High-res version

Cidade Maravilhosa: a capital cultural sumiu

Você vive no Rio? Gosta? Se pudesse, iria embora? Ou jamais cogitou a hipótese de viver longe da cidade do “é sol, é sal, é sul”…? Se você está mais grudado ao Rio do que os mariscos nas pedras da Praia do Flamengo, você sabe dizer quais são os motivos para tanto amor?

As perguntas nascem de uma constatação dolorosa – o Rio, apesar de sua beleza, está se transformando numa espécie de Rionic, como se fosse um Titanic, lindo, monumental, mas de casco furado. Lentamente, vai afundando. Enquanto isto, festejamos, dançamos e brindamos lindamente!

O desastre ainda não é fato consumado, apenas se anuncia, ainda pode ser revertido, como, aliás,  poderia ter sido evitado. Ou não há esperança? Pois é. Não há um movimento do tipo cariocaço, aquela coisa de juntar as mãos para pegar no batente e, é  claro, abrir os bolsos, para investir na cidade talentosa.

O caminho é difícil, não há uma receita fácil para seguir e os senões são inúmeros. Historicamente, a cidade chegou à consagração nacional por uma via espontânea. O Rio se tornou a cidade maravilhosa dentro de um processo natural.

Primeiro, foi a beleza – basta olhar qualquer gravura ou foto antiga, até o século XIX, para se comover. O encontro geográfico entre montanha, floresta e mar, marcado por um relevo antigo, sinuoso, docemente erodido, é lindo de doer. A leitura de peças do século XIX, por mais urbano que seja o autor, traz sempre um sabor delicado, revela uma cidade nova que brotava, brejeira, de um mundinho rural. Até o século XX, muitas paragens da cidade eram arredores. Quer dizer, mato puro.

Copacabana, nascida e criada no século XX, não foi sempre uma árida aglomeração de prédios insanos. Esteve em vigor,  até os anos 1950/1960, o Plano Agache – uma lei para o ordenamento urbano que impunha um perfil ajardinado ao bairro. Na quadra junto à orla, as construções superiores a cinco andares deviam ser recuadas e contar com jardins, para não sombrearem o banho de mar. Inteligente, não?

Eloquente, para este tema, é a história do Edifício Guarujá, em Copacabana,  atualmente um residencial emparedado na Rua Domingos Ferreira, nº 187. O prédio, construído no final da década de 1920 por iniciativa do médico Paulino Ribeiro Campos, contava com 10 andares e 40 grandes apartamentos. Durante alguns anos,  foi o maior prédio da orla, imponente.

A construção original era luxuosa, com portaria de mármore de Carrara, portões de bronze, louças inglesas e até garagem para alguns carros, numa época em que poucos tinham automóvel.  As fachadas, recuperadas depois de muitos anos de abandono, soam monumentais, uma combinação de elementos clássicos com art déco. Aliás, o prédio não foi demolido por uma razão simples: é tombado.

Como foi a decadência de um imóvel tão precioso? Como passou de construção de luxo, pura ostentação, para prédio mal assombrado? Nos anos 1960, a área dos jardins de frente para a praia foi desmembrada, para a construção de um outro prédio. A velha construção deixou de ter frente para o mar e iniciou um processo de degradação, saiu de moda.

A sua história tem semelhança com as agruras do Rio. A especulação imobiliária tornou-se desenfreada e talvez esta espiral vertiginosa explique alguma coisa da decadência acelerada da cidade e do aviltamento do espaço urbano. Os donos do capital e os gestores da cidade, diante de uma população distraída, acreditavam que a beleza carioca resistiria a tudo: assim, trataram de cimentar a paisagem, enquanto o setor produtivo encolhia vigorosamente. O Rio fabril desapareceu – as últimas fábricas de tecido viraram shoppings. A área fabril da velha Avenida Suburbana simplesmente virou favela. E quais foram as atividades econômicas que surgiram?

Em segundo lugar, há o esvaziamento de poder. E a perda de recursos, claro. O Rio capital federal desde 1763 não foi “preparado” para o vazio institucional e econômico gerado pela transferência da capital para Brasília. A drenagem dos recursos atribuídos ao Distrito Federal juntou-se ao eclipse da vida econômico-industrial.

Neste cenário, a produção cultural não tem tido vida fácil. Além do número de espaços culturais não acompanhar o crescimento da população, nem os números das construções civis, muitas construções antigas foram abaixo. Isto quer dizer algo simples: o Rio não consegue oferecer cultura para a população da cidade, pois o crescimento da população não acarretou em expansão da oferta cultural.

O número de teatros cariocas fechados, com transformação de uso, ou simplesmente demolidos, soa inaceitável para uma cidade que pretende exercer alguma liderança cultural. Ou, no mínimo, honrar o velho pacto histórico selado entre polis e cidadão, segundo o qual as cidades se comprometem sempre a fazer de seus habitantes potenciais cidadãos do mundo. Aqui, as velhas leis que protegiam os teatros (sim, elas existiram!) foram todas derrubadas, assim como as leis de proteção da saúde da cidade.

Portanto, não dá para estranhar que exista hoje um êxodo do Rio ou, nos que ficam por aqui, um sentimento acre de desencanto, nada carioca. Basta olhar a agenda cultural de São Paulo – sem despeito, inveja ou competição, só para constar – para perceber a pobreza da princesinha à beira mar, nadando acelerada no caminho para virar borralheira.

A pergunta que se impõe é indigesta: o que fazer? Como o cidadão, o artista, o produtor cultural podem interferir neste quadro, agir para deter o naufrágio?

A primeira linha deve fugir ao óbvio – não adianta mais cobrar. Não dá para imaginar que as autoridades e os poderosos não vejam o que acontece. Por que não abrem mais teatros? Por que não criam linhas de crédito subsidiado para os artistas abrirem espaços de cultura por toda a cidade? Por que não criam mecanismos legais de aproximação entre escolas e cultura? Em alguns casos, bastaria uma canetada.

Nunca na história do Rio de Janeiro a vida cultural/teatral esteve tão concentrada na Zona Sul. Ao lado do esvaziamento assustador do Centro, as Zona Norte e Oeste carecem de estabelecimentos culturais. Não há teatro, descontados as redes do sistema S, o Imperator e duas remotas casas (os  estaduais Artur Azevedo e Armando Gonzaga) fora da área sul. Basta pegar as velhas revistas da SBAT e do Retiro dos Artistas para ver como a vida teatral recuou na cidade. Tínhamos teatros por toda a parte.

Hoje, na Zona Norte, sabe-se que a Prefeitura assumiu a recuperação urbana do imenso conjunto do Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro. Lá, no local, ninguém sabe explicar o que virá. Nos jornais, divulgou-se que o prefeito Eduardo Paes assumiu a causa e criou o Parque Nise da Silveira, com o Bosque Dona Ivone Lara, num projeto em que a paisagem carioca deverá ser protagonista.

Vale recomendar ao edil: tenha cuidado. Apesar do Museu Nise da Silveira, o hospital é um espaço urbano marcado pelo desespero e pela dor. Se ele é um homem sensível, certamente sentiu a voltagem de sofrimento acumulada ali. Ela sangra das paredes. Foi um abrigo de loucos em que a poesia da Dra Nise da Silveira instaurou alguma redenção.

O lugar não merece virar um paliteiro imobiliário em nenhum dos seus recantos: deveria se tornar apenas e simplesmente um grande parque ajardinado com um centro cultural modelo. Um lugar de culto à saúde mental urbana: a cidade enlouquece, sabemos.

Enfim, predomina hoje no Rio um panorama instável, inquietante. Nele, o teatro está retomando as atividades, várias peças estrearam e, sob rigorosos protocolos de saúde, o público começou a prestigiar os artistas. Vale conferir, temos trabalhos deliciosos em cartaz.

Um grande feito, precisamos reconhecer. Mas… Depois do longo recesso da pandemia, de onde veio o capital, o custeio? Qual o tamanho do apoio das autoridades e dos poderosos ao mercado de teatro em reaquecimento? É preciso que dêem publicidade às ações, tão nobres.  Ou, então, se estão de braços cruzados, passou da hora de começar a fazer algo.

Além da Lei Aldir Blanc, conquistada junto ao poder público por ação política direta da classe artística, nenhuma iniciativa política visível, consistente, está em cartaz junto às peças. É isto mesmo?

O projeto cultural do poder no país e na cidade é este oco? Quando muito, contemplam-se as ações de mero teor político – como os velhos pontos de cultura – e ignoram-se as necessidades estruturantes do mercado? O fato de existir a fresta de eventuais leis de fomento e de isenção fiscal basta, para os políticos, como se o fato resolvesse o desafio do universo da cultura?

Afinal, qual o papel cultural que se pretende atribuir hoje à velha capital do Brasil, a metrópole que abrigou o nascimento do teatro profissional e sediou por quase dois séculos o polo criativo mais efervescente da nação? Apenas, docemente, desaparecer? Então, por favor, tragam mais champagne.

A cena carioca pulsa – basta consultar abaixo alguns  links que reúnem a cultura em oferta neste momento. Mas o que há é muito pouco. É quase nada. A potência carioca ultrapassa em muito a realidade – a triste realidade de um centro urbano outrora celebrado, incapaz hoje de oferecer aos seus, com fortuna plena, o conforto de criações poéticas, com o mergulho em propostas belas e sensíveis, como seria de esperar da parte de uma bela cidade. Sim, ela está naufragando. Outrora, ela foi a mais bela do país: cidade maravilhosa, coração do meu Brasil.

FOTO DA ABERTURA – Vista aérea do espaço do Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro, 2021.

Engenho de Dentro, provavelmente no fim do século XIX ou início do século XX.

LINKS PARA APURAR O QUE ESTÁ EM CARTAZ NO RIO AGORA:

https://www.googleadservices.com/pagead/aclk?sa=L&ai=DChcSEwi9hZyYrcPzAhVEBogJHcz0AokYABAAGgJxbg&ae=2&ei=cLNkYanSC4jS1sQPn_e36A0&ohost=www.google.com&cid=CAESQOD2-ICmPkvLTfSmF0TSZ5lKr1D69SXcO9Ort_Z0q1SL-mQBDLmE-K8SOksZzxmuup_aSXtt1HMfh6vaS594hWY&sig=AOD64_3Vre-_2H66rjafLE5eFPgvqqO5mA&q&nis=1&sqi=2&adurl&ved=2ahUKEwipyoqYrcPzAhUIqZUCHZ_7Dd0Q0Qx6BAgCEAE

https://www.rionoteatro.com.br/eventos/em-cartaz

https://www.eventim.com.br/city/rio-de-janeiro-1672/teatro-comedia-176/