A Caixinha de surpresas do vendaval
Parece um vendaval – para onde você olha, tudo vai pelos ares, esvoaça, como se dançar fosse o destino natural de tudo. Um alento, diante do freio de arrumação alucinado, bagunçando o coreto geral: dá para arejar as ideias, ousar pensar o novo, perguntar a sério a respeito do que desejamos para a vida. O vendaval na vida sacode a vida, mas é ótimo para pensar a vida. Quem sabe, rever tudo.
A notícia furacão da semana no Rio é o anúncio, ainda não confirmado oficialmente, de que os generosos espaços da Caixa Cultural RJ, no Centro, serão fechados até agosto. A unidade conta com um teatro de arena encantador, dois cinemas, quatro galerias de arte, além de espaços complementares para ensaios e oficinas. Em suma, um centro cultural dinâmico e de atuação reconhecida na cidade.
Segundo as informações sopradas por um funcionário anônimo, a bomba foi anunciada numa reunião interna. Na versão do disse-me-disse, a Caixa vai se mudar para um prédio mais modesto, em que não há espaço para a cultura, só para a contabilidade mesmo. Portanto, a Caixa estaria às vésperas de uma mudança radical. Pronta para encolher, mas só no Rio – a Caixa Cultural permaneceria intacta nas demais capitais, a saber Brasília, Curitiba, Fortaleza, Recife, Salvador e São Paulo.
O estopim teria sido o alto preço do aluguel do imóvel, uma surpresa para quem sempre pensou que a casa espaçosa da Caixa era própria ou, não sendo, que a entidade seria rica o bastante para bancar o teto chique no ponto nobre do Centro do Rio. Vamos combinar que o simples contorno do boato – se é que se trata de boato – já é estarrecedor. A Caixa sem dinheiro para pagar o aluguel?
A coisa vai mais além até: pululam os adjetivos de surpresa e medo. É muito preocupante, numa república que não tem feito outra coisa a não ser enriquecer os bancos, um banco estatal tradicional forte aventar dificuldades para pagar o aluguel. A poupança da alma de cada cidadão estremece. E, no Rio, mais adiante do cenário nacional ameaçador, o carioca urra.
Pois, em primeiro lugar, não existe mais aqui espaço sentimental para cogitar uma redução maior ainda da vida cultural da cidade, a tal que seria a capital cultural do país. A vida cultural carioca está enrodilhando ladeira abaixo e a expectativa de todos, em especial diante do poder público, é a do anúncio de medidas de reversão da crise. Anúncios de mais aperto e redução, não dá para aceitar não.
Dentro em breve, o Rio poderá se tornar, ao menos em termos relativos, a primeira megalópole do Ocidente sem teatro, pois a divisão do número de assentos teatrais pelo número de habitantes vai dar um número negativo espantoso. Os teatros fecham aqui num ritmo inadmissível – qualquer governo digno deste nome já teria tomado medidas eficientes a respeito, trataria de estancar a hemorragia.
Há muito tempo atrás, numa entrevista jornalística, perguntei a Fernanda Montenegro qual seria, no seu entender, o motivo para a não expansão da oferta de teatros no Rio. Ela argumentou com uma condição ditada por aqueles tempos, anos 1980, em que imperava o poder dos Sérgios Dourados: a especulação imobiliária tornava o teatro um investimento anacrônico. Em parte, ela estava com a razão – só em parte. Tudo indica que há uma engrenagem perversa, violenta, mais profunda, interessada em cultivar a sociedade de degradação humana que está se espalhando aqui.
O fato é que o teatro não interessa ao Estado, ao Poder bárbaro, pois ele é um dispositivo eficiente para a construção do cidadão sensível pleno. Para completar a nossa ruína, tampouco a classe conseguiu demonstrar, e consolidar, com ímpeto e fúria, a importância social da arte da cena. Por isto, o teatro só faz definhar. E a Caixa, como Eike Batista e tantos outros antes, pode insinuar o fim de uma importante casa de teatro – e de cultura – na certeza da impunidade. A lista dos teatros que foram abaixo no último século sem que nada acontecesse diante do crime de lesa-comunidade é revoltante.
Mas há um segundo problema a considerar, para dimensionar o absurdo que é, para a sensibilidade carioca, o fim das atividades da Caixa Cultural. A Caixa Cultural foi criada e instituída com dinheiro do povo. A Caixa é um banco público. Fechar a Caixa Cultural é crime contra a economia popular. E é uma estocada feroz na Lei Rouanet.
Não tenho dados, mas certamente a Caixa Cultural se valeu da isenção fiscal. Assim, é dinheiro público ao quadrado. A Lei da Isenção fiscal foi concebida, no Brasil, para tentar levar a elite, indiferente e desinteressada pelo país, a investir na produção de cultura brasileira. Colonizada, hipnotizada pelo mercado internacional, a elite brasileira nunca sentiu outro interesse cultural que não fosse a produção europeia ou norte-americana.
Uma frase brincalhona atribuída a uma grã-fina paulista de quatrocentos anos, mecenas das artes mais por obrigação do que por gosto, retrata bem a condição nacional. Segundo o folclore, ela costumava dizer: “Quando noto que sinto vontade de olhar as vitrines do Mappin, é porque está na hora de voltar para Paris.”
A hora, portanto é de perguntar se a Lei Rouanet foi para Paris, digamos. Ou ficou a ver navios. É escandaloso que este dispositivo legal de aplicação do dinheiro público na cultura tenha se tornado uma ferramenta de marketing de empresas, bancos, instituições financeiras, em lugar de ter gerado uma torrente de investimento privado a favor da cultura no país. O que aconteceu? A rigor, as leis de incentivo fiscal, ao menos teoricamente, viabilizaram a redução das verbas de marketing – ou a ampliação do marketing privado através do dinheiro público. Que os empreendimentos gerados por este meio, chancelados com o nome do possível mecenas, fechem as portas, é imoral, é um escândalo, exemplo de gestão pública nociva.
Portanto, se chocou a sensibilidade carioca o ato de Eike Batista fechar o Teatro Glória, se revolta hoje a todos a omissão do Estado do Rio diante da imponência do Teatro Villa-Lobos condenado às ruínas, o que sentir e dizer diante da possibilidade do fechamento da Caixa Cultural, um centro cultural de funcionamento exemplar, gerado e financiado pelo dinheiro público, fechado como se fosse um bem particular, de uma entidade privada? A Caixa pode fechar a Caixa Cultural no Rio à revelia dos interesses sociais e culturais da cidade?
Vale o debate amplo, geral e irrestrito destes fatos e deste vendaval de estranhas proporções. Um povo sem cultura é um risco que não se pode correr e a cultura nacional não tem mais para onde cair. Em boa hora, no olho do furacão, anuncia-se a reabertura do Teatro Adolpho Bloch, prenda nobre da cidade maravilhosa. Este é o gesto que se espera: grandeza de realizações, mãos espalmadas para oferecer recursos de ativação da vida cultural, mãos que receberão os aplausos da cidadania ávida para ter de volta uma cidade de luz, uma pérola para encantar a vida de todos os que têm a graça de circular por aqui.
Diante dos fatos, ou dos boatos, é urgente afinar os mecanismos de articulação da classe teatral; não se trata de tentar fazer política partidária, usar a classe em função de jogos eleitorais, mas, antes, de reconhecer a urgência comum relativa à definição do campo de trabalho no seu sentido mais amplo. Um primeiro passo importante foi dado pela APTR, em carta à Caixa Econômica Federal. Maturidade, equilíbrio, visão da arte e do papel social da arte em si, parece ser este o convite expresso no vendaval. Que possamos nos tornar senhores dos ventos, para criarmos juntos, na nossa sociedade, a possibilidade do teatro futuro.
Rio de Janeiro, 20 de abril de 2018.
À Caixa Econômica Federal
A/C – Sr. Nelson de Souza – Presidência
Brasília – DF
Prezado Sr. Nelson de Souza,
Primeiramente, felicitações pelo novo cargo. Desejamos sucesso em sua gestão.
A APTR – Associação de Produtores de Teatro gostaria de solicitar esclarecimentos a respeito de notícia recentemente veiculada em que se dá como certo o fechamento de um dos mais importantes equipamentos culturais do país, a Caixa Cultural Rio de Janeiro / unidade Almirante Barroso.
Aproveitamos a oportunidade para ressaltar que em seus 12 anos de funcionamento, a Caixa Cultural Rio tornou-se uma grande referência para artistas de todas as linguagens e estéticas, atraindo e fomentando a visitação do grande público. O prédio da Almirante Barroso compõe o tradicional corredor cultural do centro da cidade, abrindo democraticamente espaço para os novos talentos da arte contemporânea; o teatro de pesquisa de linguagem; o cinema experimental e independente; e também os consagrados artistas de todas as áreas.
A Caixa Cultural tem impulsionado a cultura do Rio de Janeiro com uma programação pautada na diversidade e qualidade.
Constatando o impacto positivo que a Caixa Cultural exerce, e acreditando no seu potencial, fazemos um apelo para que tal decisão, se verdadeira, seja revertida. O estado do Rio de Janeiro vive e sobrevive a um momento de falência econômica e de intervenção federal na segurança. Acreditamos que a sensibilidade de um novo gestor poderá reverter o quadro e manter, em pleno funcionamento, o importante prédio da Almirante Barroso, que abriga a Caixa Cultural Rio, com tanta pluralidade artística, ingressos gratuitos ou populares e com grande repercussão para o público carioca e fluminense.
O fim da Caixa Cultural Rio seria uma grande perda para a cultura brasileira e também para a Caixa Econômica Federal, instituição que realiza importante trabalho e tem sua marca associada ao desenvolvimento da cultura brasileira e do próprio país.
“A CAIXA Cultural Rio de Janeiro está localizada no edifício-sede da CAIXA, na Av. Almirante Barroso, 25, junto à Estação Carioca do metrô e do VLT. Inaugurada em 2006, abriga em seus mais de 6.000m² um teatro de arena, dois cinemas, quatro galerias de arte, além de salas de oficinas e ensaios.”
“Rica e diversificada, a cultura brasileira é fruto do grande potencial humano e estético de nosso povo, refletindo as tradições e os valores de todas as regiões. Pensando nisso, a Caixa mantém um diálogo constante com as nossas raízes culturais e busca consolidar sua imagem de grande apoiadora da cultura brasileira.
Diante desse comprometimento em disseminar a cultura em todos os cantos do país, a Caixa instalou unidades da Caixa Cultural em sete capitais: Brasília, Curitiba, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, onde proporciona aos brasileiros, o acesso a uma diversidade de manifestações da arte e da cultura nacionais, e também estimula o intercâmbio cultural e a troca de experiências, patrocinando eventos de artistas de outros países. Tudo isso com uma programação plural e de qualidade, gratuita ou a preços acessíveis.”
A velocidade acelerada do tempo
Tempos pulsantes, ritmo acelerado. São impressionantes os momentos assim, de pura velocidade. Verdadeiros ou não, os fatos atropelam a todos. Estamos num momento destes. E de tédio, diante do teatro, ninguém morre… Verdade: a semana registra a retomada do ritmo habitual de estreias,intenso, muitas cenas numa cena, ainda que a vida curta seja a lei geral. Lei? Pois é.
Não é só estreia, a velocidade que nos visita – lei virou sinônimo de problema. A semana passada foi marcada pela união da classe teatral, com as mais diferentes tendências unidas em assembleia para enfrentar uma crise que se anunciava há bastante tempo: o sério problema da regulamentação profissional.
O fato é curto e direto: a possibilidade de extinção da lei da regulamentação profissional. O estopim, uma incômoda denúncia de concessão fraudulenta de DRT, o ansiado registro na profissão de artista. Não foi a primeira denúncia, não foi o início do problema, muita confusão já aconteceu nesta arena. Algumas pessoas até já foram presas por causa de DRT falsas. O tema é muito espinhoso, delicado mesmo, demanda reflexão coletiva, maturidade de pensamento.
Afinal, aqui, um dilema rascante corta o pano de boca, ao lado e além do crime de falsidade ideológica. É preciso assegurar a qualquer preço as parcas garantias profissionais conquistadas, meios para a sobrevivência, ainda que incerta, num mercado claudicante? O que é o mercado, o que é a profissão de artista? O mercado existe? Os artistas vivem do exercício de sua arte? Na realidade, o mercado é construído na marra por cada um que decide ser ator, o esforço individual, mais do que a lei, garante o direito de cada um.
Ao que tudo indica, o amparo legal, enfim, teria mais efeito para as questões previdenciárias, de doença, aposentadoria, não? A lei por si não parece vigorar no cotidiano dos profissionais, ela não parece garantir a entrada no mercado, nem regular a permanência nele, pois não ela assegura as condições básicas do exercício da profissão, o salário mínimo, os direitos profissionais. Isto por uma razão simples: o mercado é uma abstração, uma hipótese que cada um precisa às suas custas tornar real. Em vários casos, o mercado se confunde com o próprio artista, já que é todo construído por ele.
E, assim, a lei acena com um outro problema, o fechamento do mercado. Esta decorrência é um tabu, uma casa de maribondos que muitos não gostam de discutir. Ao pé da letra, a lei permite que a classe, legalmente definida, impeça o acesso livre à expressão artística, situação desejada e defendida por muitos em nome da formação especializada e da competência adquirida.
Mas o problema, ao redor, é o Brasil – o fechamento acontece num país tão rico em talentos espontâneos, tão pobre em escolas e, o mais grave, onde não há acesso universal, amplo e irrestrito, às escolas. O Brasil nunca ofereceu aos cidadãos a escolaridade plena, em particular a escolaridade profissional.
É impossível dizer que nossos talentos naturais, intuitivos, podem e conseguem frequentar as escolas. Não podem, não há escolas para todos. Uma cruel crítica sempre feita por doutos e poderosos a Dercy Gonçalves, muito revoltante, era exatamente que era lamentável que ela não tivesse estudado. E – pior – que, quando ficou famosa, não tratou de sanar a sua “carência”.
Para a classe teatral, na sua esmagadora maioria sempre progressista em seus anseios e sempre engajada a favor dos direitos sociais amplos e irrestritos, parece duro e contraditório o fechamento total do mercado a partir de um ato legal, a letra da lei. No fechamento, o acesso à profissão acontece quase exclusivamente através das escolas especializadas.
Ou não apenas. Ele pode ser obtido também por indicação do poder econômico, em especial através das grandes redes de televisão. Ou através de comprovação de efetivo exercício da arte, exercício que teria que ser iniciado fora do mercado, no braço… São brechas elitistas, em boa parte, pois supõem sempre algum poder econômico.
Para complicar, é preciso reconhecer que as escolas de arte são realidades bastante novas no país, são inexistentes ou frágeis em muitos lugares. E artistas de perfil espontâneo mais original ou rebelde podem não conseguir nunca ingressar numa escola de formação, de segundo grau ou de ensino superior. Conheço bastante as escolas do Rio e não consigo imaginar como talentos semelhantes a Dercy Gonçalves, Aracy Côrtes, Grande Otelo poderiam chegar aos exames de seleção. Procópio Ferreira foi reprovado na Martins Pena, fez sucesso e foi convidado a voltar e a se diplomar.
Cristaliza-se, neste contexto, uma estrutura de poder densa. Graças à lei, ao lado da escola, para regular a liberação de registro, se consolida o poder do sindicato. Cria-se uma firme barreira institucional ao redor do mercado, portanto. Ou seja – aqueles talentos brasileiros naturais, inatos, espontâneos, fulgurantes, em vários casos quase analfabetos, pobres de maré de si, ficam por princípio impedidos de ingressar na profissão… No máximo, podem ter acesso à praça e ao próprio chapéu.
Mas não é tão fácil ser senhor do próprio chapéu. Ou da praça. Alguns exemplos precisam ser pensados. Para ser artista de rua e ter trânsito institucional pleno – quem sabe, ter financiamento público ou mesmo licença para atuar na rua – pode se chegar sim ainda ao impasse de exigir escolaridade do candidato. Portanto, toda a classe, da rua ao Teatro Bradesco, deveria saber cedo a sua inclinação para a arte e ir para a escola se formar.
Chegamos, então, a uma situação bastante curiosa – o engessamento profissional precoce absoluto. Se a pessoa escolheu uma profissão, deve seguir nela. Um escândalo para o caso do teatro. Afinal, se olharmos a classe teatral brasileira do século XX, chegando aos nossos dias, uma multidão está fora da lei, não poderia se tornar artista.
Figuras como Paulo Autran, advogado, ou Sergio Britto, médico, nas condições atuais teriam dificuldade para seguir o caminho escolhido, em especial aqueles que não foram amadores. Denise Weinberg é bióloga. Zezé Polessa, médica. Ana Veloso, advogada. E vai por aí.Há, porém, mais complicadores. Numa época em que o país precisa discutir seriamente a questão da aposentadoria, tema urgente há décadas sempre evitado por sua imensa antipatia política, o debate de uma lei do artista em que a única vitória concreta inegável é a aposentadoria parece ser uma conversa complexa.
O pior de tudo é que, honestamente, falar de uma classe artística parece ser um extremo esforço de retórica: como no tempo de Leopoldo Froes, existem as poeiras da arte e as estrelas absolutas da profissão. Isto não significa qualidade de arte ou pessoal, é hierarquia social brasileira mesmo. Diante da miséria dos artistas-poeira do seu tempo, Froes começou a campanha para a criação do Retiro dos Artistas. Lá, como hoje, o mercado continua a ser uma ficção, quase uma miragem, um delírio. Não é uma condição coletiva efetiva.
Se o olhar for ácido, talvez seja preciso constatar que pouca coisa mudou – fora os citados efeitos de retórica. Precisa-se da lei do artista, mas exatamente para quê, quais as suas condições ideais e reais? O que se pretende garantir com ela, como celebrar a sua excelência e reconhecer as condições básicas da vida na sociedade brasileira? É possível definir a estrutura profissional evitando o fechamento do acesso à profissão? Vale a pena conferir às escolas o poder absoluto de controlar o acesso à profissão? Os sindicatos servem apenas para fiscalizar – ou conceder – autorização de trabalho?
Importa pensar na lei com os olhos fixos nas condições do mercado hoje. Um dado curioso e alarmante é a eterna juventude da nossa classe teatral. Não, não se trata de ingestão desbragada de botox, ninguém descobriu a fonte da juventude – o teatro libera a alma, mas não rejuvenesce o corpo… O que acontece é que as escolas formam uma pequena multidão de artistas, rotineiramente.
O resultado gritante é que a cada ano uma leva espantosa de jovens ingressa na arte, mas fica pouco tempo. Como se tivéssemos um ritual de sacrifício juvenil semelhante àquele do Minotauro. O êxodo parece ser quase tão elevado quanto o ingresso – poucos ficam, poucos envelhecem, por isto a classe teatral brasileira atual é sempre juvenil. Por isto, o gosto dominante pela vanguarda, o pouco apreço aos clássicos e às grandes montagens – o padrão dominante é juvenil. Para muitos dos que estão mobilizados hoje ao redor da discussão da lei, ela não será o poder regente de suas vidas, pois um largo número vai abandonar o teatro…
E a semana segue. É esta febricidade juvenil que faz a tônica da semana teatral. A semana respira bastante juventude e ferve numa linha de produção intimista, delicada. No seu conjunto, as propostas traduzem projetos pessoais, como manda o figurino do não-mercado brasileiro. Não há nenhum projeto institucional em cena.
Dentre os novos cartazes da semana, vale destacar alguns. De saída, chama a atenção a presença de três musicais. Ou quase musical, no primeiro caso, o delicado Maria, com textos de Antônio Maria adaptados pelo ator Claudio Mendes, direção singela, mas de extrema criatividade, de Inez Viana. O recurso ao talento arrebatador de Antônio Maria permitiu a construção de uma ode de homenagem ao Rio, ao melhor do Rio, proposta bem situada no SESC Copacabana. É emocionante e lindo.
O caráter intimista também aparece em Nara – A menina disse coisas, texto de Hugo Suckman e Marcos França, direção de Priscila Vidka. Trata-se de um musical de bolso, biográfico, dedicado a Nara Leão, com os atores Aline Carrocino e Marcos França, no Teatro Ipanema.
Já a verve carioca para a demolição crítica de tudo e de todos assina presença no divertido A vida não é um musical – o musical, de Leandro Muniz, direção do autor e de João Fonseca. Um elenco de dez atores, acompanhado por cinco músicos, faz a festa no Teatro de Arena do SESC, busca sacudir as formas de pensar correntes, patentes nos desenhos da Disney, em paralelo com fatos políticos atuais.
Afinal, a presença juvenil aflora também numa peça mais dramática e experimental, o docudrama Solitárias, de Clarisse Zavros, cartaz do SESC Tijuca. O eixo do texto é constituído pelos relatos de mulheres presas e torturadas na ditadura militar.
Sem dúvida a panorâmica rápida revela um pouco da velocidade vivida estes dias – ela permite dimensionar uma cena que se agita intensamente ao redor de pesquisas, inquietações e buscas, com um vigor jovem extremo. Uma cena que precisa buscar por si os meios para existir e para sobreviver. Um estilo Brasil inquietante, posto que imediato, instável, imprevisível, como se vivêssemos na guerra. No mundo lá fora, a realidade não faz por menos, a guerra se instalou de verdade. A sensação é a de que estamos passeando sobre areia movediça, um chão que treme, sempre ameaçador. Que o nosso equilíbrio seja o nosso maior conselheiro, para não afundarmos na terra fofa traiçoeira.
Maria
Local: Mezanino do Sesc Copacabana – Rua Domingos Ferreira, 160, Copacabana, Rio de Janeiro
Informações/tel.: 2547-0156
Temporada: 12 de abril a 6 de maio
Dias: Quinta a sábado às 21h e domingo às 20h
Classificação indicativa: 12 anos
Duração: 70 minutos
Lotação: 80 pessoas
Ingressos: R$ 7,50 (Associados do SESC) e R$ 30,00 (casos previstos em lei pagam meia)
Nara – A menina disse coisas
Teatro Ipanema
Estreia: 14 de abril – Classificação: Livre
Rua Prudente de Moraes, 824. Ipanema – 2267-3750
Horários: 20h30 Duração: 1h 10
Lotação: 192 lugares – Preço: R$ 50,00
A vida não é um musical – O musical
Duração: 1h 45m
Classificação indicativa: 16 anos
Local: Teatro de Arena/ Sesc Copacabana
Temporada: de 12/04/2018 a 06/05/2018
Horários: quintas, sextas e sábados, às 20h; domingos, às 19h
Lotação: 242 lugares
Ingressos: R$ 30,00 (inteira) | R$ 15,00 (meia-entrada) | R$ 7,50 (associado Sesc)
Solitárias
Sesc Tijuca – Teatro II
Temporada: De 13 de abril a 06 de maio – 12 sessões – Classificação: 16 anos
Local: Teatro Sesc Tijuca- Teatro II (Rua Barão de Mesquita, 539 – Tijuca)
Horários: De sexta a domingo – 19h – Duração: 50 minutos
Capacidade: 50 Lugares – Gênero: Drama
Preço: R$ 7,50 (COMERCÁRIO) R$ 15,00 (Meia) R$ 30,00 (INTEIRA)
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FESTIVAL DE CURITIBA: O teatro aqui e agora
Se o teatro não leva a sua alma ao paraíso, esqueça o teatro, pois ele se tornou um bastardo na sua vida. Talvez a frase seja a melhor definição para sintetizar o pensamento do diretor e ator Omar Porras, um homem de teatro no sentido maior da expressão.
Colombiano, radicado na Suíça, ator e diretor, líder do Teatro Malandro, com um repertório de fazer qualquer amante de teatro perder o fôlego, ele veio ao Festival de Curitiba. A rigor ele é um teatrista – um artista de teatro. E as fotos e vídeos do seu trabalho, disponíveis na internet, comprovam a grandeza de sua obra, inédita no Brasil.
Sim, ele veio ao festival por acaso, fora da grade e do planejamento oficial, graças a um destes descaminhos que fazem com que os festivais se tornem lugares essenciais de criação e de pensamento. Amigo em Paris de Deolinda Vilhena, uma mulher de teatro brasileira incansável batalhadora a favor da arte, ele aceitou o convite para vir até Curitiba.
O motivo foi bem simples, puro amor ao teatro: conhecer o trabalho de Gabriel Villela, outro nome forte do panteão afetivo da moça. Para Deolinda, era fundamental conseguir que os dois barrocos teatrais latino-americanos se conhecessem. A inclusão de Gabriel Villela na grade oficial com dois espetáculos – Hoje é Dia de Rock, de José Vicente, e Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues, gerou a oportunidade.
Neste jogo do destino, fui contemplada com a sorte de conhecer o furacão criativo que se chama Omar Porras, uma personalidade inquieta, curiosa, apaixonada, comprometida até a última fibra do seu ser com a latinoamericanidad e com a humanidade. Ouvi-lo traz a certeza de que o palco é uma espécie de altar, um lugar-memorial que deve ser cuidado e cultivado, pois a interlocução profunda necessária para manter a vida em estado pleno passa por lá.
Conversamos muito. Não fiz uma entrevista no sentido técnico corrente, jornalística, mas mantivemos uma conversa teatral que, espero, deve prosseguir. O centro de nossas falas é muito próximo: a necessidade de se pensar – quem sabe algum dia entender – a dinâmica profunda que cimenta a nuestra América.
Colonizados, ibéricos, donos inconscientes de imenso potencial criativo e vasta fortuna natural, somos estranhos uns aos outros, no entanto, quase desconhecidos. Vivemos em estado permanente de solidão sensível afetiva. Continuamos a sonhar com alguém que venha apontar caminhos e soluções, dissolver os impasses, instaurar a luz, nos levar à realização de nossos sonhos. Inebriados, não nos movemos, andamos tontos em círculos e, quando confrontados na nossa inércia, achamos sempre um culpado logo ali, o algoz que não nos permite assumir o que somos. Ou podemos ser.
Esta solidão carente não nos define, ela é o nosso vazio, o nosso abismo. Qual o seu significado histórico? Por que somos reféns da marginalidade? Deveríamos reconhecer um princípio fundador, uma identidade, uma espinha dorsal comum, a nos estruturar? Existe um plano inefável capaz de definir a latinoamérica? O tema é urgente e é muito forte – por causa da crise, da necessidade de novos conceitos e instrumentos para pensar o impasse do presente, através do novo.
Em larga medida, Omar Porras rompeu a ciranda, se foi e realizou o seu potencial criativo. Como todos os que partem, ele tem a latinoamericanidad dentro dele e sente a angústia de não resolver, não lidar com este mistério humano continental. Brasil e Colômbia possuem muito em comum, ainda que nós, brasileiros, vivamos virados para o Atlântico.
Mas, se a Colômbia de Omar Porras, retalhada e pressionada pelo tema da contravenção e pela ânsia de viver a sociedade tecnológico-virtual, é um pouco como o Brasil, ela é, no entanto, a Colômbia de Bolívar, um idealista sonhador guerreiro que desconhecemos. Como dialogar e aproximar territórios com vivências históricas tão díspares?
No Brasil, além de herdarmos o Sebastianismo português, somos fruto de um pai da Pátria que era o herdeiro da Coroa Portuguesa, que seria (e foi) rei de Portugal. A nossa independência talvez tenha sido feita por uma mulher austríaca, não reconhecida enquanto tal, D. Leopoldina. O bolivarismo é estranho ao nosso processo histórico.
Dá para notar que o papo foi longo, percorreu inúmeros caminhos, algumas inusitadas trilhas históricas. Qual o sentido de uma conversa tão longa, tão ampla, para o debate teatral do presente, para se pensar o que fazer no nosso país e, talvez, para buscar alguma sintonia continental?
Em primeiro lugar, vale considerar que pensar teatro é um enorme prazer, o teatro se estrutura a partir de um compromisso com o coletivo no qual a sensação se expande, para servir às ideias. O teatro não é uma feira de amostras nem uma vitrine de curiosidades descartáveis.
No entanto, ainda assim parece justo supor que o teatro, hoje, vive ao redor de duas vertentes diferentes de criação, necessárias, mas nem sempre essenciais. Uma vertente imediata, especular, do aqui e do agora, preocupada com a busca de simples reflexos da situação ao redor. Ela pode até sugerir radicalidades e ousadias, mas não passa da superfície do que está aí, se encerra no flerte com o existente.
Inebriada com a chance de enfrentar o real, esta vertente até mostra cenas cruas, mas todo o esforço se esvai no furor de fazer ver o que há para ver. Talvez nem fosse imprescindível o teatro para chegar a isto e é curioso como estas cenas muitas vezes são naturais, como se fossem conversas corriqueiras.
São obras que contabilizam o que já se sabe, o que já se sente, e mantém os seres atrelados a esta roda de obviedades, como se formassem um círculo de penitentes. Podem aparecer atores nus, perseguidos, cenas dos impasses cotidianos dilacerantes, mas o que se propõe é apenas fotografia, o sentido último de tudo permanece velado, distante. Vale o choque pelo choque.
A outra vertente, que se poderia chamar de metafísica, posto que especulativa, lida com o presente desafiador, busca encontrar ferramentas profundas para situar o dilema humano do momento e do tempo, dilema que é sempre histórico.Não abre mão da arte, da linguagem da arte. Não se trata de fazer registros ou reportagens da vida imediata ao redor, fotografias, mas antes radiografias, sintonia com o fluxo mais subterrâneo que governa – ou desgoverna – a superfície dos fatos. São mapas poéticos, convites ao mergulho no imaginário.
Apesar da aparência por vezes rebelde ou irada do teatro especular, ele é um teatro vazio, alienante como o velho teatro de diversão, uma empreitada mimética de simples atualização com os fatos, tão contido em si, autorreferente, como o noticiário da TV ou a final do campeonato de futebol. O choque, fruto de uma realidade presente chocante, e o conformismo, a confraternização de iniciados, caminham lado a lado. Apenas pulsações epidérmicas estão agenciadas e a plateia se vai feliz com a sensação gloriosa de que é assim mesmo, eu sei.
Em contraste, o teatro especulativo move o espectador do conforto da contemplação da rotina brutal ao redor. Obriga-o a se perguntar sobre as forças que movem as sensações que recebe. Leva-o a sair da vida para a poesia, para ser confrontado com o ímpeto da criação, transpor os limites do seu tempo, do aqui-agora, num percurso que não poderia ser realizado fora do desafio da arte. Ainda que encerrado na sua dimensão de indivíduo, a sua herança é ou o desconforto ou o desafio para a invenção. Mesmo quando lida com o realismo ou o documentário, o teatro especulativo não abre mão de ser teatro, teatralidade.
O teatro de Omar Porras é sempre especulativo, é sempre um ato de arte, envolve a criação de obras que exigem pesquisa, estudo, um longo processo de maturação. Portanto, ele se interessa em falar ao cidadão da polis e ao cidadão do universo, e a sua fala implica num compromisso mais denso do que a escolha de um alvo qualquer ao redor, para retratar ou reproduzir ou retalhar.
Neste sentido, um dos grandes fatos do Festival de Curitiba de 2018 foi a visita do encenador, ainda que ela tenha sido um resultado imprevisto da presença, na grade oficial, dos espetáculos de Gabriel Villela. O diálogo com Gabriel Villela e seus atores, a chance de conhecer o jovem elenco do Teatro de Comédia do Paraná, integrante da montagem de Hoje é Dia de Rock, o início de um diálogo criativo com a excelente companhia Ave Lola foram resultados imediatos da visita inesperada. Ao lado e ao redor, ele revelou um desejo vibrante de realizar um trabalho no Brasil, pesquisar a sensibilidade que nos aproxima. Ou poderia nos aproximar.
Não acompanhei todo o Festival deste ano, estive na cidade um par de dias como convidada do evento, mas a viagem valeu, foi preciosa para o meu interesse em pensar teatro brasileiro. No plano político, a edição 2018 foi importante por manter o protagonismo de Curitiba – e do Paraná – na cena nacional, pois o Festival continua a ser o evento mais importante de teatro brasileiro no país. E é sempre uma emoção indescritível ver como a cidade fervilha teatro.
No que se refere à grade oficial, ela se manteve fiel à tradição, não sofreu qualquer mudança conceitual de fundo, persistiu sendo uma vitrine da produção teatral brasileira do momento, com algumas inclusões de música e dança. Apresentou, contudo, cores intensas desta inclinação recente, bastante objetiva: a presença de muitas obras de teatro especular. Foram muitas peças preocupadas em discutir o aqui-agora mais imediato, oferta de oportunidades para vivenciar os fatos de forma sensível, performáticas, por vezes tão performáticas que solicitam a participação da plateia. Em estado bruto, naturalizados, desfilaram os dramas e acontecimentos que percorrem a vida cotidiana do país.
Sim, a tendência tem se tornado forte nos palcos, parece natural que compareça ao Festival, talvez não em número tão elevado. Trata-se de um teatro de confraternização de iniciados, encontro de pessoas que sabem das coisas, flerte de esclarecidos. É um teatro de certezas. Aos poucos esta linha está se tornando a base do mercado, com salas pequenas, público seleto. Tudo indica que este é o sucessor do teatro comercial do passado, e o risco é ver o teatro poético definhar, desaparecer enquanto hábito social. Seria um off-teatro, criação nossa.
Boa parte das produções em cartaz no Rio de Janeiro sintoniza este caminho. Talvez a escolha permita atrair um público mais jovem, mas com certeza afasta as plateias convencionais, o chamado público de teatro, amante da poesia e da oportunidade de transmudação sensível, naturalmente oferecida pelo teatro há séculos.
Que venha o novo, então – mas é uma pena que o teatro não esteja preocupado em lidar profundamente com a crise que varre a alma de todos, aqui e agora. Há pouco, o Papa, argentino, afirmou que não existe o inferno. E o que mais? Somos latino-americanos, somos ocidentais: o paraíso, para as nossas almas, persiste sendo o pensamento, como queria Brecht. Talvez valha a pena retomar este velho teatro do paraíso, capaz de não ser escravo da vida rotineira, mas antes, ser o senhor de uma sensação transgressora, uma sensação ousada o bastante para tentar governar o pensamento.
FESTIVAL DE TEATRO DE CURITIBA
27 de março a 8 de abril de 2018
festivaldecuritiba.com.br
Mostra Oficial
Fringe
Atividades Paralelas