Rebeldia de verão, Nelson nosso de cada dia

 
Triste sina, a dos dramaturgos cheios de opinião: volta e meia a vida lhes prepara uma surpresa amarga. É bem o caso de Nelson Rodrigues (1912-1980), se lhe fosse concedido o dom de voltar à vida e ir ao Teatro dos Quatro desfrutar desta irreverente Viúva, porém honesta. O autor ferino, que um dia praguejou contra os jovens um ácido: “Envelheçam!”, no seu entender o conselho supremo a ministrar para a estranha doença chamada juventude, teria que deletar o diagnóstico ultrapassado e sussurrar emocionado um “muito obrigado”, bem humilde. Pois o texto, hábil em dividir opiniões desde a sua criação, em 1957, parece ter um destino certo, apaixonar os jovens e ser por eles muito bem entendido. Paixão teatral vertiginosa, eis o que acontece nesta montagem. Não perca!

 

Sim, é um imenso prazer ver uma jovem trupe esfuziante, estreante mesmo, tão séria e compenetrada diante de um texto deste quilate: um texto demolidor. Obra considerada menor por alguns estudiosos, a peça é excepcional, registra a extensão do talento de Nelson Rodrigues – é uma farsa irreverente, segundo o próprio autor, uma autentica metralhadora giratória contra o conservadorismo social, moral e teatral. A brincadeira envolve tudo, o tempo todo. E começa, na versão de agora, com uma divertida dança das cadeiras…

 

Ela foi escrita, segundo Ruy Castro, em um relâmpago de inspiração, contra as reações iradas despertadas pela apresentação de Perdoa-me por me traíres, encenada no Teatro Municipal em 1957. Até os críticos ousados da nova geração, Paulo Francis e Henrique Oscar, detonaram o texto, um desespero para o autor. Para horror de Nelson, o primeiro trabalhava no mesmo jornal que ele e não teve sequer um ato de simpatia por coleguismo. A vingança, portanto, veio como uma nova peça, um verdadeiro manifesto contra todo o poder instituído, posto que imoral, por ser poder e limitar a expressão do indivíduo.

 

Até mesmo contra o poder do teatro e das convenções teatrais, o texto investe, focaliza-os sob uma ótica de total deboche. Assim, a trama parte do desespero de um pai, o poderoso Dr. JB, influente dono de jornal, pois a sua filha Ivonete, um requintado trabalho, moleque e sensual, de Carolina Lopez, ficou viúva e não senta, por ser honesta. A caçoada começa neste ponto, uma alusão velada ao público, que deve se sentar no teatro e, diante de Perdoa-me por me traíres, ficara de pé para apupar melhor.

 

Para tratar do caso da jovem, o pai onipotente convoca grandes especialistas – uma dona de bordel, um psicanalista, um padre e o Diabo da Fonseca. E, transgressão das transgressões, graças a várias passagens de tempo enlouquecidas, ele conta o drama aos especialistas e consegue resolvê-lo. Sua filha, que seria a ingênua do teatro convencional, fora diagnosticada com uma gravidez inesperada pelo incompetente médico da família. Para abafar o escândalo, o poderoso decidiu casá-la com qualquer um da redação, e ela escolheu Dorothy Dalton, um vadio fugitivo do SAM (a atual FUNABEM), delinquente juvenil que tinha sido transformado em crítico de teatro por Dr. JB, para fazer ação social demagógica. Portanto, um galã, segundo as convenções. O pivete, completamente gay, impulsionado por Dr. JB, se tornou o crítico teatral da nova geração, mas morreu atropelado por uma carrocinha de sorvete. Graças à interferência do diabo, chega-se ao final feliz.

 

A direção de Giulia Grandis – sua estreia no mercado – tem o mérito de buscar servir ao texto, com valorização do trabalho de ator, marcações simples e bem resolvidas. O palco nu, povoado de cadeiras, serve bem à materialização lúdica dos espaços de ação (Wagner Augusto e Felipe Zagallo). Os figurinos (Vanessa Felipe) são em geral corretos, os femininos um pouco melhores, mas pouco inspirados para apontar claramente um tom passado e com uso arbitrário de bermudas masculinas.

 

Não chega a ser justo, em um elenco tão engajado e sincero, destacar atuações. A equipe, em cena, tem a garra de um grupo, segue um tom coletivo gratificante. Ainda assim, vale observar que o elenco feminino tem um rendimento um pouco mais elevado, ainda que Gabriel Borges e Thiago Mello sejam verdadeiras turbinas teatrais.

 

Mas o mais importante é: vá ver, é muito bom, falta um Nelson em sua vida. Várias cenas são encantadoras, bem resolvidas e de excelente humor. E mais: o espirito de Nelson Rodrigues está todo lá, para nosso prazer, com uma atmosfera muito carioca. Uma surpresa agradável, afinal, contar com jovens talentosos no auge de seu amor ao teatro, em pleno verão, a nos indicar que o autor só implicava com a juventude por uma razão simples: coisa de colega, pois o seu espírito, inquieto, nunca envelheceu.


FICHA TÉCNICA
Autor: Nelson Rodrigues.
Direção: Giulia Grandis.
Assistência de direção: Luiza Rangel.
Elenco: Bebel Ambrosio, Carolina Lopez, Caio Scot, Eduardo Diaz, Gabriel Borges, Pedro Lamin, Tatiana Infante, Thiago Mello e Thiago Monteiro.
Cenografia: Wagner Augusto e Guilherme Zagallo.
Figurino: Vanessa Felippe.
Duração: 70 minutos.
SERVIÇO
Estreia: 7 de janeiro
Até: 26 de fevereiro
Teatro: Teatro dos Quatro
Endereço: Shopping da Gávea, 2o. Piso. Rua Marquês de São Vicente, 52, Gávea.
Tel.: (21)2274-9895.
Classificação indicativa: 16 anos
Terças e Quartas – às 21h.
Ingresso: R$ 40 – Inteira/ R$ 20 – Meia-entrada.