Você e todo o amor deste mundo
Faz tempo, numa terra devastada por guerras, um jovem poeta inspirado buscou conceber uma poção para acabar com as dores do mundo. Conseguiu um resultado fascinante, exemplar, tão exemplar que persiste pulsando à disposição de todos os seres de boa vontade desejosos de mergulhar no lado iluminado da vida. O poeta, era William Shakespeare (1564-1616), a poção, Romeu e Julieta (1595?).
E agora, nós, varridos por guerras e ódios, desgovernados em meio ao náufragio do país, recebemos este presente do teatro, um bálsamo para acalmar tantas dores, mostrar um outro caminho de delicadeza neste momento de turbulência total. Aproveite, está bem aqui, no Rio, no Teatro Riachuelo. E a montagem, gente, é uma espiral ensandecida de beleza e de arte, para sair do teatro levitando, dançando na rua. Imperdível. Corra para ver.
Sob a direção inspirada de Guilherme Leme Garcia, você verá em cena uma montagem esplendorosa do texto clássico. A poção mágica descoberta pelo poeta – o amor, sim Romeu e Julieta é sinônimo de amor – está presente por todo o espaço, do saguão do teatro ao mais afastado recanto do palco. Uma trama inefável de beleza e de elevação estética passa por toda parte.
Para expor este jogo doce do amor, de bem querer e de se entregar, se anular, Guilherme Leme Garcia concebeu um espetáculo dotado de uma rígida convenção estética, absolutamente teatral – é só o puro amor ao teatro, sempre, nada de realismo, naturalismo, romantismo ou melodrama. Talvez se possa dizer que a direção de cena adotou um simbolismo pictórico, em que os humores, as formas, os desenhos e as cores seguem um código explícito, sempre estético, como numa pintura, voltado para falar de opostos, do eterno e do efêmero, do grande e do pequeno, do poder e do deserdado, do amor e do ódio.
A escolha é fiel à chave mais profunda do texto, feito de jogos de opostos, oxímoros. Trata-se de uma fórmula renascentista de explicação do mundo, dual. Segundo este pensamento, para traduzir o ímpeto vertiginoso do amor, devastador e inaugural, seria essencial vê-lo diante da força oposta, o ódio, também uma força devastadora, mas de destruição. O convite era muito oportuno, um sucesso, numa terra desolada diante das guerras de religião, promovidas por seitas irredutíveis, tão opostas como os Capuleto e os Montecchio, seitas que não ambicionavam apenas dominar as almas comuns, mas o trono inglês.
Opostos simétricos, amor e ódio são meios de cegueira do ser, formas de não ver – no amor, se tem apenas a bela visão, no ódio, apenas a visão do horror. Portanto, a bela visualidade da cena é a mais perfeita defesa do ato de amar. Como no amor, a cena nos arrasta e nos faz vagar assim, em sonho teatral, frágeis pedaços quentes de ser à deriva do mundo, o imenso e frio mundo lá de fora. Como o efeito de uma canção doce de Marisa Monte.
A opção surge já na cena de abertura, lírica, quando Romeu canta o seu amor sozinho sob o luar – no caso, o amor por Rosalina – e a praça de lutas, de rinhas permanentes, aparece povoada por jovens fervendo por sangue. Amor e ódio se apresentam loquazes nos corpos. Ao fundo, os volumes da cenografia falam de poderes objetivos, opressivos, formas cristalizadas da política na sociedade, que precisam do ódio, em algum momento, para governar.
A lição remota explorada em cena, sob um tom sutil, é de Gordon Craig (1872-1966): a verticalidade dos volumes em oposição à pequenice humana. Esta inspiração rege a cenografia majestosa de Daniela Thomas, uma criação genial – ela incorporou a ideia e transfigurou-a em torres simples, potentes, móveis e praticáveis, de uma textura entre o medievo e a renascença exposta na dureza da pedra varrida por alguma cor do tempo.
As cores da montagem, aliás, formam um espetáculo à parte, são um convite ao romance, remontam à história da pintura e à história do figurino. O seu impacto se torna maior graças aos preciosos efeitos de luz, de Monique Gardenberg e Adriana Ortiz, em diálogo criativo intenso com a direção, a concepção e a cenografia. Em alguns momentos chaves, o tratamento do espaço, a composição dos volumes, o jogo das luzes e o telão colorido criam um efeito plástico de extremo vigor, a cena se torna um quadro plástico de arrebatadora representação teatral.
Sim, é uma cena teatral total e o diálogo se estende aos figurinos, claro. Afinado com a chave de leitura proposta pela direção, João Pimenta concebeu roupas sem época, mas sempre eloquentes para identificar climas e situações, eficientes para expor personalidades fortes, bem definidas na sua função dramática. Desenham, também, uma corte rica, uma opulência interiorana, em que reina a ostentação e o bem comum não é um valor cotidiano. Para frisar o conflito central, os coloridos dos figurinos das duas famílias se opõem. As roupas do baile, com leves insinuações de absurdo, são eficientes retratos de uma sociedade engessada pela hierarquia e pelo desejo voraz de aparecer.
Mas não é só – a grandeza da encenação se faz com muitos outros ingredientes. Há o jogo de corpo, um fluxo intenso de representação, dramático e musical, mas despojado, ainda que fiel ao propósito de ser simbólico e poético, de Toni Rodrigues. Há a limpeza das lutas, sempre elegantes e convincentes, obra de Renato Rocha. Há o visagismo requintado de Fernando Torquatto. E há, afinal, a música.
Esta versão do famoso romance é um musical na plena acepção do têrmo, estruturado ao redor do repertório de Marisa Monte. O verbo estruturar é intencional: com texto adaptado e roteiro musical de Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche, autores experientes no gênero, foi feita uma escolha de músicas em função do rendilhado dramático, marcado, este, por uma tensão moderna, seca, mais objetiva e menos narrativa.
Quer dizer – mesmo quando as canções não registram ações efetivas, objetivas, são apenas declarações de sentimento ou exposições de estados da alma, elas aparecem tratadas sob o conceito de ação dramática. Assim, o fluxo da ação não esmorece, a música faz a peça caminhar, ativa a sensibilidade e a emoção do público, sempre em sintonia direta com a trama, abordada de maneira ágil.
O resultado é deslumbrante – é fundamental reconhecer. A direção musical de Apollo Nove e a direção vocal de Jules Vandystadt conseguiram traçar um desenho sonoro envolvente, um conjunto de sensações sentimentais que, além de arrebatar a plateia, é um hábil propulsor do jogo de cena. As vozes surgem em solos cristalinos, são apoiadas por soluções corais vibrantes, tecem climas, dialogam com a excelente orquestração. Vale destacar: a formação do conjunto musical garante momentos sentimentais intensos graças à sonoridade especial proporcionada pela harpa e pelo rico naipe de cordas.
É preciso, contudo, dizer algo mais, frisar que este é um espetáculo histórico, uma encenação espetacular de exceção. Trata-se de uma montagem obrigatória, para ir ver e rever. Além do olhar teatral plástico e poético de Guilherme Leme Garcia, a atriz Vera Holtz assina a ficha técnica como colaboradora artística, indício de que o projeto foi dominado pelo cálculo estético mais intenso que se possa imaginar, atendeu a um conceito teatral em que a cena é um olhar de arte, criação de fluxo de beleza solto no espaço, situação à qual os atores aderiram.
Várias cenas, em consequência, se projetam como momentos de teatralidade pungente, arrasadora mesmo, vertigem estética de emoção. Vão fazer parte da história do teatro brasileiro como momentos de criação absoluta, teatro total. Integram esta lista, no mínimo, a cena do balcão, com a arrebatadora chuva de rosas brancas, a cena do casamento, com a celebração celestial dos freis, a cena da despedida da noite de amor, com o vestido vertigem de luz, a cena do mausoléu e a cena final, da reconciliação, canto geral de amor de toda a companhia – ou de Verona, digamos.
Uma outra conquista da encenação é o equilíbrio do elenco, a afinação da equipe de atores. Uma sensação preciosa de amor ao teatro irradia do palco para a plateia, vale insistir. Há uma doação sincera dos intérpretes, a sala é inundada por um sentimento de crença profunda nos valores humanos mais nobres. Comentar os desempenhos é uma longa tarefa, é impossível focalizar todos os trabalhos. No entanto, muito do que é oferecido em cena é de uma qualidade tão exemplar que algum registro precisa ser feito.
Bárbara Sut é uma Julieta decidida e diáfana, garrida e inquieta, capaz de se lançar ao amor com ímpeto juvenil, sem medo, seguindo um impulso cego digno da jovem herdeira mimada. Prisioneira do amor, ela se entrega e se expõe sem reservas. Canta com segurança e beleza, domina a cena com naturalidade: a sua força cênica é tão desmedida que ela transforma a canção Amor I Love you, polêmica e discutível para muitos, em momento irresistível.
Thiago Machado é um Romeu boêmio, impulsivo, aventureiro, sonhador, coração aberto para o mundo, de porte altivo e destreza nobre, aura elegante, sedutor até nas canções, ingênuo na medida certa. Afirma-se de saída como galã romântico na canção de abertura, expõe com sinceridade o desespero do amor interdito e recebeu de presente a excelente versão de Ainda Bem.
Ícaro Silva estrutura Mercuccio sob tons transgressivos fortes, verdadeiro negro gato, com extrema plástica corporal. E encanta por sua malícia nas contracenas, por alguns toques certeiros de humor rasgado, além de se destacar em pequenas intervenções no canto.
Stella Maria Rodrigues é um fenômeno de empatia avassalador. Intérprete intensa, revela toda a sua excelência de atriz na Ama, jogando com o perfil materno e brincalhão da serviçal, explorando a malícia da criadagem, exalando a mais objetiva sentimentalidade popular. O gestual, as expressões, as intenções trabalhadas nas falas fazem com que ela acione mais um estágio sentimental da plateia, a forma de amor expressa por aquele que cuida do outro. Ao lado do Frei Lourenço de Claudio Galvan, a atriz participa de um dos números musicais arrebatadores da noite, o dueto O Que Você Quer Saber de Verdade. A dupla é irresistível.
No Cântico Gregoriano, na antológica cena do casamento, Claudio Galvan demonstra a intensidade de sua presença cênica e a beleza de sua voz. Na condução do desastre do caso de amor, ele é um perfeito conselheiro trágico, combina a boa intenção com o involuntário e o patético.
Kacau Gomes, na Senhora Capuleto, é o retrato da frivolidade, a expressão correta da mulher dominada e sem poder, objeto decorativo. Marcello Escorel, em contraponto, materializa no Senhor Capuleto a força massacrante do chefe de família autoritário, impõe o perfil do líder inflexível de facção política radical.
Pedro Caetano sugere para Teobaldo uma dimensão hierática prepotente, Bruno Narchi compõe Benvólio em sintonia com o o seu caráter conciliador. Nas cenas de conjunto e nos solos, os outros quinze atores que completam a ficha técnica se destacam pela devoção ao teatro e por um profissionalismo extremo, aquele necessário para definir a palavra elenco.
Enfim, o espetáculo é encerrado com uma cena painel de extrema beleza, de conciliação e celebração do amor, em lugar da longa cena trágico-dramática de relato dos fatos aos pais litigantes, da versão textual original. A morte por amor une as famílias inimigas e dilui o ódio em Verona, restabelece, na dor, o equilíbrio da vida na cidade: o amor cumpriu o seu ciclo de criação.
Afinal, a lição da peça, surpreendente como a poção de um mago iluminado, reza que o amor prevalece, o amor é sempre a razão da existência, é o segredo sublime do ser. Um ódio tão sólido, tão grande, só poderia gerar o amor mais delirante e absoluto, caminho para a pacificação.
Vale reconhecer, por fim, que não somos renascentistas, não acreditamos mais nestes jogos de opostos para explicar a vida, nossa vã filosofia seguiu outros caminhos, mas a beleza desta construção poética teatral é bem oportuna – sem dúvida, é deste clima que estamos precisando. Portanto, não perca de jeito nenhum, aproveite, tome um banho de amor, faça a sua alma cintilar sob uma nova humana luz. Você merece todo o amor deste mundo.
Autor: William Shakespeare
Músicas: Marisa Monte
Concepção e Direção: Guilherme Leme Garcia
Adaptação e roteiro musical: Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche
Colaboração Artística: Vera Holtz
Direção Musical: Apollo Nove
Direção Vocal: Jules Vandystadt
Coreografia: Toni Rodrigues
Lutas: Renato Rocha
Cenário: Daniela Thomas
Figurino: João Pimenta
Visagismo: Fernando Torquatto
Desenho de luz: Monique Gardenberg e Adriana Ortiz
Desenho de som: Carlos Esteves
Desenho gráficol:Victor Hugo
Produção de elenco: Marcela Altberg
Elenco: Bárbara Sut (Julieta), Thiago Machado (Romeu), Ícaro Silva (Mercuccio), Stella Maria Rodrigues (Ama), Claudio Galvan (Frei), Marcello Escorel (Sr. Capuleto), Kacau Gomes (Sra. Capuleto), Bruno Narchi (Benvoglio), Pedro Caetano (Teobaldo), Diego Luri, Kadu Veiga, Max Grácio, Neusa Romano, Franco Kuster, Gabriel Vicente, Laura Carolinah, Luci Salutes, Saulo Segreto, Thiago Lemmos, Vitor Moresco, Gabi Porto, Santiago Villalba, Daniel Haidar e Natália Glanz.
Músicos: Maestrina: Claudia Elizeu, Teclado: Gabriel Gravina, Violões e Bandolim: André Barros, Violino e Viola: Arthur Pontes, Cello Acústico: Fábio Meg, Percussão Orquestral: Gabriel Guenther, Harpa: Gelton Galvão.
Fotos: Felipe Panfili
Produção: Leme produções Artísticas e Aventura Entretenimento
Patrocínio: Circuito Cultural Bradesco Seguros
ROMEU & JULIETA
Local: Teatro Riachuelo Rio – Rua do Passeio, 40 – Cinelândia – Rio de Janeiro/RJ
Temporada: 9 de março a 27 de maio
Horários: sextas (20h), sábados (20h) e domingos (18h)
Vendas: www.ingressorapido.com.br
Preços (valores de entrada inteira):
SEXTA 20h
Plateia VIP – R$ 140,00
Plateia – R$ 120,00
Balcão Nobre – R$ 100,00
Balcão – R$ 50,00
SÁBADO 20h e DOMINGO 18h
Plateia VIP – R$ 160,00
Plateia – R$ 140,00
Balcão Nobre – R$ 120,00
Balcão – R$ 50,00
Capacidade: 1000
Duração: 2h
Classificação etária: Livre
*Cliente com cartão Pré-Pago do MetrôRio tem 50% de desconto na compra de ingressos
Informações para a imprensa
MNiemeyer Assessoria de Comunicação
Tagged: Apollo Nove, Bárbara Sut, Daniela Thomas, Eduardo Rieche, Guilherme Leme Garcia, Gustavo Gasparani, Jules Vandystadt, Marisa Monte, Monique Gardenberg, Romeu e Julieta, Shakespeare, Stella Maria Rodrigues, Teatro Riachuelo, Thiago Machado, Vera Holtz
O Dia Mundial da Felicidade Humana
Hoje é um dia para dançar na rua, alegre: o mundo comemora o Dia Mundial do Teatro. Se aqui no Brasil ainda não temos tanta gente interessada na festa, a falha é nossa, da gente de teatro, do povo dos palcos.Não conseguimos engajar o prazer da sociedade na nossa arte. Mas, como para tudo na vida há jeito, a classe teatral carioca está programando uma manifestação cidadã importante para hoje, terça, dia 27 de Março.
Vale ir até lá conferir – vai ser um protesto pelo fechamento do Teatro Villa-Lobos, em Copacabana. O assunto interessa a todos, pois o complexo teatral foi erguido com dinheiro público, mantido pelo Governo do Estado e abandonado incendiado com obras de reforma inacabadas pelas mesmas autoridades. Sim, é um complexo teatral, uma construção grandiosa, um verdadeiro centro cultural inativo, queimando o investimento do dinheiro do povo.
Não se sabe se o Teatro Villa-Lobos tem fantasmas e assombrações rondando no seu interior – afinal, ele próprio foi promovido a alma penada da cidade. Na verdade, parece que teatros jovens, posto que jovens, custam a contar com assombrações, pois elas são modernas como as casas e se inclinam para outros passatempos, mais afinados com os tempos.
O Villa-Lobos é muito jovem. O teatro começou a ser construído em 1978, ficou pronto em treze meses. Receberia o nome de Ziembinski – mas o governador Faria Lima, no melhor estilo ditadura militar, mudou o nome para Villa-Lobos e o Ziembinski acabou na Tijuca, quando Walmor Chagas construiu o pequeno teatro de endereço confuso lá no bairro.
Se não tem fantasma para chamar de seu, ao menos o Villa tem lendas saborosas. A mais importante cerca o seu nascimento e permite vários debates a respeito da nossa política cultural. Reza a lenda que teria ocorrido um debate acalorado a respeito da necessidade de construção de casas de espetáculo no Rio. A vertente vencedora dos debates propunha uma orientação renovadora: que o bom dinheiro destinado a este fim fosse empregado na construção de uma constelação de casas simples, despojadas, sem luxo, tropicais e práticas. O projeto foi feito, assinado por um famoso cenógrafo com mão de arquiteto, aprovado e tcham! Derrubado. Um outro rumo para a verba foi decidido.
Ainda segundo a lenda, na Funterj, Fundação Estadual de Teatros do Rio de Janeiro, o presidente Adolpho Bloch idealizou, com a assessoria do experiente Geraldo Matheus, um teatro monumental, de veludo, mármores e grandes arcadas, projeto de Raphael Matheus Peres. Como o terreno é passagem do interceptor oceânico, que leva todo o esgoto da Zona Sul para o emissário de Ipanema, foi preciso mesmo um gigantismo arquitetônico para contornar o terreno acidentado. Por isto, todo o movimento em degraus e desníveis que a construção segue, para driblar o esgoto da cidade que corre por ali.
Não sei – insisto – se a lenda é verdadeira, apenas ouvi falar, não pesquisei e não tenho provas. Se ela é verdadeira, parece natural que a casa não tenha fantasmas, pois quem viveu a época e morreu deve estar procurando endereços errados, de pequenos teatros urbanos que não chegaram a sair do papel – teatrinhos perdidos na imaginação, hiperfantasmas teatrais. E parece uma página do teatro de absurdo o Estado erguer monumentos que não consegue manter.
Seja como for, o Teatro Villa-Lobos está aí, na paisagem urbana, nasceu para ser um glorioso templo teatral da cidade e é absolutamente inaceitável o estado de abandono em que está. A casa abrigou espetáculos históricos, encenações memoráveis – foi inaugurada em 1979 com o espetáculo Pato com Laranja, de William Douglas Home, direção Cecil Thiré, com Marília Pêra e Paulo Autran. Ou seja, chegou dizendo a que vinha, apresentando uma montagem digna de qualquer cidade zelosa por suas ofertas espetaculares.
Teatro comercial? Sim, com certeza – é com ele que todos pagam as contas e trabalham a sensibilidade média, corrente, da cidadania, constroem a identidade da sociedade, trabalham os nossos humores. E, no Dia Mundial do Teatro, é bom pensarmos os motivos que fazem com que se queira inviabilizar este lugar do teatro, de bilheteria, textos convencionais, montagens caras e cuidadas, investimento razoável de capital, estabilidade profissional. Qual a razão para dinamitar o mercado teatral? Onde se deseja chegar com isto?
Portanto, se não tem fantasma, o Teatro Villa-Lobos tem lenda e insondável mistério. Não é nada razoável ter o Teatro Villa-Lobos fechado desde 2010, devastado por obras intermináveis e incêndios mal explicados, sem datas ou planos para que o povo volte a usufruir a casa que pagou para ter. O que está acontecendo nos gabinetes, que não há sequer um mínimo gesto para dar explicações, prestar contas?
Talvez no Dia Mundial do Teatro não tenhamos nada para festejar – não temos planos de Estado para a Arte, não temos políticas culturais que percebam a função social básica do teatro junto à cidadania, não temos garantia de que os parcos teatros cariocas sobrevivam ao desmando geral. Mas vamos à luta exigir explicações, para tentar entender os fatos e saber se o teatro corre o risco de ser banido do nosso mapa social.
O que o Estado pretendia fazer com o Teatro Villa-Lobos:
IMPRENSA RJ
NOTÍCIAS
CULTURA
SECRETARIA DE CULTURA APRESENTA PROJETO DE RECUPERAÇÃO DO TEATRO VILLA-LOBOS
30/01/2013 – 12:53h – Atualizado em 30/01/2013 – 13:08h
» Ascom da Secretaria de Cultura
Sala de espetáculos terá mais 234 assentos
A secretária de Cultura, Adriana Rattes, apresentou nesta terça-feira (29/01), em evento na Casa França-Brasil, o projeto de recuperação, modernização e ampliação do Teatro Villa-Lobos. Conforme o novo projeto, a sala de espetáculos principal terá mais 234 assentos com a criação de um balcão. Ao todo, serão 656 lugares.
O teatro receberá nova caixa cênica, novos camarins, e equipamentos de última geração. Os vidros negros da fachada darão lugar a vidros transparentes, para melhor integração com o espaço público. Um recuo na calçada possibilitará melhor movimento para desembarque do público de carros e táxis. O projeto foi criado pelo escritório Archi 5 e pela arquiteta Tânia Chueke, com consultoria cênica de José Dias.
– Vamos superar a tragédia de 2011 recuperando, modernizando e ampliando o Teatro Villa-Lobos, de forma que ele possa atender às produções mais exigentes e às necessidades da cena teatral do Rio de Janeiro. O teatro reabrirá rejuvenescido – , diz a secretária.
Além dos novos assentos, o teatro receberá nova caixa cênica, novos camarins, e equipamentos de última geração. Os vidros negros da fachada darão lugar a vidros transparentes, para melhor integração com o espaço público. Um recuo na calçada possibilitará melhor movimento para desembarque do público de carros e táxis.
O projeto observa as condições ideais de acessibilidade e sustentabilidade, inclui ainda um novo foyer em três níveis, com um moderno e bem equipado café. Também no foyer estará trabalho de grandes dimensões, criado pelo artista Daniel Senise e feito com material retirado dos escombros do incêndio. As produções que trabalharem no teatro passarão a contar com um espaço novo: uma sala de leitura e convivência.
No lugar do antigo Anexo III, nos fundos do terreno, será erguido um novo prédio, dotado de um moderno teatro modular para 120 pessoas, destinado a trabalhos experimentais, e de duas salas de ensaio cujas dimensões reproduzem o palco. Além disso, terá um café ao ar livre.
A variedade de palcos e as novas condições técnicas possibilitarão a realização simultânea de até quatro espetáculos por semana.
As obras, a cargo da EMOP-Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro, estão previstas para começar em julho de 2013. A previsão para a reabertura do teatro Villa-Lobos é o segundo semestre de 2014. O custo das obras foi estimado em R$ 36.700.000,00.
Objetivos do Projeto
• Reconstruir a Sala Principal, aperfeiçoando suas qualidades originais e incorporando novas tecnologias de palco, som e luz
• Ampliar o complexo, de 3.487 m2 para 5.366 m2
• Criar uma nova plateia, com 444 lugares, e balcão com 212 lugares = 656 espectadores
• Revitalizar a imagem do conjunto, incorporando novas linguagens e materiais
• Criar novos espaços de convivência
• Construir um teatro modular com 120 lugares
• Construir e equipar um Centro de Ensaios com duas salas que reproduzem o palco principal (12 X 16 metros)
• Ampliar, modernizar e tornar mais flexíveis camarins e espaços de apoio
• Dotar todos os espaços de condições ideais de acessibilidade
• Equipar o conjunto com soluções tecnológicas de água, energia e ar condicionado modernas e sustentáveis
• Ampliar e modernizar áreas técnico-administrativas
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O cânone e o nada
Semana fervilhante: a cidade está em ponto de combustão. O país não fica muito atrás. Para todos os lados, problemas e protestos. Protestos justos e bem fundados, em boa parte. Só que o turbilhão não para. Manter o alto astral, a cabeça fria e o cérebro pensante se tornou tarefa para seres extraterrestres.
Não faltam motivos para que se perca a paciência, sair do sério ficou fácil. Na verdade, estava inscrito na tabuleta desde sempre que um dia ia dar uma baita confusão por aqui. Chegou a hora. Espera-se que a gente bronzeada mostre o seu valor. Para quem pensa, a esperança é clara – tomara que o ímpeto de reclamação e protesto, generalizado, seja transformador de verdade, que não seja apenas vontade de alugar a disponibilidade do próximo.
Reclamaram até da coluna – um amigo leitor protestou, afirmou que escrevi supondo que não existe o cânone, que não há a grande arte, diferente dos pastiches e das trivialidades banais. No seu entender, compus uma ode de celebração da arte ruim, do achismo, da opinião rasteira do momento.
Ô xente! Pois eu estava falando de um outro ponto de vista, não da análise acadêmica e douta, nem do sistema de arte, mas da recepção do ser comum, sem superpoderes acadêmicos ilustrados. No receptor, existe a sensibilidade, mas não existe o cânone, se não temos sistema educacional e cultural. A arte que chega ali, dialoga com o universo expressivo do sujeito, é mesclada com a sua expressão sentimental, é a arte em circulação e vai proporcionar algum prazer sensível.
Mas vale o debate. Cadê o cânone? Para o amigo, seria formulado na arte, independentemente das condições de recepção ou de produção. Portanto, sobreviveria impávido numa torre de marfim, metafísico. Será? Podemos dizer que produzimos arte canônica?
Este é o problema – é claro que estamos dançando num pé só, na beira do abismo, faz muito tempo. O medo (ou a ignorância) do abismo levam muitos artistas a obras rarefeitas, apelativas, efêmeras demais. Em alguns casos, há até uma autoimolação afetiva, dilaceramento em cena, a alma dependurada do lado de fora, no último fôlego. Para a plateia geral, esta é a arte que está aí, não existem referências de comparação/validação. E se é assim tortuosa, bicho-grilo e, por vezes, cara, a plateia foge estarrecida.
Pois o desespero da beira do abismo criou um tipo de artista estranhíssimo, autóctone, apavorado com a obsolescência, eterno vanguardeiro. A ordem do dia é a pesquisa, a invenção, a ultrapassagem dos limites – mas só o artista conhece (ou pensa conhecer) os limites a ultrapassar.É preciso ser transgressivo, audaz – quer dizer, em lugar de encenar Shakespeare, urge reinventar o bardo. Antes de saber falar os versos elaborados do autor, explorar a sua densidade, deve-se descobrir um jeito novo, revolucionário, de estrangular cada estrofe.
Portanto, em tais condições, debater o cânone da arte teatral no Brasil se torna muito difícil. Aqui a arte é líquida, não é instituição, se esvai sob o sol escaldante do verão. Podemos debater Shakespeare, Goethe, Tchekhov, Ibsen, Strindberg, Shaw… Quais seriam para você, leitor, os autores teatrais canônicos? Mas qual a materialidade destes autores no universo teatral brasileiro? Aliás, para criar mais um problema, quais são os autores canônicos nacionais?
Enfim, problemas, muitos problemas. Problemas gigantes como o país. O que eles exigem? Protestemos contra a falta de projeto cultural e educacional de Estado, protestemos contra a indigência em que vivem os professores deste país, protestemos contra a atmosfera cultural pífia de nossas cidades. Protestemos! Mas, ao lado dos protestos, importa agir. Agir significa algo simples – encontrar meios para fazer da arte da cena uma prática densa, instaurada na ordem social.
Não, não é para rejeitar o que somos e começar do zero. Temos uma obra teatral consolidada com feição própria. Por causa de nossa vanguardite crônica, temos exemplos curiosos, fortes, de ação bem sucedida. Conseguimos resultados históricos valiosos. Um exemplo notável poderá ser avaliado a partir desta semana, no CCBB, o peculiar fôlego para o trabalho da Cia dos Atores. Eles vão estrear Insetos, de Jô Bilac.
Quer dizer, não é bem isto – a rigor, faz tempo que a dramaturgia, para a Cia dos Atores, é um lugar de experimentação. Assim, Insetos tem adaptação assinada pela Cia dos Atores e pelo diretor desta montagem, o premiado Rodrigo Portella, de Tom na Fazenda. O que isto significa? Simples – esperem algo absolutamente inovador. Para começar, a sala de apresentação não será um teatro convencional, com palco, plateia e CEP, mas sim as salas C e D, espaço rotineiramente usado para exposições do CCBB.
E não é só – o cenário de Beli Araújo e Cesar Augusto (sim, o ator e diretor) foi construído com pneus, este símbolo da inventividade (a roda) e da obtusidade (o automóvel). Os figurinos de Marcelo Olinto passeiam pelo mundo dos insetos. E a junção destes elementos cênicos já insinua a força expressiva da montagem – o foco é falar da crise da sociedade do nosso tempo, usar os insetos para desviar a lupa para a potência destrutiva humana.
A montagem comemora os trinta anos da cia, com a presença em cena de quatro atores-fundadores do conjunto – Cesar Augusto, Marcelo Olinto, Marcelo Valle e Susana Ribeiro. Chegar a tantos anos de trabalho, no teatro brasileiro, é um feito memorável – quase um protesto cronológico anteposto a todos os obstáculos contrários à força do teatro.
A força do teatro, afinal, é uma qualidade importante para a sobrevivência da arte na sociedade. Ela transita em outras montagens de vida longa, reestreias desta semana, indícios da resistência da arte. Na Caixa Cultural (Teatro de Arena), até 1 de abril será possível ver Silêncio, de Renata Mizrahi, excelente trabalho de atriz de Suzana Faini. Ao lado de Priscila Vidca, Verônica Reis, Jitman Vibranovski, Alexandre Mofatti e Gabriela Estevão, a protagonista expõe uma situação de família muito eloquente para a atualidade, pois a cena é atravessada pelo preconceito mais rude, o enfrentamento de um tabu bem pouco debatido ainda hoje.
A jovem guerreira Clara Santhana cumprirá, no Teatro Clara Nunes, mais uma temporada do musical de bolso biográfico dedicado a Clara Nunes, uma montagem de sucesso popular. Com texto de Marcia Zanelatto e direção de Isaac Bernat, Deixa Clarear – Musical sobre Clara Nunes ativa a linha dos musicais singelos que têm feito a rotina da cena carioca.
Já no Teatro Net Rio, a oportunidade imperdível é o vigor da luta de Martin Luther King, que tanto tem para ensinar a este Brasil racista, autoritário e preconceituoso. O Topo da Montanha, de Katori Hall, permite que os excepcionais atores Lázaro Ramos e Taís Araújo nos emocionem até o último feixe de nervos com ideias, situações e sentimentos de humanidade plena.
Portanto, a conversa da semana é papo direto – debater o cânone é fundamental para as lides acadêmicas. Para a rotina da sociedade e do teatro, o valor maior é situar as necessidades da hora e as respostas cênicas sonantes. Quer dizer – diante dos problemas, dos desafios, vale buscar saber o que o palco tem a dizer, como ele diz e para quem ele diz.
Os valores e requintes mais sofisticados disto tudo, conheceremos no futuro, nos livros. Ou, se continuarmos apenas em combustão e explosão, sem construir uma ordem nova, quem sabe as traças – com certeza traças canônicas, aperfeiçoadas pela fervura geral – venham um dia a saber o valor mais elevado do que anda agora rolando nas cenas, antes de o país ir pelos ares.
Foto: Elisa Mendes
Espetáculo: “Insetos”
Temporada: De 22 de março a 6 de maio, de quarta a domingo.
Horários: de quarta a sexta, às 19h. Sábado, às 17h e 19h. Domingo, às 19h.
Local: CCBB Rio (Rua Primeiro de Março, 66 – Centro)
Salas C/D – Segundo andar.
Informações: (21) 3808-2020.
Capacidade: 116 lugares. Recomendação etária: 14 anos.
Duração: 80 minutos.
Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia).
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SAC 0800 729 0722 – Ouvidoria BB 0800 729 5678
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Pelo direito de viver com dignidade
Apeça deveria ter um impacto devastador aqui: no Brasil, a vida humana não vale nada. Nunca valeu. A sociedade inteira, de cima abaixo, professa graus os mais variados de fria indiferença frente ao direito digno de existir. Convivemos todos, sem revolta, com multidões de crianças, o futuro do país, largadas nas ruas, no lixo, sem acesso à educação e na ausência completa de oportunidade social, entregues à violência mais brutal e à degradação. Assistimos impávidos a fuzilamentos diários truculentos por todo o país.
Gangues vorazes estão tomando o poder por toda a parte, em especial em bairros populares, diante da atitude de total alheamento das elites e do poder. Estamos gerando um país profundamente corrompido, mas isto não parece nos incomodar, como se a convivência com uma sociedade criminosa fosse uma banalidade, um fato irrelevante.
Portanto, importa ir ao teatro e levar o soco na boca do estômago, tentar pensar o problema na sua crueza. A Visita da Velha Senhora, de Dürrenmatt (1921-1990), é um dos melhores espetáculos em cartaz na cidade, no Teatro Ginástico. Será uma das grandes obras do ano, se tornará um destaque histórico e merece todos os prêmios. Corra para ver, a temporada vai ser muito curta.
O tema profundo, ácido, caro ao escritor suíço, é a cegueira do cidadão ocidental. A cegueira que cimentou a implantação do nazismo, testemunhou o holocausto, permite o genocídio cotidiano institucionalizado pelo mundo. A sua visão não tem a perspectiva redentora de Brecht: a revolução social não vai trazer uma saída, a indagação virulenta precisa por em xeque o próprio sujeito, desnudar a sua cumplicidade e a sua culpa, para cada um, na sua intimidade.
A pergunta nossa, de agora, séria, é como nós, colonos do ocidente, conseguimos levar esta lição perversa a uma potência extrema. Como conseguimos calar, em nome de estranhos pactos de poder, para a perpetuação destes poderes, diante do erro, da degradação, do aviltamento da dignidade.
O cartaz tem tradição no palco brasileiro, o teatro moderno nacional acompanhou o sucesso mundial da peça. O original foi lançado em Zurique em 1956, a versão americana estreou na Broadway, sob a direção de Peter Brook, em 1958, e a encenação brasileira, sob a direção de Walmor Chagas, de 1962, foi a maior produção da história da companhia da atriz Cacilda Becker, em cena ao lado de Sérgio Cardoso (Schill) e de Eugênio Kusnet (Mordomo).
Em 2002, o texto foi encenado por Tônia Carrero, sob a direção de Moacyr Goes, com a participação de Carlos Alberto (Schill), Cláudio Corrêa e Castro (prefeito) e André Valli (professor). Os cenários foram assinados por Helio Eichbauer e os figurinos por Guilherme Guimarães e Biza Vianna.
Salvo raras exceções, as críticas destas montagens impressionam, pois consideram desprezíveis ou equivocadas as criações apresentadas – tanto o trabalho de Cacilda Becker como o de Tônia Carrero foram alvos de restrições veementes, um pouco na linha professoral da velha crítica moderna. Vários críticos consideraram que os artistas – diretores e atrizes titulares – não tinham densidade profissional ou maturidade artística para entender o texto, cuja chave de compreensão, no entanto, eles consideravam que detinham.
Semelhante julgamento não pode ser associado ao cartaz atual. Denise Fraga cumpriu uma trajetória ousada, de enfrentamento recente de textos monumentais, com a encenação de A Alma Boa de Setsuan e A Vida de Galileu, de Bertolt Brecht. N’A Visita da Velha Senhora, o seu desempenho é marcado por um colorido surpreendente de técnica e emoção, inteligência e humor.
Em resumo, trata-se de um grande feito, uma realização difícil, passível de ser alcançada por uma atriz de grandes recursos expressivos, requintada por uma vivência artística intensa de Brecht. A compreensão da trágica mas humorada máquina de poder representada pela velha senhora transparece cristalina.Entre certo tom de distanciamento, certa atmosfera de entrega, com gestual largo e generoso, expressão carregada, a atriz desenha uma senhora monstruosa, um ser que talvez nem seja exatamente humano, tais as cirurgias e implantes por que passou. Não há caricatura, nenhum apelo à facilitação. Denise Fraga responde com garra ao texto, concilia o grotesco da alma de Claire Zahanassian com a condição de grande dama que o dinheiro lhe permitiu conquistar no mundo. Graças a esta combinação sutil, a ironia, o riso amargo e a estupidez cega se materializam com força.
Menos experiente em teatro, Luiz Villaça, diretor de cinema e de televisão, alcançou um belo resultado na direção de cena, nas marcações limpas e ousadas, mas oscilou um tanto no desenho da curva de clima do espetáculo, que declina um pouco logo que a situação dramática é apresentada. Contudo, a hesitação é discreta, não chega a afetar a contundência profunda do texto.
A adaptação do texto, aliás, de Christine Rohrig, Denise Fraga e Maristela Chelala, seguiu uma concepção funcional, sem prejuízo para a estrutura da obra. A trama é uma engrenagem diabólica, uma espécie de maquinismo perverso de relojoaria ensandecida, porém de colorido tristemente real. Apresenta um lugar miserável, Güllen, em franca decadência, aldeia de nascimento da Senhora Zahanassian, lugar afetivo em que ela foi uma jovem pobre irreverente, apaixonada por Schill, atual dono do modesto armazém.
Para casar-se com a filha do dono do armazém, ele abandonou em remorso a jovem Claire grávida. Contou com a ajuda de amigos locais, que prestaram falso testemunho, denegrindo a sua pessoa. Desmoralizada, ela saiu da cidade, perdeu a criança, se tornou prostituta, contraiu matrimônios milionários e se tornou uma potência internacional. No seu retorno, pretende restaurar o poder da vila decadente graças a uma polpuda doação e generosos investimentos, desde que Schill seja assassinado.
Tuca Andrada impõe a força humana de Schill com extremo vigor. A principio, confiante e gabola, ele se atribui e aceita desempenhar um imaginário poder de manipulação junto à milionária suficiente para figurar como herói do burgo. Aos poucos, apesar da confiança explícita nos conterrâneos, cada vez mais hesitantes, ele vai se acinzentando, aniquilado sutilmente pelo poder do dinheiro, que exige a sua morte.
Seguindo uma ótica atual, despojada, apoiada pela direção de arte de Ronaldo Fraga, responsável pela cenografia e pelos figurinos, o espetáculo valoriza o desempenho dos atores, cercados por sugestões e insinuações simbólicas dos espaços urbanos e do tempo. Barraquinhas discretas, inspiradas nas feiras e brechós – quase um camelódromo – denunciam a humildade do vilarejo e são movidas pelos atores para compor os diferentes lugares de ação. A luz de Nadja Naira pontua o andamento da representação com rigor, desenha os diferentes momentos da cena, com atmosferas dramáticas e de abertura do espaço espetacular para a participação da plateia.
Os atores seguem, também, uma concepção dinâmica de interpretação, muito contemporânea, a um tempo coral e épica – sem prejuízo para desempenhos marcantes individuais. Na concepção de Luiz Villaça, o público integra a população da cidade. Assim, os espectadores são recebidos pelo elenco e convidados a uma discreta porém potente participação, uma reiteração de que, afinal, o autor está falando de todos nós, para cada um de nós.
Além dos protagonistas, são onze atores em cena – Fábio Herford, Romis Ferreira, Eduardo Estrela, Maristela Chelala, Renato Caldas, Beto Matos, David Taiyu, Luiz Ramalho, Fernando Neves, Fábio Nassar e Rafael Faustino – e alguns precisam dobrar papéis para cobrir a longa lista de personagens. Além da função dramática, eles executam com rigor a bela trilha sonora original, de Dimi Kireeff e Rafael Faustino.
Na liderança da comunidade, Fábio Herford, no prefeito, se destaca por sua maestria para traduzir o político de caráter sinuoso, até mesmo repulsivo. Romis Ferreira expõe com brilho extremo no professor a crueza da corrosão moral provocada pela chantagem da velha senhora e oferece um belo contraponto ao padre, construído por Eduardo Estrela como uma espécie de virtuoso cínico. Rafael Faustino se projeta como músico e como o desprezível personal-assassino.
Raras são as oportunidades, hoje, no teatro brasileiro, de contar com a encenação de textos tão significativos para a cultura e para o pensamento ocidentais, impactantes para o momento histórico enfrentado pelo país. Ressalte-se que a produção é generosa, grandiosa mesmo. Talvez nenhuma outra instituição nacional esteja no momento, em grau comparável, investindo tanto para sacudir as sensibilidades e pôr em questão os valores e a ética de cada um.
A importância decisiva do texto para a reinvenção do ser humano ocidental é de tal ordem que ele deveria ser apresentado rotineiramente em circuitos estudantis. Quem sabe o velho suíço lúcido possa contribuir para que, na sociedade brasileira, se consolide um pensamento contra a banalização da vida. Já passou da hora para que as vidas humanas, aqui, deixem de ser descartáveis. Urge unir esforços para que a fuzilaria pare de nos fazer sentir horrendas figuras sociais, monstros de carne, maquinismo e sangue nas mãos.
Autor:Friedrich Dürrenmatt
Stage rights by Diogenes Verlag AG Zürich
Tradução:Christine Röhrig
Adaptação:Christine Röhrig, Denise Fraga e Maristela Chelala
Direção Geral:Luiz Villaça
Direção de Produção:José Maria
Elenco: Denise Fraga, Tuca Andrada, Fábio Herford, Romis Ferreira, Eduardo Estrela, Maristela Chelala, Renato Caldas, Beto Matos, David Taiyu, Luiz Ramalho, Fernando Neves, Fábio Nassar e Rafael Faustino
Direção Musical:Dimi Kireeff
Direção Visual:Ronaldo Fraga
Trilha Sonora Original: Dimi Kireeff e Rafael Faustino
Desenho de Luz: Nadja Naira
Preparação corporal e coreografias: Keila Bueno
Direção Vocal: Lucia Gayotto
Preparação Vocal: Andrea Drigo
Visagismo: Simone Batata
Fotografia:Cacá Bernardes
Assessoria Imprensa Rio:Barata Comunicações | Eduardo Barata
Projeto realizado através da Lei Federal de Incentivo à Cultura.
Produção Original: SESI-SP | FIESP
Patrocínio Exclusivo:Bradesco
Realização: Sesc Rio de Janeiro, NIA Teatro, Ministério da Cultura e Governo Federal
Teatro Sesc Ginástico
Av. Graça Aranha, 187, Centro
De 01o a 25 de março de 2018
De quinta a sábado às 19h, e domingo às 18h
Sessões extras dias 23 e 24 de março às 15h
Estreia dia 01o de Março às 20h.
Ingressos: R$ 30,00 (inteira) | R$ 15,00 (meia-entrada) | R$ 7,50 (associados Sesc)
Horário de funcionamento da bilheteria:
de terça a domingo das 13h às 20h
Informações: (21) 2279-4027
Recomendação: 14 anos | Duração: 120 minutos | Gênero: Comédia Trágica
Teatro: veneno e remédio
Volta e meia o assunto aparece: o que se faz com uma peça ruim? A rigor, não há nada a fazer, apenas ver e tentar entender o que aconteceu. Como nasce uma peça ruim? Ninguém assina um fracasso por querer. Acontece. E detalhe importante: nem sempre uma peça é ruim para todo o público.
Já vi peças detestáveis que o público adorava, urrava de satisfação – exalava o sublime prazer de ser enganado sem arte – e eu não morri por ter estado por lá, no meio da plateia. Sobrevivi sempre e fiquei exercitando os neurônios para tentar entender o desastre, a sua função na linha de trabalho daquele artista. Há sempre uma lógica da arte ao redor das oscilações da arte.
Gosto muito de lembrar uma entrevista que fiz com o ator Sergio Britto (1923- 2011), em que ele se declarou contra o teatro na escola – no seu entender, o teatrinho escolar de papel crepom só poderia gerar pessoas de sensibilidade deformada, incapazes de entender a arte. O resultado seria afastar o público do teatro.
No entanto, conheci uma faxineira cujo maior encanto de toda a vida foi ter tido a chance de fazer teatro de papel crepom na escola primária, na Baixada Fluminense – por causa da experiência, ela adorava teatro e sempre que podia e o bolso deixava, ela ia ver as peças em cartaz. Não era uma especialista, enquanto convivi com ela nunca deixou de ser uma espectadora singela, mas ela dizia que sempre saía do teatro com a alma leve. Qualquer teatro, vale frisar – mesmo peças que, para especialistas, emanavam o mais puro tédio – faziam a sua felicidade.
Portanto, vale concluir a favor da boa intenção eterna do artista, da constituição humana positiva da arte. Quando alguém sobe num tablado, por mais sem noção que o exibido possa ser, ele acredita sinceramente ter algo importante, significativo mesmo, para passar adiante. Busca, então, transmitir esta sua descoberta, a sua produção, algo em que investiu energia e tempo.
O artista sabe dos seus riscos. No fundo da alma, teme ser um enganador desclassificado, um blefe. Mas mergulha, confia, não sabe fazer outra coisa. Existe a possibilidade, contudo, de uma hesitação, um vácuo, um vazio, um equívoco. E pronto – a obra não consegue mobilizar o outro, o espectador. Recebe uma avalanche de vaia, coisa rara hoje. Ou esvanece sob pura indiferença. Ou mobiliza um segmento reduzido. Mas, não importa: a obra está ali e sempre estará acionando um fluxo de energia e de comunicação viva, certamente o elo que incendiava a minha amiga faxineira.
Sergio Britto também tinha horror ao artista medíocre. Mas, convenhamos, ele existe, tem a sua função e o seu público. O modesto artista suburbano tem todo o direito à sua arte. Nem todo artista é genial, é Rimbaud, cada um faz o melhor que pode e, afinal, o verso do momento do grande poeta pode ser ruim. No meio de uma obra de excelência, um dia aparece o cascalho bruto, o verso torto, menor. Talvez uma procissão de pequenos artistas seja necessária para o nascimento de um ídolo.
Mas não é só isto. É mais. Instável, a natureza da arte. O próprio da trajetória da arte, de toda a grande arte, é ser acidentada. É impossível fazer uma obra prima todo o dia, só conceber grandes obras, perfeitas, por mais genial que o artista seja, por mais que disponha de condições ideais de inspiração e de produção.
A criação é um processo, atinge um grau mais elaborado em certo momento, mas passa por etapas de formulação mais problemáticas, menos nítidas, com menor clareza de concepção. Ter difusão da arte na sociedade e escola, educação para todos, impulsionam o refinamento da expressão coletiva. O teatro de escola é direito do cidadão, dever do Estado e oxigênio para a arte.
Na verdade, tudo pode ficar bem desfavorável para o artista, tudo pode ser bem mais difícil. Numa sociedade de escolaridade nebulosa, a expressão coletiva tende a ser turva. Num cenário teatral rarefeito, instável, com instabilidade de produção, como conseguir uma voltagem produtiva elevada, propícia ao fluxo criativo mais requintado, refinado? No caso do teatro, que não é obra solitária de atelier ou de escrivaninha e depende de condições materiais objetivas de produção, uma arena de arte hostil, como a brasileira, é um enorme obstáculo para o trabalho do artista.
Ainda assim, temos grandes artistas – temos artistas guerreiros capazes de sobreviver e produzir sob condições de trabalho detestáveis. No entanto, há um preço, temos sempre uma instabilidade grande de produção. Temos um contingente razoável de peças com resolução obscura. As obras fracassadas – as pecas ruins, digamos – se tornam bem mais dolorosas, pois não se permite, para o artista de teatro brasileiro, o horizonte de hesitação natural na produção de arte.
O artista teatral brasileiro tem que acertar sempre – o que é uma total impossibilidade. As peças aqui, boas ou ruins, têm pouco público, não podem viver em liberdade o seu fluxo de concepção e criação, vivem pouco tempo. O teatro brasileiro é um cemitério, cheio de fantasmas e de obras vítimas de morte prematura. O teatro é acidental, em lugar de ser um diálogo estético vivo da sociedade. Pouca gente frequenta o teatro para vivenciar a linguagem específica da encenação. Neste contexto, o teatro é outra coisa do que aquilo que ele é: é passatempo, é desfile de celebridades, é fru-fru social, é modinha, é caça-níquel, é passarela de vaidades, é lavanderia. Difícil, então, definir com objetividade o que seria uma peça ruim.
Neste jogo insano, dois fatores precisam ser muito valorizados: os prêmios, a escolha dos melhores de cada ano, e a grande produção, com oferta de condições de trabalho estáveis. São dois eixos de importância para o equilíbrio do mercado – devem favorecer a qualidade, a obra de artesanato sofisticado, estimular o burilado da arte.
A reflexão importa esta semana por conta de dois grandes acontecimentos – o primeiro, a cerimônia de entrega do Prêmio Shell de Teatro, exatamente a comemoração festiva de trinta anos do prêmio, uma noite de gala no Golden Room do Copacabana Palace. A lista de indicados, abaixo, reúne vários segmentos da arte, com ligeira tendência à valorização da pesquisa de linguagem e do vanguardismo. O Prêmio Shell se tornou um prêmio inquieto, preocupado com o experimentalismo e um tanto distante dos grandes nomes-monumentos da arte, apesar de ser concedido por uma gigante do mercado petrolífero.
O segundo acontecimento é, no mesmo dia, a estreia de Romeu e Julieta, de Shakespeare, em versão musical, grande produção da Aventura, cartaz do belo Teatro Riachuelo. A ficha técnica do espetáculo conta com profissionais do mais alto padrão e a expectativa é de que o Rio terá uma peça para celebrar a alma da cidade.
Além do grande volume de capital investido, nomes preciosos povoam a ficha técnica. A direção geral coube a Guilherme Leme Garcia, a preparação do elenco ficou sob a responsabilidade da atriz Vera Holtz. O cenário traz a excelência de Daniela Thomas. E vai por aí.
A montagem é de importância estratégica para a cena teatral atual por esta condição de grande produção de qualidade. E por trazer à baila, mais uma vez, um debate histórico importante. Assinada por Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche, também responsáveis pela adaptação do texto original, a trilha sonora revela um nome novo para o teatro – Marisa Monte.
Assim como, no início do século XX, a música popular e o teatro estiveram casados e unidos na cena carioca, para deleite do público, o casamento desfeito volta a acontecer aqui. A música abandonou o teatro, fez carreira solo de imenso sucesso, fugiu para o radio, o cinema, o disco e o show. A volta é uma virada histórica memorável.
O caminho foi o segredo irresistível de Otelo da Mangueira, de Gasparani. Fora da linha do musical biográfico, que transpõe para a cena em música a vida de astros da MPB, este formato ousa buscar o andamento dramático de textos consagrados em canções de sucesso do nosso tempo. A ideia é maravilhosa, os artistas envolvidos exemplares e a chance de fazer a cidade cantar teatro é total. Ou seja, está em cena muito do que se precisa para ter peças excelentes, favoráveis à pujança do teatro. Em uma palavra: imperdível.
Foto: Felipe Panfili
Lista dos indicados da 30ª edição do Prêmio Shell de Teatro do Rio de Janeiro:
Autor
Marcia Zanelatto por “Ela”
Walter Daguerre por “Josephine Baker, a Vênus Negra”
Braulio Tavares por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Pedro Kosovski por “Tripas”
Direção
Eric Lenate por “Love Love Love”
Rodrigo Portella por “Tom na Fazenda”
Luiz Carlos Vasconcelos por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Paulo de Moraes por “Hamlet”
Ator
Armando Babaioff por “Tom na Fazenda”
Gustavo Vaz por “Tom na Fazenda”
Adrén Alves por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Ricardo Kosovski por “Tripas”
Atriz
Aline Deluna por “Josephine Baker, a Vênus Negra”
Yara de Novaes por “Love Love Love”
Guida Vianna por “Agosto”
Juliane Bodini por “Dançando no Escuro”
Letícia Isnard por “Agosto”
Cenário
Aurora dos Campos por “Tom na Fazenda”
Mina Quental por “Mata teu pai”
Carla Berri e Paulo de Moraes por “Hamlet”
Sérgio Marimba por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Figurino
Beth Filipecki por “Ivanov”
Marcelo Marques por “Josephine Baker, a Vênus Negra”
Kika Lopes e Heloisa Stockler por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Marcelo Olinto por “Zeca Pagodinho – Uma História de Amor ao Samba”
Iluminação
Aurélio de Simoni por “Ubu Rei”
Nadja Naira e Ana Luzia de Simoni por “Mata teu pai”
Maneco Quinderé por “Hamlet”
Paulo Cesar Medeiros por “O Jornal”
Música
Marcello H. por “Tom na Fazenda”
Ricco Viana por “Janis”
Chico César, Beto Lemos e Alfredo Del Penho por “Suassuna – O Auto do Reino do Sol”
Marcelo Alonso Neves por “Dançando no Escuro”
Inovação
“Que legado” pela ocupação cultural que propõe o diálogo entre profissionais de atuações e geografias diversas no Rio de Janeiro.
“Escola Spectaculu” pelo contínuo trabalho de formação e inserção de jovens profissionais na área técnica das artes cênicas.
Espetáculo “Tripas” pela forma de realização entre a universidade, através dos programas de pós-graduação, e a produção teatral.
Homenagem
Hélio Eichbauer por seu trabalho ao longo de mais de 50 anos de renovação da cenografia brasileira.
Poeira de estrela ao nosso redor
Asemana começou sob o signo da dor: o adeus a uma grande estrela é sempre um mergulho na sensação de que, sem ela, ficamos menores e piores. Tônia Carrero partiu e com ela seguiu uma fortuna cultural imensa, muito variegada, um mundo do teatro impactante, uma história de mulher sensacional. E mais: desaparece agora também um jeito de ser carioca, talvez em boa parte o jeito de ser carioca. Dói fundo na gente, porque sabemos que a parte perdida contava muito e é irrecuperável.
A morte abriu o baú das lembranças e várias histórias deliciosas circularam sobre a lenda viva que foi a atriz irresistível. Além da carreira de elevada voltagem artística, Tônia Carrero foi uma mulher exuberante, alegre, iluminada, senhora de uma presença arrebatadora em qualquer roda social, numa época em que o Rio era a roda social do país. Conviver com ela era sempre oportunidade certa para saudar a alegria, flertar com as emoções mais positivas da vida. E entristece a todos os amantes do teatro constatar que a sua morte acontece num momento em que um estranho ciclo parece estar se fechando – em 2016, a cidade perdeu a Sala Tônia Carrero, no Leblon, enquanto o teatro, se não está andando para trás, está estagnado.