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A prata da casa e a cristaleira da vovó

Noite festiva de grande gala, com bastante luxo, plena ostentação, numa só noite. Não, não se trata de um encontro de celebridades-purpurina. Não, não está em foco um ritual nababesco de cultos obscuros. E não estão em pauta exibições de joias assinadas e toaletes de grife para ofuscar a turma do sereno.   

A noite aconteceu hoje, nesta segunda-feira, sem muita propaganda. As notícias chegaram um pouco em cima da hora. Mas foi só a inauguração, a gala continua no ar, vale a pena ver. O tesouro tão precioso revelado assim de repente, acessível aos olhos vorazes por teatro, foi simplesmente uma sequência de cenas da lendária encenação de O Balcão, de Jean Genet, produção antológica do Teatro Ruth Escobar.

A montagem estreou no dia 29 de dezembro de 1969, sob a direção, absolutamente revolucionária, do argentino Victor Garcia (1934-1982). Trata-se de um privilégio histórico raro – por isto se pode falar em gala e luxo – pois a apresentação no canal do youtube trouxe a público o único registro disponível da encenação, em versão 16mm, de Jorge Bodannsky.

A filmagem original, em 35 mm, foi perdida. A cópia em 16,  encontrada no acervo do cineasta, foi restaurada, com as cenas mais impactantes apresentadas agora. Bodannsky, jovem, participou da filmagem em cena, no ato, condição que confere ao material um significado para a pesquisa de história do teatro muito especial. Coisa muito rara, como uma espécie de diamante de alto quilate.

 A estreia aconteceu nesta segunda-feira, no programa documentário do cineasta Júlio Calasso. Para ampliar o impacto do registro histórico, foram reunidos atores e personalidades  que vivenciaram o grande evento teatral.

Deve-se falar, então, em prata da casa, cristaleira da vovó ou tesouro do pirata tio-avô: um recorte generoso da maior fortuna teatral brasileira aparece sob o foco neste material único. Não deve parecer estranho o uso destas expressões para dimensionar o caso.

Quem milita no teatro ou navega por estes oceanos, bem sabe – a fortuna da arte, no Brasil, se concentra na arte do ator. Nenhuma outra parte do fazer teatral conseguiu, por aqui, tão ampla circulação social. Nenhuma outra especialidade necessária para o acontecimento do palco se tornou instituição no país. Desde o século XIX, este é o nosso luxo, a nossa fortuna: a potência do ator.

Vale frisar ponto a ponto – ou moeda a moeda, já que falamos em tesouro. O evento celebrado esta noite online só aconteceu, lá em 1969, para uma longa temporada que sacudiu o país, por obra e graça de uma das personalidades mais notáveis da arte da interpretação nacional: a atriz Ruth Escobar (1935-2017), aliás, de nascimento, portuguesa.

Graças ao seu ímpeto inacreditável para mover a máquina do teatro, nasceu não só o edifício teatral paulista batizado com o seu nome, um dos seus atos de grandeza abnegada a favor do país, como nasceram encenações históricas, formação de grandes elencos, festivais, visitas imponentes. A lista dos seus feitos de envergadura impressiona.

Na verdade, para o bem da arte, a apresentação-homenagem de O Balcão, de hoje, um ato de louvor a uma mulher de tanta grandeza, devia se tornar atração fixa na rede, ficar em cartaz online. Nunca é pouco falar de Ruth Escobar. Sempre há motivo para louvar a sua figura. Na sua generosidade artística, ela não se limitava a fazer por si, a favor da sua necessidade de expressão e de criação.

Ela realizava – verbo forte e amplo bem definidor de sua personalidade. Ela reunia elencos de alto padrão, concedia espaços privilegiados em cena a artistas cujo desempenho prezava, convidava diretores de primeira grandeza para trabalhar. O seu método de trabalho mantinha sintonia fina com o sonho – ela sonhava, punha em prática e depois via como podia resolver. E resolver, claro, significava inclusive até mesmo ter dinheiro para bancar o sonho.

 Ela foi, na verdade, além de atriz, uma mulher de teatro no rigor da expressão, alcançou dimensão única na história do teatro brasileiro. Não existiu outra Ruth Escobar – este reconhecimento histórico precisa ficar muito patente. Naturalmente, em boa parte a noite de celebração foi uma homenagem a ela.

A montagem do texto de Jean Genet reuniu no palco e, portanto, nas imagens, ao lado de Ruth Escobar, Raul Cortez, Carlos Augusto Strazzer, Sergio Mamberti, Jonas Mello, Joffre Soares,  Paulo Cesar Peréio, Célia Helena, Neide Duque, Thelma  Reston, Nilda Maria, entre outros. A ficha técnica do espetáculo se notabiliza por sua extensão – além da montagem grandiosa, a temporada longa implicou em muitas substituições. Em participações pequenas, por exemplo, estavam Ney Latorraca ao lado de, na fotografia, o futuro cineasta Djalma Limongi Batista.

A projeção de algumas cenas gravadas aconteceu durante uma conversa/testemunho. Celebraram a beleza do ato de memória teatral Sérgio Mamberti, Jorge Bodanzky, Nilda Maria (importante símbolo do impacto da peça: foi presa pela repressão). A participação do crítico, historiador e pesquisador de história do teatro brasileiro Jefferson del Rios ampliou a visão dos fatos, para abarcar a grandeza artística do encenador argentino Victor Garcia.

Aliás, vale a ressalva. Para quem desejar saber muito a respeito da montagem, recomenda-se a leitura da excelente obra assinada pelo historiador, referência fundamental para os estudos de teatro brasileiro e para a reflexão sobre o teatro contemporâneo: a biografia/análise  O Teatro de Victor Garcia – a Vida Sempre em Jogo, Edições SESC.

Mas a semana prosseguirá repleta de encontros virtuais, lives, peças, debates. Na conta geral, ainda trará mais surpresas em honra à arte do ator. Para não dizer que eu não estimo encontros ao vivo e a cores, mas online, participarei do movimento virtual-teatral em dois eventos. Nos dois casos, a arte do ator, em graus diferenciados, dará o mote para as conversas.

O primeiro evento conta com a assinatura do Centro Cultural Cesgranrio: inaugura a série Encontro com Arte. Neste primeiro encontro virtual, na próxima quinta-feira, no Instagran da instituição, estarei conversando com Leonardo Netto sobre o tema O teatro e seus ofícios. A conversa promete ser animada, pois, afinal, Leonardo Netto, vencedor do 7o. Prêmio Cesgranrio, nas categorias melhor ator e melhor texto, tem um perfil teatral marcado pela extrema inquietude. Ele também é diretor.

O segundo evento aponta para as raras letras do teatro brasileiro sempre amadas pelos atores de nosso tempo: Nelson Rodrigues (1912-1980). Conversarei com Crica Rodrigues, neta do dramaturgo, a respeito do autor. Um dos mistérios que gostaria de abordar é esta condição de favorito dos intérpretes.

Mas há muito mais nestas páginas rodrigueanas tão disputadas. Talvez Nelson Rodrigues seja um dos autores brasileiros mais estudados de nossa história, de toda a nossa tímida estante de dramaturgos. No entanto, qual seria a idade deste amor?  Seria tão profundo? Teria o tempo dos textos? Certamente muito de sua história e outro tanto de sua dramaturgia persistem solicitando a atenção dos pesquisadores. Vale baixar a biblioteca para conferir.

Sim, baixar a biblioteca, persistir em ação. Se estamos fora de cena e fora das plateias, a condição imposta pela peste não deve nos conduzir ao luto. Ao contrário – o teatro pode ser exercitado de mil formas diferentes, ainda que não sejam presentes e pulsantes, ainda que aconteçam do lado de fora dele.

A mais notável lição dos modernos, dos grandes diretores que fizeram nascer a cena do nosso tempo, passa por aí, exatamente. Aliás, foram eles que induziram o parto destes atores cheios de grandes ideias de arte. Foram eles que descobriram e incentivaram os dramaturgos de agora. Para eles, o teatro não existia sem estudo, eles consideravam impossível o teatro sem mesa.

Se a performance e a criação instantânea quiseram apagar esta aula, de certa forma jogando o teatro no olho da rua ou no burburinho imediato da vida, a hora dos velhos mestres voltou com força para os cartazes. Dá para ter teatro apenas com a mesa no meio da sala e uma pilha de livros ao nosso lado: atores de letras. Um outro tipo de noite de gala teatral chegou…

         SERVIÇO:

Foto: Ruth Escobar, divulgação.

Mostra Cine Teatro Brasil Virtua – Abertura dia 10 de Agosto de 2020 – direção Júlio Colasso –

https://youtu.be/GXVyTOsoQwk