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O que é um autor para você?

De repente, a magia acontece. Ela muda a sua vida. Nunca mais você será a mesma pessoa. E no entanto, nada aconteceu  – foi só uma peça, um pequeno detalhe na ordem imensa do mundo, mas nada mais será como antes amanhã.

Este deveria ser o efeito dos autores teatrais da nossa geração nas nossas vidas. O motivo? É simples: cada geração deve ter os seus autores. Precisa ter os seus autores teatrais. Precisamos deles para estabelecermos a conexão de nossas almas com o mundo. Esta é a função social do dramaturgo – ele faz a conexão da raça.

A rigor, não devemos ter um autor para chamar de nosso. Precisamos de vários. Muitos. Cada um com o seu idioma teatral, uma riqueza interior peculiar, uma vertigem de informação humana. Este fervilhar contém a panaceia precisa.

Os autores não divergem, por mais que se possa ter a impressão de antagonismos. Eles dialogam entre si. Materializam, juntos, cada um no seu quadrado, o caleidoscópio existencial de sua época. A obra escrita por eles é a sua doação, um ato íntegro de generosidade. Para cumprir a sua missão, precisam de reconhecimento e de apoio.

Por exemplo – há uma geração de autores, a geração anterior à minha, dotada de um perfil de excelência. Na verdade, uma geração rara, num país em que os autores sobrevivem de teimosos, relegados à própria sorte, sem receber o lugar social que lhes deveria ser atribuído.

Sabe de que geração estou falando? Vejamos – a lista reúne nomes nascidos nas três primeiras décadas do século XX. Estão lá – Nelson Rodrigues (1912-1980), Jorge Andrade (1922-1984), Ariano Suassuna (1927-2014), Abilio Pereira de Almeida (1906-1977), Silveira Sampaio (1914-1964), Dias Gomes (1922-1999), João Bethencourt (1924-2006),  Millôr Fernandes (1923-2012), Maria Jacinta (1906-1994).

Um pouco adiante, quase integrando uma nova geração, mas ainda ligados nos mesmos debates, poderiam ser incluídos Gianfrancesco Guarnieri (1934-2006), Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974), Paulo Pontes (1940-1976) e Armando Costa (1933-1984). Neste novo grupo, uma turma de dramaturgas admiráveis se projetou, fato inédito na história do teatro do país, que sempre teve muitas dramaturgas, mas não uma geração.

A enumeração simples dos nomes impressiona, mesmo sem ser conclusiva. E gera várias perguntas. Afinal, o que impulsionou o aparecimento de tantos dramaturgos de qualidade? O que fez com que desaparecessem, sem que uma herança objetiva nos levasse a considerar que eles passaram o bastão – na verdade a caneta – adiante? Se tirarmos Nelson Rodrigues da lista, onde está a obra destes dramaturgos no cotidiano teatral brasileiro?

Para os diretores encenadores modernos, em especial para os italianos que sacudiram a poeira nos palcos brasileiros sobretudo nos anos 1950, dramaturgia nacional devia ser vista como prioridade para a construção de um teatro forte. Terá sido esta pressão o fator de impulsão para uma idade de ouro da dramaturgia no Brasil?

Não entendam mal – não estou dizendo que os autores anteriores, desde o século XIX até a Geração Trianon e pouco mais, foram senhores de letras perdidas. Na verdade, as suas obras, com raríssimas exceções, enlouqueciam de felicidade os contemporâneos, mas tinham fôlego curto, imediato. Em geral, rompiam a quarta parede, mas a quinta parede, a fortaleza que isola o teatro da rua, pouco era atingida.

Muitos destes autores trabalharam com uma ideia assemelhada à dominante no teatro atual, do autor de sala de ensaio, às ordens da cena. Neste caso, eles serviam aos talentos e inclinações dos palcos. Eram autores de aluguel, arranjavam textos para os astros. O primeiro Dias Gomes trabalhou assim, para Procópio Ferreira. Os modernos baniram a prática, considerada bastarda, quase imoral, se é que para Dionysos alguma coisa possa ser imoral.

No entanto, a lição moderna passou – a partir dos anos setenta, quando Nelson Rodrigues era um grande maldito, completamente excomungado pela direita e pela esquerda, a dramaturgia brasileira de alto coturno caiu do palco e quebrou a perna. Em compensação, os jovens mergulharam de cabeça na criação coletiva.

Um formato híbrido curioso surgiu: o dramaturgo na sala de ensaio, com propostas para improvisações e, então, material para um texto feito no gabinete. Acompanhei um trabalho deste tipo de Marcílio Moraes, uma das muitas tentativas de teatro experimental que resultou em nada, muito embora ele tenha escrito o texto.

Contudo, apesar da onda criativa adversa, os autores não abandonaram as cadeiras. Passaram um pouco a olhar demais para os lados, na luta insana para viver de letras, atitude decisiva para uma adesão forte à televisão.

O fato é curioso, pois escrever para a televisão e para o cinema é uma prática sob demandas muito particulares. Evidentemente o roteirista pode ser dramaturgo, mas, sob uma avaliação estreita, ele rouba tempo, linhas e ideias do pobre palco nacional.

No meio destes atropelos, ali nos anos setenta/oitenta, época que pode ser considerada como a da estreia da minha própria geração, um autor teimoso, marrento mesmo, se projetou. O seu foco era o palco e o ajuste do foco era fino: ele vivia de uma outra profissão, não dependia da cena para sobreviver. Era um homem livre, entregue aos seus sonhos. Voava alto sem rede.

O seu nome? Wilson Sayão. Nos anos oitenta/noventa, tornou-se um autor de impacto, notável pela fluência dos seus diálogos e pelas imagens domésticas corrosivas. Indizivelmente carioca. Merecia ter a obra completa publicada por um selo Rio. E aqui, um desafio: liste, por favor, os nomes dos autores de destaque da geração dele.

Sim, quais são os dramaturgos brasileiros de destaque dos anos oitenta/noventa? Pois não ficarei chocada se os  nomes escaparem pelos cantos sombrios da sua memória. Nós não aclamamos esta geração com todos os louros merecidos e talvez a liquidação da SBAT integre um grande conjunto de atitudes de descaso nacional com a dramaturgia.

Mas não fique triste: autores persistentes salvam a nossa alma. E aí temos de volta a escrita fina, cortante, cirúrgica, de Sayão, dissecando o coração da classe média, pondo em choque o drama – às vezes o melodrama e a comicidade – do viver nacional. Está de volta ao palco o seu primeiro texto, Vamos aguardar só mais essa aurora, em apresentações online no Teatro Petra Gold. A produção se tornou viável graças à Lei Aldir Blanc. Bom demais! Vale para comemorar o aniversário do Rio de Janeiro.

Portanto, é imperdível, organize a sua agenda de isolamento para não deixar de ver. Se você sonha com a mudança do país ou cogita chegar a uma sociedade mais aerada de humanidade, a oportunidade é belíssima. E é de graça. Além do encanto de ter um autor nacional forte no palco, há uma alquimia teatral muito curiosa em cena.

Em primeiro lugar, a supervisão artística coube ao diretor Amir Haddad, um grande conhecedor da obra do autor, encenador de dois dos seus textos. A direção traz a assinatura de Lúcio Mauro Filho, tio do ator Pedro Medina, que estará em cena com a sua mulher, Fabi Oliveira. Uma outra integrante da família, Kika de Medina,  tia de Pedro, criou os figurinos.

Há, portanto, um sabor de teatro intenso na proposta, concebida sob a ideia de encontro de uma família teatral, uma gente decidida a apostar tudo para garantir a vitalidade da cena. A partir de um texto de autor brasileiro, um gosto dominante nas nossas antigas famílias teatrais, a aventura se torna convite ao sonho.

Sonho: sonhar com um palco preocupado em falar de nós, a partir das nossas tramas e entranhas, não parece ser uma inclinação bizarra. Ao contrário, com certeza pode nascer daí a magia de que mais precisamos hoje, para nos reconhecermos, profundamente, como realidade humana, uma espécie de gente esquisita, que precisa se enfrentar a si, se entender, não só carioca, mas nacional.

FICHA TÉCNICA

VAMOS AGUARDAR SÓ MAIS ESSA AURORA

Autor: Wilson Sayão

Diretor: Lucio Mauro Filho

Supervisão Artistica: Amir Haddad

Elenco e idealização: Fabi Oliveira e Pedro Medina

Diretor de imagens: Eduardo Chamon

Iluminação e ambientação cênica: Paulo Denizot

Figurinos: Kika de Medina

Assessoria de Imprensa: Barata Produções

Marketing: Inova Brand

Produção: Rose Dalney e Sarah Alonso

Realização: Miniatura 9 Produções

SERVIÇO

VAMOS AGUARDAR SÓ MAIS ESSA AURORA

Apresentações online (Transmitidas direto do palco do Teatro Petra Gold)

Dias 2, 9 16 e 23 de março, 20h, às terças-feiras

INFORMAÇÕES E INGRESSOS – www.teatropetragold.com.br

Retransmissão online

De 25 de março a 04 de abril

Quinta, sexta, sábado e domingo,

Transmitidas através da plataforma espetaculosonline.com e do canal da Miniatura9 no YouTube

Link espetaculosonline.com – https://espetaculosonline.com/espetaculosonline.com

Link canal Miniatura9 – https://www.youtube.com/c/Miniatura9Produções

Todas as apresentações serão gratuitas.