpo obediente, domado, sem palavra.

Para os modernos, a palavra, ao contrário, devia ser interiorizada, incorporada com intensidade abissal. A partir daí, carregada de intenções interiores, ela devia ser oferecida sutilmente ao público, que deveria percebê-la no jogo cênico inefável desenhado pelo elenco. O corpo continuava obediente, mas foi alfabetizado, para ser lido pelo público num jogo de emoções e intenções.

A presença em cena, hoje, desencadeia uma outra dinâmica sensível, um fluxo que atribui carne à racionalidade e abstração à corporeidade. Em muitos momentos, o corpo fala sozinho, sem ser, contudo, o recurso cômico, circense ou parecido com o velho teatro farsesco – tema interessante para um outro texto. Algumas cenas são alicerçadas no corpo, com o corpo, pelo corpo, sem conexões mecânicas com o pensamento ou a emoção. Soluções contraditórias caminham juntas, o passado revitalizado pelo presente.

Considere-se, por exemplo, a cena multiforme de As Comadres, de Michel Tremblay, na versão musical de René Richard e Daniel Bélanger. A montagem original, uma franquia, digamos, como nos grandes musicais, é do Canadá. O projeto nasceu da vontade da atriz Juliana Carneiro da Cunha de retomar a carreira na cena brasileira, depois de uma trajetória longa, desde 1990, no Théâtre du Soleil, em Paris. A direção geral, na realidade uma supervisão artística, coube a Ariane Mnouchkine, a grande idealizadora e diretora do Théâtre du Soleil, um dos maiores nomes da cena mundial.

A peça não chega a ser uma peça mulherzinha, apesar de ser um encontro de mulheres em cena. O autor, um canadense de origem humilde e um grande observador do universo feminino, retrata com acidez e sem piedade uma cena-retrato do deserto existencial da pequena burguesia, os seus sonhos baratos e frustrantes.

O elenco brasileiro começou a trabalhar junto na proposta e o burburinho da cena feminina denuncia a voltagem da paixão investida pela trupe numerosa. Há, aqui, um espírito de teatro, digamos, inebriante, uma sensação eufórica que envolve tudo. Numa escala pequena, este clima entre o brejeiro e o primaveril viceja em quaisquer aglomerações femininas, é próprio das damas. Mas, neste caso, o eixo central da, digamos, garridice, vem da diretora, como uma nota de energia vital que ela sempre consegue imprimir nos seus trabalhos.

O número reduzido de ensaios, para o tamanho da proposta, a convivência limitada com a diretora, o elenco numeroso e a diferença às vezes abissal entre a temperatura das diversas atrizes associadas ao projeto são fatores claros, eles afloram na cena desde o início. Em razão disso, a cena está povoada por corpos muito personalizados, esculpidos com identidade precisa dentro da história de cada uma. Esta é uma das grandes belezas da cena, ver os corpos revestidos de autonomia teatral monologarem e dialogarem.

Trabalhados na história de cada uma, com as densidades, as cristalizações e a expressão específica de cada artista, eles formam um painel intrigante do corpo da mulher hoje e, em particular, da atriz brasileira hoje. Aliás, o espetáculo não consegue (não sei se tentou) expor o concretude dos corpos femininos no tempo da ação da peça, ao redor do final de 1960.

Neste universo tão amplo, duas linhas de trabalho do corpo em cena são particularmente divertidas, as das atrizes Maria Ceiça e Sirléa Aleixo. Despojadas, sem artificialismos, elas conseguem estar em liberdade no espaço cênico, no espaço da modesta copa-cozinha, como nenhuma outra atriz em cena. Sirléa Aleixo, encarregada de uma divertida música-recitação aplaudida em cena aberta, consegue fazer palpitar a carne como se fosse um corpo submisso em ganas de rebelião.

No conjunto, boa parte das atrizes trabalha com a representação de formas rígidas dos corpos femininos. Nesta linha, há uma projeção curiosa de Fabianna de Mello e Souza, figurando a identidade de uma velha solteirona rabugenta. O encanto maior acontece com a velhota solteirona carente, transgressora, levada e sonsa, de Anna Paula Secco, que chega ao sublime com pequenas notas gestuais. Pequenos desenhos feitos no ar com a mão e meneios de cabeça dizem tudo da velha senhora atentada pelo pecado.

Também em Abujamra Presente, dos Fodidos Privilegiados, direção dinâmica de João Fonseca, o corpo se faz como a matéria prima da representação, em soluções híbridas, capazes de reunir o belo, o grotesco, o poético e o anedótico. Um curioso sacolejo corporal percorre o espetáculo, pontua as cenas, espécie de saravá debochado, como se fosse uma saudação ao homenageado: os atores chamam com o corpo o espírito do diretor-criador da trupe, Antonio Abujamra (1932-2015). O elenco também aqui é bem numeroso. Sob um lindo fundo de cena de tramas, fios e teia de Nello Marrese, com a adaga-rosa símbolo da equipe, desfilam os vários atores vestidos por camisolas, uma indicação da habilidade do velho Abu para deixar os corpos nus, entregues à arte, sob uma luz de poema assinada por Daniela Sanchez.

Apesar do engajamento político unidirecional pesado, talvez um pouco incoerente com o espírito anárquico, ácido e iconoclasta do velho diretor, a cena rende uma homenagem única, rara, física até não mais poder, com estilhaços brilhantes de peças, situações de ensaios, tiradas, relatos e o que mais. Vale ressaltar os efeitos corporais cômicos contundentes desenhados por Alexandre Pinheiro e Dani Barros, a sensualidade sinuosa de Rose Abdallah, a bela grandeza dos desenhos corporais quase-dança-espontânea, de Johayne Hildefonso.

E tem muito mais em Curitiba, a conversa não vai parar por aí – até o fim do festival, múltiplas visões corpóreas vão ser propostas. Para começar a esquentar o jogo de ideias, importa sublinhar que o debate não pode passar ao largo da grande novidade carioca de 2018 no campo da expressão física. Foi a estreia da bailarina e coreógrafa Deborah Colker na direção, com a montagem de O Frenético Dancing Days, de Nelson Motta e Patrícia Andrade.

Talvez seja impossível encontrar em cena uma síntese poética mais precisa dos desvairados anos 1970, união de poesia, delírio, imaginação e beleza, corpo desejante de liberdade, do que aquela arquitetada pela performance surpreendente da atriz Natasha Jascalevich. Traduzindo a mulher de sonho, ela surpreende o público com uma notável leveza e com a possibilidade do seu corpo plástico surgir etéreo, quase evanescente, falando de uma temporalidade passada com o corpo e hoje.

Mas a peça, dotada de humor, até mesmo de uma boa veia cômica, precisa da referência imediata, terrestre, contraponto para ressaltar, por contraste, a espessura do seu olhar para o passado. A operação é um sucesso graças a uma atriz de perfil peculiar, uma estrela que consegue ser diva e barraqueira ao mesmo tempo, unir a elegância do porte à largueza dos gestos. Uma composição caricata hilária, de exuberante presença física, traz muito do espírito carioca da década no desempenho de Stela Miranda.

Este par de opostos tenciona bastante o tema, expande o alcance da conversa. Abre o campo para outro ponto. Para não dizer que não se falou da complexidade imensa do assunto corpo, do desafio diabólico, histórico, sempre proposto pela carne, vale considerar a apresentação solo de Regina Casé no festival, no Recital da Onça. Foi a apresentação de um trabalho em processo, com a sua estrutura e a sua fluência em experimentação, uma ousadia sem tamanho na imensidão do Teatro Guaíra. Vale focalizar justo ali no impasse da proposta, exatamente ali onde aparece em estado maior de tensão o problema do corpo expressivo.

Em cena, em diálogo direto com a plateia, a atriz expõe um desafio-problema: conceber uma palestra inovadora sobre literatura brasileira para estudantes de Harvard. Quer dizer, expressão coloquial, comunicação imediata e espontânea, formas quentes e buliçosas, aproximação física, devem surgir combinados com a exposição fria, que se pretende transcendental, típica da alta cultura e da literatura de belo fardão. Trata-se de um conflito histórico no palco brasileiro, remonta ao século XIX – o corpo fervilhante oposto (para quem acha!) ao elevado espírito literário.

A dificuldade existe, concretamente. Logo ela transparece em estado bruto: há um impacto muito maior, mais direto, da atriz, com muito mais efeito, quando ela envereda pela fisicalidade debochada faceira, em oposição aos momentos em que ela busca formas etéreas de expressão. Os gestos de alcance direto, eloquentes, criam composições surpreendentes. Mesmo coadjuvante da palavra na maior parte do tempo, aqui e ali o corpo se solta, se apresenta como tal, apenas corpo, para delírio da plateia.

Os casos escolhidos traçam um mapa nítido de desafios atuais, corporais, do momento histórico da cena nacional. Outros pontos quentes e polêmicos podem ser localizados na grade da Mostra Oficial e, com certeza, na vasta programação do Fringe, a mostra paralela livre. Mas, diante da riqueza de ofertas, o corpo merece ser explorado.

Sem pretensão, contudo: existem outros múltiplos caminhos para pensar a programação da festa teatral curitibana deste ano. Para quem gosta de conversar sobre teatro, esta arte tão humana e tão favorável à vida, só existe uma solução: quebrar o porquinho, pegar as economias e correr para Curitiba. Até o dia 7, uma vasta programação aguarda o amante de teatro, viabilizando conversas iluminadoras. Conversas daquelas que se enovelam em novas ideias, varam a noite, conseguem ver um novo dia nascer, para revelar o brilho de novas cenas.

SERVIÇO

28º Festival de Curitiba – De 27 de março a 7 de abril
ESTIVAL DE CURITIBA
Até 7 de abril de 2019.

As bilheterias do Festival de Curitiba são uma parceria com o ParkShoppingBarigüi e o Shopping
Mueller.
Ingressos
Os ingressos para os espetáculos em cartaz nos espaços administrados pelo Centro Cultural Teatro Guaíra (Guairão, miniauditório, Guairinha e José Maria Santos) estão disponíveis apenas pelo site e pontos de venda do Disk Ingressos.
Os ingressos para as demais 1330 sessões seguem disponíveis nos canais oficinais do evento: pelo site (www.festivaldecuritiba.com.br), aplicativo “Festival de
Curitiba 2019” e nas bilheterias físicas do ParkshoppingBarigüi (Piso Superior – Lado Norte) e Shopping Mueller(Piso L3).
Valores:
Mostra 2019 – De R$ 0 a R$ 70,00 (entrada inteira) + taxa administrativa
Fringe – De R$ 0 a R$ 60,00 (entrada inteira) + taxa administrativa
Serviço: bilheterias Disk Ingresso
Teatro Guaíra – Curitiba
Endereço: Rua 15 de Novembro.
Atendimento: 10h às 22h de segunda à segunda.
Shopping Estação
Endereço: Av. Sete de Setembro, 2775
De segunda a sábado, das 10h às 22h
Domingo, das 14h às 20h.
Shopping Mueller
Endereço: Av. Cândido de Abreu, 127
De segunda a sábado, das 10h às 22h.
Domingo, das 14h às 20h.
Shopping Palladium
Avenida Presidente Kennedy, 4121 – Lj3088
De segunda a sexta, das 11h às 23h.
De segunda a sábado, das 10h às 22h.
Domingo, das 14h às 20h.
Bilheteria Teatro Positivo – Curitiba
Endereço: Rua Prof. Pedro Viriato Parigot de Souza, 5300
De segunda a sexta, das 11h às 15h e das 16h às 20h.