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Amor, paz e teatro

        

Quantas vezes você sonhou com a paz? Quantas vezes desejou o amor universal, o fim das guerras e das fábricas de armas? Para os céticos, esta inclinação é, no mínimo, pura perda de tempo – consideram impossível a união de todos os seres, como se fossem irmãos.

Será? Lembro sempre de uma imagem forte. Comecei a estudar império romano, na faculdade, e descobri atônita que uma das várias causas da queda do império foi a atitude dos soldados. Os soldados do incrível exército romano!

Eles começaram a se converter a uma nova religião, o Cristianismo, e passaram a cruzar os braços, em lugar de esganar o inimigo. Não matarás é um mandamento forte. Quando a outra pessoa surge verdadeiramente como irmã, os olhos mudam e os braços querem mais os abraços do que a carnificina.

Um dos grandes temas do nosso tempo é bem este. Como conquistar o exercício mais pleno possível da humanidade, sair de disputas mesquinhas, capazes, sempre, de liquidar a dimensão maior da vida?

Para quem faz teatro, este sonho não parece tão distante. Diante do palco, diante daquele que se entrega em cena a um mundo imaginado, a plateia forma um corpo de energia único, um corpo que anseia entender mais a existência, para elevar a vida a um lugar de paz. Como se fosse um mar de irmãos.

Não há dúvida de que o teatro acontece como uma atividade produtiva, com desenho social igual a qualquer outro engenho humano para ganhar a vida. Portanto, no cotidiano de trabalho e de produção, existe a luta para conquistar mercado – seduzir fãs ou cooptar adeptos – e a luta para ter poder sobre a memória social.

O caso brasileiro é bem exemplar – aqui, o teatro profissional, definido por ser rotina de mercado e de sociabilidade, começou no Rio de Janeiro do século XIX. A partir da cidade maravilhosa, ele falou para o país inteiro por mais de um século. E encantou. Costumamos chamar esta arte de teatro brasileiro. E por todo o território, os que desejavam domar a cena e obter o reconhecimento  do país, para o Rio deveriam rumar.

No entanto, há nesta história um grande mistério – nem o Rio de Janeiro, nem, a partir dos anos 1950, a industriosa São Paulo, conseguiram edificar um teatro estável arrebatador permanente. O projeto teatral que mais longe levou esta ambição, o teatro moderno, fez água. Seria preciso um longo texto para rondar este campo de força escuro.

O certo é que, a certa altura do século XX, teatros ou teatralidades locais, inúmeras, começaram a aflorar por todas as partes e a fazer do palco brasileiro um lugar bastante singular. Falar, hoje, de teatro brasileiro é um desafio e uma aventura – apesar dos velhos centros hegemônicos, Rio e Sampa, há uma teia de criatividade e uma força de produção que se espraia por todo o país.

Neste jogo, a disputa, o confronto, a guerra por espaço e poder tendem a se diluir em prol da troca, do diálogo. Graças à potência do que poderíamos chamar de “teatro de grupo”, um dispositivo fraterno tende a ocupar as cenas; uma poética do amor, digamos, em falta de nome melhor, tende a ser a ordem do dia.

Este mecanismo novo, de alto potencial revolucionário para a arte da cena, da concepção à circulação, marcou o Prêmio APTR 2021, destinado a jogar o foco sobre os trabalhos teatrais virtuais da pandemia. Nacionais! Cadeia nacional de criação! Há muito para debater nesta nova realidade, mas alguns pontos ganharam realce com o prêmio, parecem mais urgentes.

O primeiro reside justamente na indicação de um perfil novo para a classe teatral, um perfil que começa a se sedimentar, distante do antigo divismo e do desejo de quebrar a perna do parceiro de cena. Ainda que a vaidade artística possua importância para mover a produção, a arte do encontro parece se tornar, agora, mais decisiva.

Neste circuito, se tornou óbvio o estilhaçamento da noção de brasilidade. A comissão julgadora se defrontou com propostas teatrais relevantes concebidas do Amazonas ao Rio Grande do Sul. A face brasileira que emergiu desta dinâmica surpreende por sua variedade, colorido, nuanças de idioma e de visões de mundo.

O segundo ponto importante diz respeito à autoria da obra. O recorte escolhido para fixar as categorias de premiação escapa da fatura poética e incide sobre as modalidades de produção. Assim, tanto foram vencedores, premiados, artistas-produtores, capazes de conceber e de formatar as suas obras, como produtores no sentido mais convencional, agenciadores das potências criativas para a estruturação de uma produção.

A engrenagem da história talvez esteja caminhando, aqui e agora, para um lugar novo de proposição poética, o lugar do artista produtor. A condição é particularmente favorável para a dinâmica de coletivos e grupos, negativa para o jogo de star-system no qual a produção dá todas as cartas e abre e fecha as cortinas.

Parece bobagem elucubrar a respeito de tudo isto… – mas como resistir diante de uma bobagem sonhadora favorável para um futuro humano melhor, de amor e paz? Enfim, talvez o jogo imposto pela pandemia, com o teatron, seja um jogo positivo, contraditoriamente de aproximação, fraternidade, um caminho mais iluminado para a vida no mundo.

Os teatros ensaiam a reabertura – do teatron na tela, retornamos passo a passo ao teatro no palco. Com certeza os dois formatos coexistirão. Mas está tudo igual? Não se trata apenas de uma brincadeira com as letras, mas da busca de uma nova era, a tentativa de ver se a arte mudou, como mudou.

Dentre as propostas do momento, convites antigos para a ampliação da visão da vida humana retornam e certamente o sabor destas obras apresenta coloridos ditados pelos novos tempos. Não, não se trata apenas das cores das máscaras na plateia, mas das almas em cena e na vida.

Não há dúvida que a remontagem de Brasileiro Profissão Esperança, com Claudia Netto e Claudio Botelho, no Teatro Clara Nunes, aguça a curiosidade teatral de qualquer um. Afinal, trata-se de um musical delicado de estatura histórica exemplar.  Neste recomeço, surpreende ter esta dupla de novo no palco, quando ela assinalou o início da grande retomada histórica dos musicais, lá nos anos 1990.

Teremos, contudo, um outro retorno ao passado, pródigo para o pensamento sobre o futuro. Uma outra viagem teatral impactante vai estrear com plateia em breve: Um Passeio no Bosque, do autor norte-americano Lee Blessing. A peça, cuja primeira montagem aconteceu aqui em 2000, entrará em cartaz no Solar de Botafogo a partir de 3 de setembro.

Neste caso, trata-se de teatro de texto, ideias e visão de mundo. O original foi escrito em1988 e tem como eixo central o debate a respeito do desarmamento, com certeza uma etapa importante para a conquista da paz mundial.

A versão atual, que virá acompanhada de uma exposição a respeito do tema, foi dirigida por Marcelo Lazzaratto e conta com um dado peculiar – o ator  Beto Bellini defende agora o papel do seu antagonista na encenação brasileira original.

Em cena, são dois diplomatas representantes de mundos antagônicos – artificio escolhido pelo autor para perguntar a respeito das possibilidades da amizade entre opostos, para debater o uso social e histórico da guerra. O encontro acontece na Suíça, território neutro, e o bosque cerca o confronto cênico entre um experiente e cético diplomata russo (Beto Bellini) e um jovem diplomata idealista norte-americano (Gustavo Merighi).

Sem dúvida, a lição parece clara – é necessária a livre exposição de ideias, o encontro, o diálogo, a visita à História. Talvez estes recursos surjam para muitos como frágeis armas diante de mísseis e canhões, afinal artefatos de grosso calibre e alto valor comercial.

No entanto, se insistirmos em afirmar que o valor mais elevado de todos é a vida, talvez as palavras possam dominar os paióis. Afinal, foi com o verbo que os cristãos armaram hostes absolutamente devotadas à paz, numa voltagem capaz de ajudar a derrubar um império, o maior da antiguidade.

Por favor – não argumente que, logo depois, as mesmas palavras armaram inacreditáveis guerras santas, derramaram sangue de multidões. A linha do texto, diante de uma possível lição da pandemia de coronavírus, deseja estimular o pensamento nobre de um recomeço.

Neste lugar, vale o sonho: com muito amor, paz e fraternidade. O caso do soldado romano significa apenas que cabe a cada um fazer a sua pequena parte, nem que seja cruzar os braços ou abraçar o pretenso inimigo, como na encenação de uma grande peça. Apenas uma peça, do humano mais do que humano.

PREMIO APTR – FINALISTAS E VENCEDORES:

CATEGORIAS:

1. ESPETÁCULO INÉDITO AO VIVO

A arte de encarar o medo – São Paulo

Produtora / Grupo: Os Satyros

Direção: Rodolfo García Vázquez

Jacksons do Pandeiro – Rio de Janeiro

Produtora / Grupo: Sarau Agência de Cultura

Brasileira – Direção: Duda Maia

Parece loucura mas há método – Rio de Janeiro

Produtora / Grupo: Grupo Armazém

Companhia de Teatro

Direção: Paulo de Moraes

O pior de mim – Rio de Janeiro

Produtora/Grupo: Realejo Produções Culturais

Texto e atuação :Maitê Proença

Direção: Rodrigo Portela

Tudo que brilha no escuro – Rio de Janeiro

Produtora / Grupo: Polifônica

Atuação : Júlia Lund

Direção: Luiz Felipe Reis

Tudo que coube numa VHS – Recife

Produtora/Grupo: Grupo Magiluth

Direção: Giordano Castro

2. ESPETÁCULO INÉDITO EDITADO

O Astronauta – Rio de Janeiro

Produtora / Grupo: CAJA Arquitetura Cultural

Direção: José Luiz Jr

Figo – Rio de Janeiro

Produtora / Grupo: Projeto Figo

Direção: César Augusto

Kabaré online – Rio de Janeiro

Produtora / Grupo: Cia dos Atores

Direção: César Augusto e Marcelo Olinto

Sigo de volta – São Paulo

Produtora / Grupo: Complementar

Produções Artísticas

Direção: Letícia Cannavale e Erik Vesch

Terças Pretas – O Negro em estado de

representação – Recife

Produtora / Grupo: Grupo O Poste Soluções

Luminosas

Direção: Samuel Santos

3. ESPETÁCULO ADAPTADO AO VIVO

Contrações – São Paulo

Produtora / Grupo: Grupo 3 de Teatro

Direção: Grace Passô

Joana de gota d’água a seco – Rio de Janeiro

Produtora / Grupo: Laila Garin

Direção: André Curti e Artur Luanda Ribeiro –

Cia. Dos à Deux

Mata teu pai – Rio de Janeiro

Produtora / Grupo: Cia. OmondÉ

Direção: Inez Viana

Atuação Débora Lamm

Negra Palavra – Solano Trindade

Rio de Janeiro

Produtora / Grupo: Coletivo Preto

e Companhia de Teatro Íntimo

Direção: Orlando Caldeira e Renato Farias

Osmarina Pernambuco não consegue esquecer

uma palestra performance – Rio de Janeiro

Produtora / Grupo: Complexo Duplo /

Complexo Sul

Direção: Keli Freitas

Tudo ao contrário – A Cena em prol da vida

Rio de Janeiro

Produtora / Grupo: CEFTEM

Direção: João Fonseca

4. ESPETÁCULO ADAPTADO EDITADO

Farol de neblina – Belo Horizonte

Produtora / Grupo: Rubim Produções

Direção: Yara de Novaes

Habite-me: teatro de máscaras, dança

e bonecos – RJ / RS

Produtora / Grupo: Cia. 4 Produções

Brasil e Territoire 80 / Canadá

Direção: Paulo Balardim

O som e a fúria – um estudo sobre o trágico

Rio de Janeiro

Produtora / Grupo: Definitiva Cia. de Teatro

Direção: Jefferson Almeida

Processo Julius Caesar – Rio de Janeiro

Produtora / Grupo: Cia. dos Atores

Direção: Rafael Gomes

Vida Seca – Navegantes – SC

Produtora / Grupo: Cia. Manipuladora

de Forma Etc e Tal

Direção: Max Reinert

5. JOVEM TALENTO – TROFÉU

MANOELA PINTO GUIMARÃES

Elenco de Negra Palavra – Solano Trindade –

Rio de Janeiro

Elenco de Sigo de volta – São Paulo

Giullia Bertoli por A lista – Rio de Janeiro

Luiza Loroza por Jaksons do Pandeiro –

Rio de Janeiro

Nina Denobile Rodrigues por A arte de encarar

o medo – São Paulo

6. CATEGORIA ESPECIAL

Grupo Magiluth – Recife

Indicado pela inovação na utilização de

múltiplas plataformas digitais na relação

entre atores e público, nos espetáculos

Tudo que coube numa VHS e Todas as

histórias possíveis

Fabio Porchat – Rio de Janeiro

Indicado pelo Prêmio Humor e por diversas

iniciativas em favor dos trabalhadores

de teatro

Festival FETEAG – Festival de Teatro do Agreste

Indicado por ser um festival conectado com

mundo a partir do interior de Pernambuco.

Com 40 anos de história, em 2020, o FETEAG

migrou para web realizando 92 espetáculos

e 6 encontros online

Grupo O Poste Soluções Luminosas – Recife

Indicado pelo trabalho em Terças Pretas –

O Negro em estado de Representação

Teatro da Vertigem – São Paulo

Indicado pela contundência simbólica e a

reverberação da performance, a partir do

Basil pandêmico, com a colaboração de Nuno

Ramos e Eryk Rocha

Projeto Teatro em Movimento digital –

Belo Horizonte – Indicado pela qualidade e

diversidade dos trabalhos apresentados nas

plataformas digitais

Brasileiro, profissão: esperança

FICHA TÉCNICA

Texto: Paulo Pontes

Direção: Charles Möeller & Claudio Botelho

Elenco: Claudia Netto e Claudio Botelho

Direção musical e arranjos: Thiago Trajano

SERVIÇO

Local: Teatro Clara Nunes (Rio de Janeiro, RJ)

Data: 13 de agosto de 2021

Horário:  sábados e domingos, às 19h

Temporada: até 5 de setembro de 2021.

Quanto: R$1. Classificação: 12 anos.

Um Passeio no Bosque

FICHA TÉCNICA

Autor – Lee Blessing

Tradutora – Bárbara Heliodora

Diretor e Iluminador – Marcelo Lazzaratto

Elenco: Beto Bellini e Gustavo Merighi

Coordenação de Produção – Tina José

Direção de produção – Erika Barbosa

Produção Executiva – Ana Velloso e Vera Novello

Assessoria de Imprensa – Alessandra Costa

Redes Sociais – Fernanda Portella

Cenotécnico – Matheus Tomé

Figurinos – Ricardo Pettine

Art designer – Ivan Vinagre

Visagismo – Susi Merighi

Operador de luz e som – Jonas Ribeiro

Fotos – Kim Leekyung

SERVIÇO

Estreia dia 03 de setembro

Temporada até 25/09 – sextas e sábados – sempre às 20h

Valores: R$40,00 / R$20,00

Lotação: 90 lugares

Classificação 12 anos

Acessibilidade (elevador).

Vendas pela internet: plataforma INTI (INTI – A primeira plataforma 100% transparente do mercado (byinti.com)

BRUMAS DE MIL MEGATONS EXPOSIÇÃO – 08 telas – Complementar ao espetáculo Um Passeio no Bosque, de Lee Blessing. A exposição pretende colocar lado a lado as s armas nucleares e as armas de informação, baseadas nas novas tecnologias de inteligência artificial, talvez um possível campo de guerra para o futuro da humanidade.