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QUARENTENA DE AMOR

Não sei o que aconteceu com você, leitor. Você está bem, na masmorra ainda? Ou se jogou no mundo?  Peço desculpas se eu insisto neste genérico masculino e não cedo ao atualíssimo leitxsr, sopa de letrinhas que nem sempre sei usar. A minha idade justifica a opção antiga, sem intenção de excluir ou ofender – entendo como antigamente, penso que a palavra é generosa e abarca a todos.

Então – não sei como foi a sua quarentena. Qual foi o seu amor? Valeu a pena? Aqueceu o seu coração? Iluminou o seu cérebro? O meu foi delicioso – foi um paraíso. Não sei se você já leu a Divina Comédia, de Dante. Se leu, sabe o que é aquela sensação do final, de chegar na plena luz; com certeza você se extasiou com a mágica verbal do autor, capaz de materializar o paraíso nas palavras.

Se não leu, desculpe a franqueza: morro de inveja de você, pois ainda terá a espetacular chance de viver esta emoção. Honestamente? Não perca. Vale todas as letras que o danado escreve. Este será sempre um dos maiores livros da humanidade.

Também sinto uma inveja bruta de quem nunca leu Eça de Queirós – afinal um Queirós admirável. Principalmente A Cidade e as Serras. Não, nenhuma relação com sítios-esconderijos. O impacto atinge mais embaixo: em resumo, a pena investe contra o deslumbramento nosso, caipiras basbaques, com a civilização.

Pois bem, a minha quarentena tem sido pura entrega a um amor profundo: a entrega aos livros. Um grande deleite. Li coisas novas, reli delícias antigas, treli coisas queridas, uma senhora quarentena de amor. Que prazer! Não, não foi tudo prazer.

De repente, me vi diante de uma ameaça assustadora ao meu amor supremo. Descobri que as livrarias nacionais estão correndo risco sério, não estão suportando os efeitos da quarentena. Se a sua sobrevivência já andava refém de sobressaltos, pois, na realidade, o brasileiro lê muito pouco, mal lê, o isolamento precipitou as contas no abismo.

Não fiquei indiferente: o amor exige fidelidade e dedicação. Fiz o que pude, respondi ao apelo de socorro de algumas que amo muito, em particular a Elizart, de livros usados, e a Argumento, livraria de rua. Não consigo imaginar a vida sem livros, nem o mundo sem livrarias.

Mas não bastava este susto nacional. Logo descobri que em breve ficaremos restritos às letras nacionais – a alta do dólar e do euro fez com que os livros importados virassem casos de amor impossíveis, como o amor de Dante por Beatriz. Para dar aulas, os professores universitários precisam importar livros. Quer dizer, precisavam: a nova ordem econômica tornará impossível esta prática.

Tudo bem. Fazer o quê? Já ia aquietando a minha perplexidade diante do absurdo de ter que ler menos e pronto, ficar contida no cercadinho nacional, quando a habilidade nacional para piorar o que já estava ruim entrou em cena. Em lugar de situar o problema dos livros, muito grave para a educação e a cultura, e tentar pensar formas para resolvê-lo, para atenuar ou contornar a crise, o governo resolveu reeditar o Savonarola (1452-1498).

Parece que temos um Savonaguedes para chamar de nosso, vamos queimar livros. Quer dizer, mais sofisticados, vamos aperfeiçoar o velho tipo queimador de livros. Assim, em lugar de queimar os livros disponíveis, existentes, queimaremos os livros futuros, estrangularemos a edição de livros, criando um imposto novo sobre eles. Devemos, de verdade, aplaudir o ministro Guedes, pois regressaremos ao universo de trevas mentais em que faz pouco tempo vivíamos?

Quando cursei a minha faculdade, o mercado editorial brasileiro era canhestro. Nas primeiras aulas na UFRJ os professores avisavam: quem não lê em francês, trate de aprender. A bibliografia era toda francesa. Até alguns estudos de História do Brasil traziam a obrigação da bibliografia francesa. De lá para cá, a cena mudou radicalmente e um estudante pode fazer o curso superior lendo todos os livros em português.

Ainda assim, com certeza o espaço social do livro no Brasil ainda precisa ser muito ampliado, pois permanece indigente. Quem viaja – e basta ir ali na Argentina – sabe o que é um mercado pulsante de livro. Aqui, corremos o risco de, ao lado do analfabeto funcional, que inventamos e cultivamos com acuidade, criarmos o analfabeto social – seres que chegam ao ápice da sociedade e, ainda que até tenham estudado, não possuem um letramento social à altura dos diplomas acumulados e das funções exercidas.

Analfabetos sociais são perigosos. Costumam se mover não apenas sob antolhos, mas debaixo de estreita visão de mundo. Leram apenas as certezas, são inimigos da poesia e não fazem ideia do que possa ser imaginação. Não olham a vida com generosidade ou grandeza, jamais sentiram o incêndio das suas ideias graças às imagens espetaculares das letras de um Dante ou de um Eça. Por isto, não respeitam os livros e não se preocupam em semeá-los por toda a parte.

Na quarentena, flertei muito com amores antigos, amores que o meu coração teima sempre em acarinhar: os viajantes estrangeiros que andaram pelo Brasil e escreveram as suas impressões sobre esta terra desconcertante. Bati os olhos num texto impactante para o momento, escrito por Elizabeth Cary Agassiz, em 1865, apesar de D.Pedro II:

           “As artes são muito negligenciadas no Brasil e é medíocre o interesse que despertam. São tão raros os quadros quanto os livros nas casas brasileiras. (…)

         Pouca coisa tenho a dizer sobre a escola para meninas. Em geral, no Brasil, pouco se cuida da educação das mulheres, o nível de ensino dado nas escolas femininas é pouquíssimo elevado; mesmo nos pensionatos frequentados pelas filhas das classes abastadas, todos os professores se queixam de que lhes retiram as alunas justamente na idade em que a inteligência começa a se desenvolver. A maioria das meninas enviadas à  escola aí entram com a idade de sete ou oito anos; aos treze ou quatorze são consideradas como tendo terminado os estudos. O casamento as espreita e não tarda a toma-las(…)

Efetivamente, nunca conversei com as senhoras brasileiras com quem mais de perto privei no Brasil sem delas receber as mais tristes confidências acerca de sua existência estreita e confinada. Não há uma só mulher brasileira, que, tendo refletido um pouco sobre o assunto, não se saiba condenada a uma vida de repressões e constrangimento. Não podem transpor a porta de sua casa, senão em determinadas condições, sem provocar escândalo. A educação que lhes dão, limitada a um conhecimento sofrível de francês e música, deixa-as na ignorância de uma multidão de questões gerais; o mundo dos livros lhes está fechado, pois é reduzido o número de obras portuguesas que lhes permitem ler, e menor ainda o das obras ao seu alcance escritas em outras línguas. Pouca coisa sabem da história de seu próprio país, quase nada de outras nações, e nem parecem suspeitar que possa haver outro credo religioso além daquele que domina o Brasil; talvez mesmo nunca haja ouvido falar da Reforma. Não imaginam que um oceano de pensamentos se agita fora do seu pequeno mundo e provoca constantemente novas fases na vida dos povos e dos indivíduos. Em suma, além do círculo estreito da existência doméstica, nada existe para elas.”

O texto aponta para onde caminhamos – naturalmente, com democracia. Quer dizer, o retrocesso não envolverá apenas as mulheres, agora iremos todos para esta forma histórica brasileira de existência, cujos horizontes estão contidos com firmeza nas paredes do lar. Paredes nuas, sem livros, pois afinal eles se tornarão artigo de luxo.

Mas não pense que o seu amor poderá burlar o interdito lançado por nosso Savonarola e mergulhar em letras virtuais: se não agirmos, tudo indica que nem mesmo os livros digitais escaparão. Contudo, a esperança não está perdida. Uma proposta de emenda à Constituição apresentada pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede/AP) propõe a alteração do artigo 150, para garantir a imunidade fiscal do livro (veja abaixo o link) e poderá, assim, garantir a sobrevivência dos nossos grandes romances.

De resto, há o consolo do teatro – o amor estará no ar, a partir de 14 de setembro, numa proposta muito curiosa e inovadora.   Trata-se da experimentação de teatron (teatro online, a nova forma da velha arte) Amor de Quarentena, uma microficção com Reynaldo Gianecchini, Mariana Ximenes, Débora Nascimento e Jonathan Azevedo em formato inédito via Whatsapp.

Sob a direção de Daniel Gaggini, os atores vão mesclar referências pessoais ao universo ficcional – a grande pergunta em cena (ou no ar?) questiona como você reagiria se um velho amor reaparecesse de súbito, diante de você, durante a quarentena. O espectador/ouvinte/amado escolhe qual o ator preferido para conduzir a sua experiência, que terá a duração de 13 dias. No mesmo horário, a cada dia, uma mensagem nova  reacenderá o jogo de uma velha paixão.

O significado é claro: você pode sobreviver com a ameaça de uma peste, você pode sobreviver cercado de covid-19 por todos os lados,você pode sobreviver recluso, você pode ficar distante da realidade cotidiana do mundo. Mas não dá para sobreviver sem amor. Se o amor vier assim inusitado, inesperado, pelo teatron, o lucro será da sua imaginação, incendiada por ideias renovadas, boas para criar e contemplar a vida.

Mas o amor pode vir através de letras, páginas, livros. E então, mesmo encerrado num país-masmorra, eles farão a sua mente saber o tamanho do mundo. Não vale, de forma alguma, queimar estes passaportes de libertação mental e tornar o seu isolamento uma distância instransponível, profundamente alheia à beleza da vida. Espero que você esteja cercado de letras, quer dizer, esteja muito bem!

SERVIÇO

Para acompanhar a luta a favor dos livros no Senado:

 PEC 31

Amor de Quarentena

Ficha técnica

Autor: Santiago Loza

Tradução: Luciana Rossi

Direção: Daniel Gaggini

Elenco: Reynaldo Gianecchini, Mariana Ximenes, Débora Nascimento e Jonathan Azevedo

Produção de Elenco: Juliana Brandão

Ideia Original e Produção Internacional: Ignacio Fumero

Edição de Som e Música Original: Adriano Nascimento 

Programação Visual e Teaser: Fernando Sanz

Assessoria de Imprensa: Eliane Verbena 

Assistente de produção: Victor Hugo Góes

Realização: MUK

Produtores associados:  Daniel Gaggini,  Débora Nascimento,  Ignacio Fumero, Jonathan Azevedo, Juliana Brandão, Luciana Rossi, Mariana Ximenes, Reynaldo Gianecchini e Santiago Loza.

Serviço

Microficção: Amor de Quarentena

Temporada: 14 de setembro a 5 de novembro de 2020

Local: Aplicativo WhatsApp

Classificação indicativa: 14 anos

Duração: 13 dias (a partir do envio da primeira mensagem). 

Valor: R$ 40,00 – ingressos online pelo www.sympla.com.br

Mais informações: www.amordequarentena.com.br

Instagram: https://www.instagram.com/amor_de_quarentena_br/

Facebook: https://www.facebook.com/amordequarentena

Informações à imprensa

VERBENA ASSESSORIA