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         Faça amor, não faça a guerra

O desconforto apareceu tímido no século XIX. E registrou uma distância, nova, mas crescente, entre a sociedade civil e as guerras.  Consequentemente, surgiu uma sensação de mal estar com os exércitos. A instituição teve papel fundamental para o nascimento dos países modernos, pois permitiu aos reis suplantar a gana dos nobres feudais.

De certa forma, então, já ali no século XIX, o seu papel estaria encerrado, se os países não começassem a brigar uns com os outros por toda a parte. Um paradoxo se instalou: cresceu a classe média, afirmou-se o poder do indivíduo e do cidadão, mas estes seres pacíficos estavam sujeitos à convocação para morrer em lutas cuja função nem sempre compreendiam ou aceitavam. Eles queriam o amor e ganhavam a guerra.

Logicamente, o ser pensante, livre, começou a raciocinar diante dos fatos. Rápido, caminhou para uma visão crítica. Mas, fazer o quê, o impasse se arrastaria por longo tempo. Ao mesmo tempo em que a consciência cidadã se ampliava, a disputa pelo poder no mundo crescia. E as guerras se espalhavam, até chegar aos confrontos mundiais do século XX.

O teatro, companheiro íntimo do homem comum livre, se engajou na busca pela paz.   Uma obra como A Grande Duquesa de Gerolstein,  de Offenbach, Meillac e Halevy,  estreia de 1867 em Paris e sucesso estrondoso por todo o mundo, sintoniza com este lugar social de sentimento.

Na opereta, impera uma sátira ácida ao militarismo, ao despropósito da guerra, ao utilitarismo do poder em relação ao ser humano. Talvez a figura mais hilária e inesquecível em cena seja o General Boum,  cuja copla se tornou um grande sucesso desde a estreia.

Lembrei do tema ao ver Fabio Porchat na internet, num comentário divertido a respeito de seu horror à guerra. E aos filmes de guerra. De imediato, lembrei do espetáculo extraordinário e ousado que ele dirigiu em 2006. Uma encenação jovem, corrosiva e bem humorada de Piquenique no Front, de Arrabal.

O melhor da encenação era a sua juventude, a sua ousadia, a concepção de jogar a cena de guerra no ali e agora, no meio da plateia. O diretor escolheu para a montagem uma intrigante casa em ruínas  na Rua das Laranjeiras, então batizada de Ruínas 559, um espaço natural adequado para situar uma guerra.

O texto de Arrabal, de 1952, sua primeira peça, é uma pequena joia de dramaturgia, uma obra que estende a concepção realista ao limite de sua explosão. Considerando-se o inflamado cenário político da Espanha no século XX, compreende-se a dimensão de sua poesia.

Algo em comum entre Offenbach e seus libretistas e Arrabal? A rigor, a caneta surge, nestes autores, como uma arma apontada para o interior das pessoas, para questionar a natureza dos seus valores de amor e respeito à vida. Qual o compromisso assumido pela sociedade com as leis da existência, eles perguntam?

Mas há um painel na arte imenso ao redor do debate. Se em Offenbach e mesmo em Arrabal há humor nas perguntas e incursões, o mesmo não se pode dizer das poéticas que passaram a tentar jogar luz nos abismos das almas humanas que, libertas do projeto de lutar no mundo, se jogam na mais encarniçada guerra interior.

Durante o século XX, o debate acerca da celebração do amor, do fim das guerras  e da louvação da vida se espalhou muito rapidamente. Se até os anos 1960 a juventude ainda seguia parâmetros herdados do século XIX, a eclosão da revolução juvenil, com o movimento hippie e o combate à guerra do Vietnã, materializaram um terremoto social que sacudiu todos os valores e clamou por uma nova ordem. Até mesmo a obrigação de servir ao exército passou a ser uma dúvida. A sociedade mudou.

No entanto, as guerras não acabaram, o mundo ainda não vive sob o reinado de um novo humano. A celebração do amor é da ordem privada e no horizonte social ainda se vegeta, como se cada ser fosse um potencial inimigo.  E os exércitos de sonho, com as baionetas espetadas de cravos, como na Revolução dos Cravos, em Portugal,  apenas sonho são.

Sim, o quadro vai bem mais além do que a sugestão de um romantismo esquemático, superficial. A guerra e o exército lidam com a pulsão de morte diretamente. Tocam os limites profundos do humano. Tornar-se livre, portanto, pode não significar um idílio com a vida – existiria uma impossibilidade profunda do humano, capaz de fazer do fim das guerras uma guerra interior?

Crise interior, guerra interior, autoimolação, dilaceramento. Puras formas trágicas de aniquilação, como se não houvesse valor no ato de existir. Rebelar-se seria rebelar-se contra a vida? O tema estrutura o espetáculo atual, real, 27’s, estreia do próximo dia 27 de Março, com apresentações gratuitas no YouTube.

A proposta aborda o lendário Clube dos 27, nome atribuído a um grupo de artistas de diferentes gerações mortos aos 27 anos. Em cena, o ator Gustavo Rodrigues, responsável já por desempenhos fortes na sua carreira (Billdog, Trainspotting, Laranja Mecânica – em especial) encarna um roqueiro fictício que escapa de morrer aos 27.

O mote é um artifício de dramaturgia que permite trazer para a cena alguns ídolos, estes reais, do artista –  Jimi Hendrix, Kurt Cobain, Janis Joplin, Amy Winehouse e Jim Morrison, mortos aos 27 anos. As suas biografias permitem abordar não só grandes sucessos musicais, apaixonantes, mas comportamentos, tendências e valores transformadores, de grande repercussão mundial.

De repente, pode-se perceber a existência de um grande movimento da arte, da poesia, irradiando dos palcos para a sociedade, a favor do humano, desde o século XIX. Portanto, além dos poderes constituídos, engessados, avessos às pretensões de liberdade do cidadão e do ser na vida cotidiana, existe uma avalancha de transformações necessárias, lógicas, que nada deterá. Esta avalancha é o nosso horizonte, a certeza de que a vida será melhor, pois ela dará um novo desenho aos sentimentos e ao mundo.

Espetáculo histórico: Piquenique no Front

FICHA TECNICA:
Local: 
Ruína 559
Endereço: Rua das Laranjeiras 559 (em frente ao Mama Rosa)
Telefone para reserva de ingressos: 9234-5012
Datas: de 30 de abril a 11 de junho de 2006.
Dias: sábados e domingos
Horário: 17h
Ingressos Promocionais: R$10
Capacidade: 40 lugares
Duração: 40 minutos
Autoria: Fernando Arrabal
Direção: Fábio Porchat
Elenco: Camillo Borges, Lucas Netto, Marcus Majella, Mayra Villela, Moyses Ferreira e Nilson Rossi
Classificação etária: Livre

ESTREIA DA SEMANA:

“27’s”

FICHA TÉCNICA

Texto: Daniela Pereira de Carvalho.

Direção: Vera Holtz, Gustavo Leme e Guilherme Leme Garcia.

Elenco: Gustavo Rodrigues (ator, voz e guitarrista), Tauã de Lorena (guitarrista), Laura Lenzi (voz e tecladista), Arthur Martau (baterista) e Sandra Nisseli (baixista).

Direção musical: Ricco Vianna e Tauã de Lorena.

Criação de imagens: Gabriel Junqueira.

Produção de arte e figurino: Ana Roque, Patrício Reinaldo e Pedro Osório.

Iluminação: Adriana Ortiz.

Direção de produção: Monique Franco e Sergio Saboya.

Realização: Procenium Produções Artísticas.

SERVIÇO:

Estreia: 27 de março (sábado), às 19h, no YouTube (bit.ly/espetaculo27s).

Idealização: Gustavo Rodrigues

Apresentações: dias 28, 29 e 30 (domingo, segunda e terça), às 19h e às 21h (sessão dupla) | Dia 31 (qua.), às 19h.

Bate-papos com Gustavo Rodrigues e convidados após a peça-filme: dia 27 (diretores), dia 29 (direção de arte e autora) e dia 31 (direção musical e banda) – no Instagram (@espetaculo27s).

Duração: 65 min. Classificação indicativa: 18 anos. Ingresso: gratuito.

Instagram e Facebook: @espetaculo27s

CANÇÕES TOCADAS AO VIVO NA PEÇA-FILME

“Sympathy for the devil”, The Rolling Stones

“Voodoo child”, Jimi Hendrix

“Wild thing”, Jimi Hendrix

“Purple haze” , Jimi Hendrix

“Born Slippy”, Underworld

“Came as you are”, Nirvana

“Break on through”, The Doors

“Cry baby”, Janis Joplin

“You know i’m no good”, Amy Winehouse

“The man who sold the world”, Nirvana

“Piece of my heart”, Janis Joplin

“Love is a losing game”, Amy Winehouse

“Back to black”, Amy Winehouse