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A ordem é: vamos namorar São Paulo

São Paulo é outro mundo, é um lugar muito longe. Duvida? Pois reconsidere sua visão. Nem sempre a distância se faz por quilômetros ou por tempo gasto para chegar. Às vezes, o lugar é logo ali, mas é como se lá o mundo estivesse virado de cabeça para baixo, fosse outro planeta. Um pouco como, no Rio, a relação Zona Norte- Zona Sul. Um tempinho de viagem e zás – entramos numa relação civilização-mundo de outra ordem, quase irreconhecível, uma espécie de espiral etérea de deslumbramento com a diferença abissal do outro.

 

O.K., para muita gente boa São Paulo não é longe, é logo ali. E parte desta gente acha também que os paulistas ainda estão apegados à equação Brasil-século XIX. Mas eu, que embatuco sempre com avião, eu discordo, penso que qualquer ponte-aérea é arremedo do caminho para Tóquio – e olha que eu desconfio que jamais irei a Tóquio, ainda que eu ame o Japão. É muito longe! Pois São Paulo, hoje, é uma espécie de tóquiodoriodejaneiro, um lugar no qual a vida anda de cabeça para baixo. É muito longe. O século XIX, por lá, se foi – e, sorry, gente bronzeada distraída, despencou decidido por aqui.

 

O leitor há de implicar: mas que equação Brasil-século XIX é esta? Explico. O século XIX tem seus mistérios e seu poder é monumental. Acredito que foi o único período da História – e vejam, foi por um pequeno lapso de tempo – no qual o Brasil andou em sintonia com o tempo do mundo. Antes, na colônia, estivemos no esgarçamento humano total, infinitas temporalidades dispersas pelo vasto território. Inaugurado o novo século, por sugestão de D. João, empurrão de Napoleão e obra da inefável e pouco lembrada D. Leopoldina, ingressamos no século com torque de motor a vapor (mas sem os motores, pois cá não os tínhamos…).

 

Mas o que digo? Mentira! Este Brasil do século XIX que era puro e intenso século XIX, sintonia perfeita com o melhor da época, era, na verdade, o Rio de Janeiro, ainda nada maravilhoso, embora resplandecente à beira mar plantado… O resto do país, do pobre país, decaído o ouro e arruinadas as Gerais, era a roça! E São Paulo era a roça mais braba da terra, a roça dos aventureiros inquietos, humilhados bandeirantes transformados em plantadores de marmelo. Esta foi a equação Brasil-século XIX: as luzes do Rio tentando iluminar as trevas do país-roça, luzes sangrentas movidas à escravidão, um crime no pensamento porém legalidade naquela vida. O país vivia a reboque de sua capital federal pura luz e sentia intensa admiração por ela, o resto era caipirada e matutice.

 

Algumas peças teatrais da época ilustram bem este Brasil – basta passar os olhos nas comédias do século XIX, marcadas pela oposição Corte-Roça. Na vida, contudo, logo a equação se revelou uma dissintonia com o tempo: veio a indústria, instaurou-se a igualdade e a liberdade humana, mas o Brasil não viu. Foi o furor bandeirante quem assumiu tais bandeiras, mas no século XX. E foi então que São Paulo começou a se tornar um lugar longe… cada vez mais longe.

 

É inegável que persiste em São Paulo algo do século XIX – quer dizer, da velha equação Brasil-século XIX. Esfumado no ar, paira aqui e ali um cheiro de estofo caipira. Consigo perceber a equação ao circular pela cidade e, com o meu s litorâneo carregado, logo ouvir a velha pergunta-cumprimento, entre a admiração e o elogio: “Você é… carioca?” É quase uma declaração de amor eterno, pois a frase vem seguida por um suspiro de devaneio, como se a pessoa dissesse: “Ah, o Rio!…” E, acreditem, às vezes elas dizem.

 

Ao andar pelas ruas de São Paulo, mesmo naquelas ruas em que a fortuna impera e em que é preciso romper a custo a atmosfera impregnada de ectoplasma capitalista, sempre há a deselegância discreta das meninas nativas. O fato também é corriqueiro em shoppings de luxo dignos de Miami ou de principados árabes – a vida de corte não impregnou o jeito de ser da cidade, a roça segue envolvendo muitas almas…

 

No entanto, a imensa fortuna borbulhante da cidade projeta-a, para aprisioná-la, no coração do redemoinho consumista do século XXI. São Paulo é chique e é cafona. São Paulo é rica. São Paulo é um shopping febril. E surpreenda-se: é muito civilizada. Mas é Brasil, portanto, mestiço selvagem, tem lá a sua grosseria nativa, coisa bem nossa, mas sem comparação, contudo, com as trevas humanas que vivemos hoje, por exemplo, na bronzeada vida maravilhosa.

 

A coisa fica mais séria se olhamos a Pauliceia com bastante atenção. O que se vê? Ah, há os teatros – ah, os teatros de São Paulo, maravilhas da civilização perdidas nos trópicos! O prefeito do Rio devia organizar excursões escolares regulares para os burgueses cariocas (projeto barato, na atualidade eles caberiam numa modesta van!) para que eles conhecessem o que é teatro e empreendessem aqui, como queria a Lei Rouanet. Alfa, Santander, Itau Cultural, Folha, Novo, Procópio Ferreira, Frei Caneca, MASP, VIVO, Sérgio Cardoso, FAAP, Porto Seguro, Itália… a lista não tem fim. E o colosso do SESC SP? Desconfio que é impossível, hoje, saber quantos teatros existem em atividade em São Paulo. E o melhor de tudo: ocupados com teatro. Com espetáculos deslumbrantes, marcados por uma seriedade de produção desconcertante, uma capacidade de execução notável.

 

Ah, São Paulo, como não te amar se você tem esta generosidade com a alma humana desvalida do presente, tão necessitada de teatro, este colo quentinho da humanidade? Mas importa ficar alerta – com o fígado preso no século XIX, São Paulo padece de uma vergonha do seu dinheiro que é estarrecedora, intrigante, uma forma de culpa cultural estranhíssima, uma coisa que faz o rico viver o seu dinheiro com vergonha de ser rico e o pobre chafurdar na pobreza com vergonha de querer ser rico enquanto faz tudo para ficar rico. Se a aristocracia francesa inventou o nouveau riche, São Paulo inventou o nouveau pauvre. O lema é: pode-se ter dinheiro, mas urge fazer como que se não o tivéssemos, soframos… Pode ser que seja praga da fundação jesuíta, vai saber?

 

Assim, há por lá um vago preconceito contra o teatro de grande produção, incorporando-se neste rol o teatro musical, pois a pobreza mental do país ainda vê o musical como alienante, apesar de Brecht, dos cabarés alemães, etc – mas vamos pular esta outra discussão, muito longa e pouco oportuna aqui. De certa forma, apesar do panorama impressionante da vida teatral paulista, vigora na comunidade teatral deles uma espécie de raça teatral, como se estivéssemos nos estádios dos clubes, em que o que conta é a coisa visceral, subterrânea, de invenção, para iniciados. É preciso transcender, afundar o dedo nas dores mais estranhas da alma, mesmo que a maioria nem tenha ideia do que isto possa ser.

 

Este clima materializa atmosferas loucas. Além da relação tortuosa com o dinheiro, o odiado capital, maldito objeto de desejo e de repulsa, vigora um amor estranho ao despedaçamento, aos fragmentos, farrapos. E um amor doido à conversa íntima. Vale ter no máximo trinta pessoas na plateia – trezentas já é quase o caminho da excomunhão. Na tabela, o único teatrão aceitável é o TBC, porque histórico, fracassado, acabado, morto, enterrado. Se algum zumbi-Zampari sair da tumba agora e ousar fazer um novo TBC, vai levar ovo, no mínimo. Os paulistas sabem com excelência fazer um teatrão único, arrebatador, mas eles têm vergonha disto, acham que é algo velho, para ser visto por pessoas lobotomizadas.

 

Esquizofrênicos, distantes de si, teatros e mais teatros vicejam pela cidade de São Paulo, portanto. As formas teatrais são várias, de extrema riqueza. Quem pula a cerca do experimentalismo nobre e cai na vala do comercialismo espúrio perde o prestígio – mas o caminho inverso até pode ser celebrado, mesmo que o herói seja recebido com nariz torcido, pois o cheiro de dinheiro fica pregado para sempre em quem transita no palco comercial. Entretanto, para quem passeia por São Paulo e adora teatro, que prazer é mergulhar na Broadway paulista, a verdadeira Broadway brasileira – vai, que é linda!

 

Talvez por causa do TBC, os paulistas fazem teatro com um acabamento que, no Rio, só vigorava de verdade no finado Teatro Mesbla, aquele bem comercial de comédias rasgadas. Aqui, no Rio, as paredes trepidam com qualquer movimento de porta, as taças de cristal são de eloquente plástico, as sedas são tão sintéticas quanto os cabelos da Barbie… Para o teatro carioca, esta indigência é normal e deve ser contornada pela verve, pela imaginação, o tal do espírito de corte. E se o ator ri do fiasco, a plateia aplaude em cena aberta, em especial se for plateia da classe. O vexame vira criatividade. E pensar que os paulistas de teatro se envergonham de viver o oposto disto, desprezam a carpintaria nobre? Ô xente, que injustiça…

 

A longa reflexão nasceu após uma voltinha rápida de fim de semana por São Paulo. E também por uma lufada de alento, após a alvissareira notícia da estreia no Rio, afinal, da grande montagem paulista de O Homem de La Mancha, de Miguel Falabella, agora no Teatro Bradesco – um dos raros grandes teatros do Rio hoje. Um teatro que merece o século XXI.

 

A encenação é deslumbrante, imperdível, atesta o padrão de produção paulista com rigor. E o pior de tudo: ela revela por que São Paulo convenceu Miguel Falabella, carioca de quatro costados, a mudar de CEP. Miguel como Cervantes, sonhador como Quixote, Falabella, a histórica loura má do palco do Rio, não economizou talento ou força de trabalho para obter uma cena teatral poética triunfal. E a cidade não foi mesquinha com o seu novo filho. O resultado é digno de todos os louvores recebidos: deslumbrou já na estreia. Garanto, é imprescindível ver a montagem.

 

A fantástica produção é mais do que benvinda. A cidade foi a capital cultural do país, foi o berço do teatro profissional brasileiro, mas apresenta, hoje, uma cena tímida – são apenas cerca de dez musicais agora em cartaz no Rio, a maior parte formada por produções modestas locais. Neste quadro, é imprescindível receber as grandes montagens de São Paulo, sobretudo a fortuna musical.

 

Entre as duas cidades, surgiu um descompasso histórico de tal ordem que a maioria das produções paulistas não vem ao Rio. Aliás, a cartelera carioca de musicais é tão pouco louvada que não chega a merecer uma coluna de destaque, especializada, no principal informativo teatral carioca, o suplemento Rio Show, do Jornal O Globo. E o gênero, convenhamos, é bem típico do Rio, essencial para a saúde da cidade.

 

Uma pena. Um mercado teatral menos anêmico no Rio seria fortalecedor também para São Paulo, destaque-se. A praça teatral nobre ficaria dobrada. No momento, este é um grande passo que importa conquistar – um passo de gigante, vale reconhecer, agora que São Paulo ficou tão longe, se perdeu no horizonte. Talvez seja missão para bandeirante, quem sabe.

 

Mas a esperança move o mundo quando o amor ao teatro é verdadeiro: depois de tantas rusgas, de uma falsa inimizade histórica, chegou a hora de começar o namoro tão adiado entre Rio e SP. Que a fumaça das fábricas se una à espuma do mar e os deuses do tablado sejam louvados de forma ampla, geral e irrestrita, estejam eles dançando e cantando o amor aos homens, recitando dramas e risos cotidianos ou procurando fígados para esboçar estudos sobre a matéria de que são feitos os seres. Será que chegou a hora estimular vivamente o diálogo cênico interurbano, fazer São Paulo ficar mais perto, bem mais perto, de todos nós? A sorte esta lançada, torcemos.

 

SERVIÇO:

O Homem de La Mancha
Temporada: 9 de junho a 27 de julho de 2018
Horário: quintas e sextas às 21h, sábados às 17h e 21h, e domingos às 20h
Local: Teatro Bradesco – Shopping Village Mall
Endereço: Avenida das Américas, 3900 – Barra da Tijuca – Rio de Janeiro – RJ
Classificação: 10 anos
Duração: 105 minutos
Gênero: Musical
Ingressos: R$75,00 até R$190,00
Informações: 21 3431-0100
Capacidade: 1060 lugares