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O teatro do amor ao povo

O amor está no ar – ou no palco. Aliás, se olharmos a História do Teatro Brasileiro, este sentimento doce e encantador está em cena faz tempo. Quem sabe, desde sempre. Não é o caso aqui de tentar pensar as razões do fato, importa apenas constatar a extensão da coisa. Ela é memorável. Tão memorável que causa bastante confusão.
 

Como assim? Ah, olhe ao redor. Uma parte inquieta do teatro brasileiro, sobretudo a ala mais-do-que-jovem em especial, ferve contra esta situação. Aliás, de certa forma, há mais de um século, sempre ferveu. Eles detestam a cena de amor. Para este segmento, o teatro existe e deve ser feito para dependurar a alma humana de cabeça para baixo, dissecá-la, transformá-la numa radiografia do imediato e atual. Feito o ato de autópsia, resta focar as estruturas últimas, as mais decisivas, aquelas compartilhadas com o resto do mundo.

 

Portanto, a mera expressão sentimental, lírica e delicada, seria um equívoco. Ou uma perda de tempo. O sentimental seria sentimentaloide por princípio, eternamente. Logo, visão de mundo superficial, distorcida. Estaria desde sempre condenado, pois, afinal, as manifestações amorosas correntes seriam a celebração piegas de um amor sonhador, pequeno-burguês, divorciado de um sentido mais autêntico do viver. De roldão, estaria diluído no caso o sentido de propriedade, entre outros atrasos de vida. Em resumo, algo para refutar como a quintessência da caretice.

 

A situação contempla pensadores avançados da vida social, viabiliza a construção de um teatro de pesquisa por vezes bastante hermético, para iniciados. Mas, para o teatro em geral, o raciocínio implica em algo grave, bem se pode imaginar. Ao se recusar a falar de sentimentos universais simples, diretos, envolventes, o palco se lança num gueto estreito, se distancia do homem comum. Como o pobre cidadão comum precisa de arte para viver a vida (ninguém, no nosso tempo, consegue viver sem arte), ele corre, então, para as canções românticas preocupadas em aquecer os corações. Existem outras panacéias, mas a música popular ainda é o abrigo por excelência do cidadão órfão do teatro acolhedor de outrora.

 

O que isto significa enquanto História? Bom, vale ir por partes. Dizem que foi Artur Azevedo (1855-1908) – sempre ele, o irresistível – quem botou as canções cotidianas, sentimentais e/ou irreverentes, na boca do povo. Com seus versos fáceis, mas inspirados, muitas redondilhas, aliado a músicos hábeis, AA conseguia fazer o povo sair do teatro cantando. A noite teatral se prolongava pela vida e o sabor da cena virava um deleite cotidiano. O grande mistério está aí: como foi que este casamento se perdeu?

 

A magia conquistada por nosso maior revisteiro – com certeza ele foi o grande inventor da revista teatral brasileira – não surgiu por combustão espontânea. Sim, sua trajetória significou a vitória da comédia. E o caminho de conquista do amor popular fora iniciado com Martins Pena (1815-1848), muito embora nos tempos deste o cômico fosse, aqui, um gênero menor. Nos tempos de Martins Pena, numa noite teatral em cinco atos, a tragédia ou o drama com três atos era o ponto alto do programa, completado, por exemplo, por um bailado e uma comédia, cada qual apenas com um ato, para desanuviar o ambiente.

 

Mas é bom frisar – João Caetano, o ator brasileiro de todos os tempos, dedicou-se ao drama em especial e a tragédias dramáticas, digamos, nas quais deixava à mostra o fígado e o coração. Ele foi um astro popular fulgurante. O jeito desmedido de ser foi, inclusive, um senão interposto contra ele por observadores mais intelectualizados, convencidos de que o ator extrapolava para ganhar o público. Apesar do teatro declamado de seu tempo, de raiz literária forte, ele foi um tigre da Praça Tiradentes – note-se que a expressão tem ressonâncias históricas complexas. Ele espirrava mais corpo e sentimento do que espírito, digamos… opção inferior para a nata intelectual.

 

Os comediógrafos que se seguiram a Martins Pena – Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), França Júnior (1838-1890) e mesmo os doutos literatos José de Alencar (1829-1877) e Machado de Assis (1839-1908) – viram sem opção a ascensão irreprimível do gênero cômico no coração do povo, ainda que os dós de peito e as lágrimas furtivas continuassem a ser cousa de muito prazer. Apesar do nariz torto dos acadêmicos, a cena teatral teimava em caminhar junto com o gosto popular. O mais espantoso é que, lida hoje, ela parece um episódio de candura. Algumas velhas condenações soam ininteligíveis para nós.

 

Há, no entanto, uma certeza: havia uma comunhão pecaminosa. Quer dizer, o teatro brasileiro era sentimental, sentimental demais e não tinha vergonha de se dizer assim, porque assim o povo o fazia. O teatro gostava disso, era natural. A constatação funciona para entender, inclusive, de onde veio o teatro de Nelson Rodrigues (1912-1980), um jornalista que certamente ficou impregnado/impressionado com o sentimentalismo da cena ao seu redor. Os textos transbordavam e outro tanto surgia por obra dos atores. Sem considerar uma troca fervorosa palco-plateia, não se entende Leopoldo Froes (1882-1932) ou Itália Fausta (1878?-1951).

 

A pergunta vem fácil – por que motivo, no teatro brasileiro, este filão de comunicação palco-plateia se esgotou? Se olharmos com atenção para qualquer palco do mundo com alguma expressão, de Buenos Aires a Londres, passando por Madrid, Paris, Nova Iorque, veremos por lá instalado e bem instalado este cenário teatral simples devotado à alma do homem comum. E nós? Não temos pesquisas extensas, mas uma primeira impressão aponta para um jeito estúpido de ser nacional colonizado, no qual domina a voragem para estar na moda, estar a cavaleiro do futuro, de braços dados com o ritmo do mundo. Temos horror ao risco de sermos taxados de caipiras.

 

Se esta primeira explicação for considerada válida, muito da culpa do problema cabe ao Rio de Janeiro, a raiz estaria na síndrome cortesã que nasceu aqui. Já repararam como o Rio de Janeiro precisa estar na moda, ser moda, não ser caipira e, pior, dizer que os outros são caipiras? O sentimento teria começado cedo, um dia ainda escrevo a respeito, mas ele se impôs de fato e de direito com a vinda da família real.

 

Alguém consegue ter ideia do choque cultural que deve ter sido quando a aldeia tosca, sujinha, pobre mesmo, da noite para o dia, por obra do arrojado Napoleão, se tornou capital de um reino europeu??!? Deve ter sido adrenalina na alma, para nunca mais se recuperar. Assim nasceu um impulso louco para buscar a crista da onda a qualquer preço, negar o que se é, esconder a caipirice sob verniz de Europa ou o que for.

 

Portanto, há uma corrida no teatro brasileiro pela novidade de amanhã que espelha esta ânsia de não ser o que é, de parte do povo. Quando as radionovelas e as telenovelas surgiram, elas prenderam nas casas muita gente que adorava teatro, ainda que a rua fosse um programa arrebatador. O teatro começou a empalidecer, mas sobrevivia. Mas, logo de imediato, puxaram o tapete da velha cena.

 

Pois a seguir eclodiu a ideia do teatro moderno, um teatro de conceito e de invenção, uma cena de poesia na qual o sentimento devia ser letra morta, a favor de visões de mundo mais sofisticadas, inclusive o pastiche dos sentimentos. Neste jogo, o compromisso da alma cênica com a verve sentimental se perdeu. A canção, que não era boba nem nada e conquistava uma vida autônoma, liberta do papai teatro, aproveitou a brecha, agarrou os corações e se lançou na vida. O teatro foi se reduzindo, caminhou para ser programa bacana – até os teatros dos subúrbios sumiram.

 

E assim foi – o teatro foi se encolhendo tímido, intelectualizado, ensimesmado com os desafios essenciais do mundo moderno e ficou cada vez menos popular. Pensar o teatro brasileiro hoje significa lidar com estes dados – não se trata apenas de um problema socioeconômico, do baixo poder aquisitivo do brasileiro diante duma mercadoria cara. Sim, o teatro brasileiro é caro para os brasileiros. Basta fazer uma conta simples: calcule dois salários mínimos, portanto um rendimento já bastante considerável na pirâmide nacional dos salários, veja o preço de dois ingressos, imagine ao menos um táxi e umas pipocas. Veja o que a soma representa como percentual dos rendimentos: é pesado.

 

Mas, ainda que caro, ele poderia seduzir, ser uma extravagância romântica para um casal trabalhador – se ele mobilizasse, com as suas propostas, o interesse do casal. Não mobiliza, eis a verdade. Muitas peças encenadas no Rio possuem um horizonte de interesse bastante restrito, esgotam o público-alvo em curtas temporadas e, para alguns segmentos, são absolutamente desinteressantes. Nem de graça as pessoas desejam ver certos cartazes. Isto significa reconhecer que o público teatral encolheu.Existe a proposta sensacional do Sesc, com ingressos baratos – mas boa parte da programação se inclina para esta faixa de interesse restrito.

 

A síndrome – talvez ela pudesse ser nomeada como síndrome do elitismo absoluto ou da ruptura com os corações partidos – acaba sombreando o teatro em geral. Quer dizer, ela cria dificuldade para o teatro desavergonhado que decide embarcar no compromisso com o coração popular, em particular os musicais. O Rio de Janeiro é um dos raros centros teatrais do mundo em que não existe um mercado consolidado de teatro comercial, popular – ou popularesco, se quiserem. Isto significa reconhecer que é um mercado sem o coração do mercado.

 

Um dado curioso, espantoso até, é que muitos atores não se sentem constrangidos em trabalhar em telenovelas, se sentem bem como protagonistas de dramalhões rasgados na televisão, alguns dotados de um desenho sentimental bastante simplório. Grandes atores, eles encantam o público na defesa de cenas que beiram o pastelão. Os mesmos atores, porém, não se sentem à vontade para defender tranquilos uma peça sentimental, equivalente, no teatro. No palco, tem que ser a grande arte inefável.

 

O mais inusitado é que alguns destes grandes nomes se afirmam como cidadãos politicamente engajados, ativistas. Trabalham na televisão sem drama e, nos palcos, rejeitam os dramas de gosto mais popular, em favor de pesquisas arrojadas de linguagem. De quebra, muitos repudiam os musicais. Assim, nem ocupam o palco com equivalentes estéticos das novelas, nem contentam o público construído, amante da TV, na suposição que a arte legítima precisa ser um tipo de desvario que o povo não entende. No seu preciosismo, deixam de montar autores como Ibsen, Tchekov, Durenmatt e os clássicos nacionais, por exemplo, hoje bastante próximos da sensibilidade do homem comum.

 

Parece um saco de gatos? E é mesmo. A pulsação mais plena e acabada da colonização passa por aí. Não reconhecer ou não buscar reconhecer a própria identidade, não se identificar com a dinâmica peculiar da terra, não reverenciar a própria arte ao ponto de levá-la para a praça, persistir num padrão estético expressivo que fala mais ao ego do que à arte ou ao público é algo muito doido.

 

Por isto, dá um prazer imenso constatar que existem espetáculos sem medo de ser pop, de ser povo, de esbanjar sentimento, exalar amor e emoção. Aboliram o ranço elitista. São peças que abraçam o povo e formam um casal sem vergonha, em benefício da pesquisa a respeito da sensibilidade brasileira.

 

É isto, em resumo. O teatro brasileiro feito no Rio precisa se espraiar pela cidade, invadir o Méier, Todos os Santos, Engenho de Dentro, Madureira e Marechal Hermes. Sacudir esta gente. Ele precisará ir mancomunado com a MPB, pegar de volta para a cena a moça brejeira fugitiva, que se mandou para o rádio nos idos dos 1930/1940. Gente, este teatro vai fazer sucesso, o lugar ficou vago.

 

Um abre-alas importante, malicioso e inteligente, vai voltar ao cartaz no Imperator e levantar a poeira do tema. Quem perdeu, deve tratar de ir ver. O musical é um gingado só, da ideia aos corpos. Trata-se do delicioso Quando a gente ama, espetáculo concebido com maestria por João Batista ao redor das músicas de Arlindo Cruz. Histórias rápidas de amor estão entremeadas com as canções, entre as quais as consagradas O que é o amor, Casal Sem Vergonha, O Show Tem que Continuar.

 

Simples assim. Portanto, mais uma página no novo musical Brasil, um ato de amor. O que estará em cena é um episódio luxuoso do casamento entre o teatro e a MPB, no caso, o samba. O elenco honra o tema – reúne Alexandre Moreno, André Muato, Cris Vianna, Édio Nunes, Lu Fogaça, Rodrigo França e Vilma Melo. Consegue imaginar? Importa ver, para saudar o amor nestes tempos em que o sentimento anda difícil por toda a parte. Mais, até: precisamos pensar teatro brasileiro. O tema, urgente, se obriga a explorar este mistério, agora já um tanto antigo, a distância entre a arte da cena e o povo do país. Chegou a hora do amor ao povo entrar em cena. Ou o teatro vai desaparecer daqui. Por falta de amor, exatamente.

 

 

SERVIÇO
Quando a gente ama
Espetáculo de João Batista com músicas de Arlindo Rodrigues
Data: 19 de julho a 04 de agosto
Horário: Sextas e sábados, às 20h. Domingos, às 19h
Local: Imperator – Centro Cultural João Nogueira (Teatro)
Endereço: Rua Dias da Cruz, 170 – Méier/RJ
Valor do Ingresso: Plateia inferior e balcão: R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia)
Local de venda: Bilheteria do Centro Cultural, Terça e Quarta: 13h às 20h30; Quinta a sábado: 13h às 21h30; Domingo: 13h às 19h30. Ou através do site ingressorapido.com.br
Classificação: 14 anos
Duração do espetáculo: 90 minutos
Informações: (21) 2597-3897 (das 9h às 12h/13h às 18h). Exceto Feriados.