A arte do ator: teatro não se aprende na escola
Muitas vezes já me vi na situação embaraçosa de tentar explicar uma das minhas profissões mais estranhas – são várias – para pessoas descrentes do potencial humano para arranjar coisas bizarras para fazer. É quando comento que dou aula em escola de teatro e o interlocutor, cidadão do mundo comum, exclama – Mas que diferente! O que você faz lá? E para quê serve uma escola de teatro? Você forma atores?…
Trabalho em escolas de teatro desde 1982 e não, não sei se eu formo atores – ou mesmo se alguma escola de teatro consegue formar atores. Quanto tempo leva um ator para se formar? Reparem bem na estrutura da pergunta, pois acredito que é o ator quem se forma, quem cuida de si, quem batalha dia a dia para ser ator. A rigor, de verdade, ninguém forma um ator, o ator é que se forma. E a grande dúvida reside aí – um curso de 2, 3 ou 4 anos não leva um ator a se formar. O ofício é denso.
A história está povoada por multidões de atores – a imensa maioria – que nunca estiveram numa escola de teatro. Como eles se formaram, se as escolas de teatro são tão recentes? Na vida. Muitos não tiveram escolha: nasceram em famílias de teatro e, como as profissões, até há bem pouco tempo, passavam obrigatoriamente de pai para filho, foram forçados a seguir no tablado. Neste mundo histórico, a escola era o ato mesmo de fazer – e eu penso que isto, na arte, significa muito. O artista nasce na arte. Nenhuma teoria pode ensinar um ator a fazer uma cena, seja de puro corpo, de riso ou de dor.
Na encantadora Escola de Teatro Martins Pena, uma usina de arte fabulosa, conheci um senhor, o Seu Arthur, patriarca da escola, conselheiro da comunidade, um destes sábios cotidianos, um dos meus ídolos secretos. Ele namorava a secretaria da escola, Claudinete, fora comerciante ali na rua e se acostumou a apadrinhar a casa. Um dia, numa conversa distraída na secretaria, ele sentenciou: aqui nesta escola não são formados atores, são formadas pessoas melhores. Depois de formados, os alunos decidem se querem seguir a arte, mas, se não seguirem, terão uma vida mais feliz. Serão bancários melhores, motoristas melhores, comerciantes melhores.
Adotei este pensamento singelo, direto: o teatro torna as pessoas mais felizes, melhores, ninguém passa impune por uma experiência teatral. Mas, formar um ator, um artista de teatro, na plena expressão do termo, eis uma tarefa difícil. Ensinar teatro é ensinar tudo: é ensinar a viver com arte no próprio corpo, ensinar a irradiar e a exalar arte. Gestos, palavras, sentimentos, pensamentos – tudo, enfim, precisa ser sintonizado com uma dimensão poética explícita.
A questão é muito profunda. E é muito séria. A pessoa pode passar a vida fingindo ser ator, pode simular um domínio da expressão que, de fato, não tem. E ainda assim pode ter sucesso, encantar um público, conquistar uma plateia para chamar de sua. São os canastrões, os malandros da arte, que fingem com sinceridade ser o que efetivamente não são – e, vamos combinar, que mal há nesta farsa em que farsante e farseados se sentem felizes, compartilhando um lugar sentimental reconfortante, de uma mentira rasteira?
Existe, contudo, o ator pleno, íntegro, verdadeiro, vertiginoso. A pessoa doa a alma ao que faz e irradia uma energia de vida pura, cristalina. Usa-se com frequência a palavra sacerdócio para falar destes celebrantes, que conseguem dominar um código de comunicação, uma linguagem, em que a vida está ausente e a arte se faz dominante. Como é isto? Como se pode ensinar isto?
Sim, eu não sei se formo atores por que trabalho sempre com teoria, sempre dei aulas de teoria do teatro, estética, história do teatro, crítica teatral e metodologia da pesquisa. Vale insistir que eu nunca quis ser atriz. Sou historiadora de formação, escolhi estudar História muito cedo e sou encantada por seu estudo. Decidi me especializar em História do Teatro quando o campo era um terreno baldio e, ciente da minha ignorância a respeito do teatro, fui estudar a arte. Sim, passei pelo palco nas escolas de teatro, quase conclui o curso de direção, adoro dirigir, mas a minha praia é mesmo a teoria.
Vi coisas inacreditáveis em aulas de interpretação ao longo da minha vida nas escolas. Ausência de método, empirismo, impressionismo, improvisação canhestra, superficialidade, arrogância, ignorância e má fé não faltaram. E sempre bateu forte a percepção de que vivemos num meio teatral muito instável, muito irregular, muito frágil. Os saberes são muito difusos. Qualquer aventureiro que chega, como se fosse um colonizador europeu com seus espelhinhos, faz a praça, vira deus. Já vi professor de interpretação empurrar o aluno do palco para que o aluno caísse lá de cima e… perdesse o medo da cena…!
Penso que é fundamental a organização de uma rotina de congressos de ensino de teatro, para que as diferentes escolas se encontrem e exponham seus métodos e processos. Para debatermos o que é formar um ator. Hoje, no Brasil, vivemos uma realidade muito engraçada: temos mais escolas de teatro do que teatro. Formamos por todo o país uma quantidade enorme de atores e de diretores de teatro – e até de críticos – sem que estes jovens tenham qualquer perspectiva de mercado. As escolas trabalham por si e para si, visam um mercado inexistente. Formam atores?
Muitos professores destas tantas escolas de teatro raramente vão ao teatro e vários ignoram os grandes trabalhos teatrais do momento. Ao mesmo tempo, nas escolas regulares, os currículos de formação dos professores de Português ignoram os autores dramáticos, os dramaturgos. E todo este povo, salvo exceções muito localizadas, segue a vida sem ter tido teatro na formação escolar. Neste quadro, o aluno pode chegar à escola de teatro, universitária, sem nunca ter feito teatro e tampouco ter visto uma peça.
A profundidade do debate a respeito do teatro no Brasil hoje, portanto, é abissal. E a pergunta de fundo é rascante – que tipo de país se pretende construir no qual a própria instituição do teatro tende a ser uma farsa patética? Vale, então, destacar as iniciativas fortes, os pontos de tensão e de inquietude que podem sacudir a pasmaceira. Nesta semana, uma iniciativa acadêmica louvável estará à disposição de todos os que amam teatro e estão verdadeiramente interessados em debater a formação dos atores.
Trata-se de uma montagem escolar realizada na Escola de Teatro da UNIRIO. O projeto mobiliza a capacidade de produção da escola e identifica com muita clareza o contorno institucional e as condições de realização da escola. A estreia será na quinta-feira, dia 28, e as apresentações seguirão até o domingo. O texto escolhido é Em Alto Mar, de Slawomir Mrozek (1930-2013), obra lançada em 1961 e de impactante atualidade.
A sinopse diz tudo – três náufragos perdidos no meio do oceano, numa jangada improvisada, sem comida, decidem que precisam fazer uma eleição vital, para escolher alguém “daquela sociedade” para ser devorado e, assim, garantir a sobrevivência dos outros. A direção é do professor encenador Ewald Hackler. E a pergunta impertinente surge clara: qual a novidade que transforma uma simples montagem escolar em evento importante da temporada, sonante para uma reflexão a respeito da estrutura do teatro brasileiro hoje?
O primeiro ponto a destacar é a densidade artística do trabalho de Ewald Hackler. Professor, ele é, antes de tudo, um diretor, um grande especialista na arte da encenação. Nascido na Alemanha, na década de 1960 ele trabalhou com atores do Berliner Ensemble, o teatro estruturado por Bertolt Brecht (1898-1956).
Estes atores fugiram da Alemanha Oriental e se radicaram na cidade de Colônia, onde Hackler vivia. Leonard Steckel (1901-1971), o ator criador do papel do Sr. Puntilla, foi um destes atores. Hackler desempenhou ainda a função de cenógrafo-assistente de Caspar Neher (1897-1962), o grande cenógrafo de Brecht, e se projetou como figurinista e cenógrafo.
Radicado no Brasil há cinquenta anos, professor da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia, Ewald Hackler veio ao Rio convidado pelo Instituto Martim Gonçalves e pelo PPGAC da Escola de Teatro da UNIRIO. O projeto tem uma densidade profissional admirável. É a terceira vez que o diretor dirige o texto e, neste projeto, o diretor se concentrou no método da montagem, na leitura de mesa e na compreensão da estrutura da peça.Quer dizer, extensa aplicação de um método, calcado na formação do ator para a encenação.
Assim, a discussão central do trabalho é a formação do ator segundo as regras mais nobres da arte no nosso tempo. Em Alto Mar pretende ser uma montagem didática, uma encenação que nasce de um seminário especializado, realizado na disciplina Prática de Montagem Teatral, ministrada pela Professora Jussilene Santana, produtora executiva do espetáculo e diretora do Instituto Martim Gonçalves. O processo foi acompanhado por uma equipe de filmagem, para o registro do trabalho e para a realização de um documentário. Ou seja – o método de direção de Hackler ficará documentado.
Para o tema da formação do ator, há um mérito absoluto na montagem: o texto escolhido, uma peça do gênero didático, apresenta uma estrutura formal composta por cenas autônomas, independentes entre si, mas articuladas em profundidade. A intencionalidade e a intensidade do trabalho do ator precisam ser focalizadas com rigor para que esta estrutura apareça com impacto, entre a sensação e a razão. Da fala ao menor gesto, é preciso contar com uma abordagem técnica muito precisa, sem espontaneísmo, sem apoio em truques de colete ou em vícios expressivos.
Portanto, a encenação recorre ao efeito épico para a apresentação das cenas. Vale acrescentar algo a esta concepção do épico, na qual o intérprete tem protagonismo decisivo em todo o processo. A concepção geral da proposta nasce do diretor, mas é profundamente elaborada junto à equipe, segundo aquilo que se poderia chamar de contracena inteligente. A solução poderá ser vista com muita clareza no ensaio aberto do dia 27 próximo, quarta-feira, no qual o diretor trabalhará os procedimentos com o pano aberto, expondo para a plateia o mecanismo de montagem – o ensaio aberto será, portanto, uma aula-ensaio.
A partir da dinâmica ácida do texto, uma combinação requintada de representação, farsa e mordacidade, crítica aguda ao Estado e aos poderes de aniquilamento do sujeito, é possível encontrar um desafio forte para o trabalho do ator, em especial do jovem ator, inquieto, louco para sacudir as estruturas do mundo. Para que a opressão se torne palpável, alvo nítido para a plateia, vale mostrar e desmontar, digamos – e a potência para fazê-lo dirá da extensão do intérprete.
Como se pode constatar, é uma tarefa árdua explicar o trabalho que deve acontecer dentro de uma escola de teatro. Pois as escolas se tornaram necessárias em razão desta arte atual, de alta voltagem crítica. Trabalhar com o ator para que ele se torne capaz de materializar esta força a um só tempo criadora e questionadora, lúdica e racional, é a tarefa que se atribui, hoje, às escolas de atores. Sim, em lugar de formar, elas indicam caminhos. Não se trata mais de mera repetição de um arsenal de truques e padrões, mas de invenção da sensibilidade e da percepção. Como dar conta do encargo? Não há resposta teórica. Mas, sim, há uma chance para tentar explicar tudo ao vivo: é ver a montagem e dimensionar o quê, afinal, se pode conseguir fazer numa escola tão tradicional como a UNIRIO.
EM ALTO MAR
Apresentações:
27 de junho – quarta-feira – 19h (ensaio aberto e didático)
28 de junho – quinta-feira – 18h (estreia para público e convidados)
29 de junho – sexta-feira – 19h
30 de junho – sábado – 19h
01 de junho – domingo – 19h
Local: UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Palcão da UNIRIO
Endereço: Av. Pasteur, 436 – Urca, Rio de Janeiro – RJ
Duração: 60 minutos
Gênero: comédia
Lotação: 80 lugares
Classificação: 14 anos
Entrada gratuita – distribuição de senhas 30 minutos antes da sessão.
Dramaturgia: Slawomir Mrozek
Tradução: Roberto Lage
Direção: Ewald Hackler
Assistente de Direção: Jussilene Santana
Preparadora de voz: Jussilene Santana
Elenco: Guedes, Osvaldo Baraúna, Vanessa Rocha, Venâncio Cruz e Virgínia Bravo
Assistentes de produção: Maria Clara Migliora, Raphael D´Arc, Stace Mayka e Úlli de Oliveira
Figurino: Ewald Hackler e elenco.
Caracterização: Mona Magalhães (monitorada pelo aluno Everton Cherpinski)
Assistência de cenografia: Adler Franco
Iluminação: Raphael Cassou
Design e Ilustrações: Yuri Barreto
Assessoria de Imprensa: Duetto Comunicação
Produção Executiva: Jussilene Santana
Produção: Escola de Teatro da UNIRIO e PPGAC
Apoio: Instituto Martim Gonçalves
Site https://institutomartimgoncalves.com.br
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Teatro e futebol: formas do saber humano
Já conheci várias pessoas com uma característica espantosa: o ódio ao teatro. Algumas tinham o coração entregue ao futebol, arte mais verdadeira e intensa, na sua opinião. No conjunto, os motivos do ódio são vários. Impossível elencar todos – vão desde a convicção de que o teatro é velho, superado, passam pela certeza de que a cena explora apenas a vaidade e o exibicionismo rasteiros e chegam até o mais puro desencanto com a arte. Para este ponto de vista desencantado, o teatro estaria devotado mais à materialidade fútil do que à intensidade ideal da poesia. Algo assim como se um craque se preocupasse mais com os volteios do seu penteado do que com a qualidade dos seus chutes, digamos.
A lista das queixas é longa. Já sai de uma peça de vanguarda obscura com duas senhoras devotadas ao teatro, desconhecidas, indignadas com a cena apresentada. Exaltadas, elas declararam com veemência que iriam abandonar o teatro em favor do cinema, pois, amantes da velha arte, enfrentaram naquela semana uma sequência de peças experimentais no seu entender inúteis, equivocadas mesmo, como estudo da humanidade. Elas estavam furiosas e chegaram até a zoar o elevador canhestro do velho prédio: já que o foco da casa era a invenção, qual o motivo de ter um elevador modesto, trôpego pelos andares?, proclamaram.
Ouvi em silêncio. Mas entendi que existe uma falta, um abismo, entre o palco e a sociedade brasileira. Depois do jogo da seleção, ao andar a pé no meu bairro, na universidade em que trabalho e por diferentes recantos da cidade, o que eu ouvi em todas as bocas era a discussão, às vezes bem exaltada, a respeito dos rumos do futebol brasileiro – vale topete, pose, maquiagem ou o importante é o pé, o cérebro de par com a bola…? Foi jogo ruim ou roubo? O futebol fez vários gols estes dias e disparou os corações. O teatro com frequência não consegue nada parecido, mesmo com aqueles que o amam com intensidade. A norma é o tédio e não há nem mesmo a vontade de xingar o juiz.
Podem ser ciclos da sociedade humana – no século XIX, a vida não era assim. Não existia o futebol, nem o cinema, ou a TV. O teatro era o rei do pedaço. Sim, tinha a concorrência da ópera e da música, mas, desde a função de ser a escola de costumes, até o nobre papel de apontar a definição requintada do ser, tudo era próprio do gramado do teatro. Neste século XXI, quem sabe o futebol esteja com os seus dias contados, prestes a morrer, a favor de uma nova arte, a arte de viver virtual, um casamento da internet com a performance? Não, não será uma forma de teatro, será outra coisa, ainda sem nome. E o teatro?
Sobreviveremos – vale a resposta curta, histórica, emprestada por Tchekhov. Impossível saber para onde andará o teatro: sempre usamos um edifício velho no nosso tempo novo, pois, quando as paredes teatrais se erguem, registram, a rigor, o teatro que passou. Sempre usamos fiapos do que fomos e fizemos e da arte cristalizada no ar, sempre recorremos ao público fiel – portanto, passados, todos passados. Ansiamos o futuro, mas vivemos ancorados no passado. Como dimensionar o futuro? Impossível saber. Porém, a necessidade de aprender com a presença humana, de ouvir o outro e se encantar, sempre existiu e sempre existirá – sobreviveremos.
Vale buscar, olhar e avaliar a cena que consegue pulsar no meio da Copa do Mundo. Vale tentar entender o que faz com que tantos percam o seu tempo, sem lamentar, com os olhos pregados nos pés dos atletas e rejeitem, sem piscar, a dedicada energia de tantos artistas da cena. Há um saber humano aí? Há sentimento bruto, de um lado, refinamento de emoção, do outro? Qual o caminho?
De longe, chegam aqui atestados da grandeza do teatro brasileiro. De Portugal, do FITEI, um festival de teatro que sobrevive há 41 anos, chegam notícias do sucesso das apresentações no Porto do nosso celebrado Caranguejo Overdrive, da Aquela Cia. Além do tema, o descompasso profundo entre poder e sociedade que dilacera o país desde sempre, indicador da não superação aqui da condição colonial, alcançou impacto lá a forma da linguagem. Entre o documentário e o drama, alicerçado a um só tempo na narração, na representação, na performance e na apresentação, o trabalho despontou como eloquente registro da expansão da sensibilidade individual no nosso tempo. A forma da cena não fala mais apenas de sensibilidades conduzidas, integradas, como quer a linguagem teatral convencional, o velho drama, mas também de sensibilidades que pleiteiam a maestria da própria expressão.
O FITEI – Festival de Teatro de Expressão Ibérica – oferece uma gama variada de atividades – além da apresentação de peças nacionais e internacionais, conta com oficinas, concertos, debates, encontros, festas. Esta edição acontecerá de 12 a 22 de junho, contemplando não só o Porto, mas Vila de Gaia, Matosinhos, Felgueiras e Viana do Castelo e a presença brasileira está bastante forte.
Não se pense, contudo, na existência de facilidades para a arte em Portugal. Na semana passada, outro festival de projeção, de Almada, promoveu o lançamento de sua 35A., a ser realizada de 4 a 18 de Julho. No lançamento, além da definição da programação, foi reafirmado o compromisso público de manutenção do festival, apesar dos cortes de verbas anunciados. A expectativa é a de que a redução do financiamento público, divulgada em março, seja revista em prol da sobrevivência do encontro cultural importante.
Enquanto isto, lá como cá e por várias partes do mundo o dinheiro jorra nos gramados e a favor das chuteiras. Ninguém fala em corte de verbas para o futebol. Ele figura como necessidade primeira. Apesar dos escândalos de corrupção, do roubo e do vedetismo consumista exaltado dos craques – com frequência mergulhando no ridículo – nada leva a crer na possibilidade de falta de capital para o futebol nos próximos tempos. E, se tal acontece, uma coisa é certa: multidões apaixonadas garantem a sobrevivência da atlética ocupação.
O diagnóstico do caso, visto do lado do teatro, pode ser preciso. Talvez seja o caso ululante de uma unanimidade burra, como diria Nelson Rodrigues, ele próprio louco por futebol, ainda que não pudesse ver claramente qualquer jogo, por problemas sérios de visão. Mas ia aos estádios e simulava bem um domínio perfeito das artes da bola no campo, para atiçar os ânimos, como deseja o jogo. Ou o teatro. Teatro, futebol, Nelson Rodrigues: quem sabe se misturar tudo permita que se chegue a algum novo entendimento da espécie humana?
Pois, nesta semana de copa, paixões acirradas, torcidas histéricas e descabelamentos atléticos, uma sensacional montagem de Nelson Rodrigues estará à disposição do distinto público. E de graça. O Espaço Furnas Cultural, em Botafogo, vai apresentar a irresistível Perdoa-me Por Me Traíres, de Nelson Rodrigues, de 16 a 24 de junho, às 19h.
A peça é um clássico do autor e exala aquele sentimentalismo transgressivo exaltado do grande torcedor do Fluminense. A direção de Daniel Herz alcançou um efeito potencializador da dinâmica do texto, graças a uma cena límpida, geométrica, marcada por desempenhos intensos, realçados pela cenografia cirúrgica de Fernando Mello da Costa e pela luz diabólica de Aurélio di Simoni.
A oportunidade é de ouro, como a falecida taça Jules Rimet – ela permite pensar algo a respeito de um encontro improvável, mas desejável, entre teatro e futebol. Ao escavar o subterrâneo das almas, o autor fala da estrutura de sombra, paixão e dilaceramento que ergue o homem, talvez os mesmos engenhos que o futebol aciona, numa outra voltagem, quando instaura no estádio o urro coletivo. Quem sabe se este tipo de programa desperte a necessidade de teatro que sobrevive em todas as almas, ajude a diluir o ódio equivocado ao teatro, o ódio estranho que grassa por aí e impede a arte de revelar democraticamente as belezas que pode oferecer, em benefício da iluminação da vida?
Perdoa-me por me traíres
Texto: Nelson Rodrigues
Direção: Daniel Herz
Elenco: Bebel Ambrosio, Bob Neri, Clarissa Kahane, Ernani Moraes, Gabriela Rosas, João Marcelo Pallottino, Rose Lima, Tatiana Infante e Wendell Bendelack
Espaço Furnas Cultural
R. Real Grandeza, 219 – Botafogo, Rio de Janeiro
Temporada: 16 e 17, 23 e 24 junho
Entrada franca
Horário: 19h
Classificação: 14 anos
Duração: 80 minutos
Tagged: Aquela Cia, Caranguejo Overdrive, Copa do Mundo, Festival de Almada, FITEI, Futebol, Nelson Rodrigues, Perdoa-me Por Me Traíres, Teatro
A ordem é: vamos namorar São Paulo
São Paulo é outro mundo, é um lugar muito longe. Duvida? Pois reconsidere sua visão. Nem sempre a distância se faz por quilômetros ou por tempo gasto para chegar. Às vezes, o lugar é logo ali, mas é como se lá o mundo estivesse virado de cabeça para baixo, fosse outro planeta. Um pouco como, no Rio, a relação Zona Norte- Zona Sul. Um tempinho de viagem e zás – entramos numa relação civilização-mundo de outra ordem, quase irreconhecível, uma espécie de espiral etérea de deslumbramento com a diferença abissal do outro.
O.K., para muita gente boa São Paulo não é longe, é logo ali. E parte desta gente acha também que os paulistas ainda estão apegados à equação Brasil-século XIX. Mas eu, que embatuco sempre com avião, eu discordo, penso que qualquer ponte-aérea é arremedo do caminho para Tóquio – e olha que eu desconfio que jamais irei a Tóquio, ainda que eu ame o Japão. É muito longe! Pois São Paulo, hoje, é uma espécie de tóquiodoriodejaneiro, um lugar no qual a vida anda de cabeça para baixo. É muito longe. O século XIX, por lá, se foi – e, sorry, gente bronzeada distraída, despencou decidido por aqui.
O leitor há de implicar: mas que equação Brasil-século XIX é esta? Explico. O século XIX tem seus mistérios e seu poder é monumental. Acredito que foi o único período da História – e vejam, foi por um pequeno lapso de tempo – no qual o Brasil andou em sintonia com o tempo do mundo. Antes, na colônia, estivemos no esgarçamento humano total, infinitas temporalidades dispersas pelo vasto território. Inaugurado o novo século, por sugestão de D. João, empurrão de Napoleão e obra da inefável e pouco lembrada D. Leopoldina, ingressamos no século com torque de motor a vapor (mas sem os motores, pois cá não os tínhamos…).
Mas o que digo? Mentira! Este Brasil do século XIX que era puro e intenso século XIX, sintonia perfeita com o melhor da época, era, na verdade, o Rio de Janeiro, ainda nada maravilhoso, embora resplandecente à beira mar plantado… O resto do país, do pobre país, decaído o ouro e arruinadas as Gerais, era a roça! E São Paulo era a roça mais braba da terra, a roça dos aventureiros inquietos, humilhados bandeirantes transformados em plantadores de marmelo. Esta foi a equação Brasil-século XIX: as luzes do Rio tentando iluminar as trevas do país-roça, luzes sangrentas movidas à escravidão, um crime no pensamento porém legalidade naquela vida. O país vivia a reboque de sua capital federal pura luz e sentia intensa admiração por ela, o resto era caipirada e matutice.
Algumas peças teatrais da época ilustram bem este Brasil – basta passar os olhos nas comédias do século XIX, marcadas pela oposição Corte-Roça. Na vida, contudo, logo a equação se revelou uma dissintonia com o tempo: veio a indústria, instaurou-se a igualdade e a liberdade humana, mas o Brasil não viu. Foi o furor bandeirante quem assumiu tais bandeiras, mas no século XX. E foi então que São Paulo começou a se tornar um lugar longe… cada vez mais longe.
É inegável que persiste em São Paulo algo do século XIX – quer dizer, da velha equação Brasil-século XIX. Esfumado no ar, paira aqui e ali um cheiro de estofo caipira. Consigo perceber a equação ao circular pela cidade e, com o meu s litorâneo carregado, logo ouvir a velha pergunta-cumprimento, entre a admiração e o elogio: “Você é… carioca?” É quase uma declaração de amor eterno, pois a frase vem seguida por um suspiro de devaneio, como se a pessoa dissesse: “Ah, o Rio!…” E, acreditem, às vezes elas dizem.
Ao andar pelas ruas de São Paulo, mesmo naquelas ruas em que a fortuna impera e em que é preciso romper a custo a atmosfera impregnada de ectoplasma capitalista, sempre há a deselegância discreta das meninas nativas. O fato também é corriqueiro em shoppings de luxo dignos de Miami ou de principados árabes – a vida de corte não impregnou o jeito de ser da cidade, a roça segue envolvendo muitas almas…
No entanto, a imensa fortuna borbulhante da cidade projeta-a, para aprisioná-la, no coração do redemoinho consumista do século XXI. São Paulo é chique e é cafona. São Paulo é rica. São Paulo é um shopping febril. E surpreenda-se: é muito civilizada. Mas é Brasil, portanto, mestiço selvagem, tem lá a sua grosseria nativa, coisa bem nossa, mas sem comparação, contudo, com as trevas humanas que vivemos hoje, por exemplo, na bronzeada vida maravilhosa.
A coisa fica mais séria se olhamos a Pauliceia com bastante atenção. O que se vê? Ah, há os teatros – ah, os teatros de São Paulo, maravilhas da civilização perdidas nos trópicos! O prefeito do Rio devia organizar excursões escolares regulares para os burgueses cariocas (projeto barato, na atualidade eles caberiam numa modesta van!) para que eles conhecessem o que é teatro e empreendessem aqui, como queria a Lei Rouanet. Alfa, Santander, Itau Cultural, Folha, Novo, Procópio Ferreira, Frei Caneca, MASP, VIVO, Sérgio Cardoso, FAAP, Porto Seguro, Itália… a lista não tem fim. E o colosso do SESC SP? Desconfio que é impossível, hoje, saber quantos teatros existem em atividade em São Paulo. E o melhor de tudo: ocupados com teatro. Com espetáculos deslumbrantes, marcados por uma seriedade de produção desconcertante, uma capacidade de execução notável.
Ah, São Paulo, como não te amar se você tem esta generosidade com a alma humana desvalida do presente, tão necessitada de teatro, este colo quentinho da humanidade? Mas importa ficar alerta – com o fígado preso no século XIX, São Paulo padece de uma vergonha do seu dinheiro que é estarrecedora, intrigante, uma forma de culpa cultural estranhíssima, uma coisa que faz o rico viver o seu dinheiro com vergonha de ser rico e o pobre chafurdar na pobreza com vergonha de querer ser rico enquanto faz tudo para ficar rico. Se a aristocracia francesa inventou o nouveau riche, São Paulo inventou o nouveau pauvre. O lema é: pode-se ter dinheiro, mas urge fazer como que se não o tivéssemos, soframos… Pode ser que seja praga da fundação jesuíta, vai saber?
Assim, há por lá um vago preconceito contra o teatro de grande produção, incorporando-se neste rol o teatro musical, pois a pobreza mental do país ainda vê o musical como alienante, apesar de Brecht, dos cabarés alemães, etc – mas vamos pular esta outra discussão, muito longa e pouco oportuna aqui. De certa forma, apesar do panorama impressionante da vida teatral paulista, vigora na comunidade teatral deles uma espécie de raça teatral, como se estivéssemos nos estádios dos clubes, em que o que conta é a coisa visceral, subterrânea, de invenção, para iniciados. É preciso transcender, afundar o dedo nas dores mais estranhas da alma, mesmo que a maioria nem tenha ideia do que isto possa ser.
Este clima materializa atmosferas loucas. Além da relação tortuosa com o dinheiro, o odiado capital, maldito objeto de desejo e de repulsa, vigora um amor estranho ao despedaçamento, aos fragmentos, farrapos. E um amor doido à conversa íntima. Vale ter no máximo trinta pessoas na plateia – trezentas já é quase o caminho da excomunhão. Na tabela, o único teatrão aceitável é o TBC, porque histórico, fracassado, acabado, morto, enterrado. Se algum zumbi-Zampari sair da tumba agora e ousar fazer um novo TBC, vai levar ovo, no mínimo. Os paulistas sabem com excelência fazer um teatrão único, arrebatador, mas eles têm vergonha disto, acham que é algo velho, para ser visto por pessoas lobotomizadas.
Esquizofrênicos, distantes de si, teatros e mais teatros vicejam pela cidade de São Paulo, portanto. As formas teatrais são várias, de extrema riqueza. Quem pula a cerca do experimentalismo nobre e cai na vala do comercialismo espúrio perde o prestígio – mas o caminho inverso até pode ser celebrado, mesmo que o herói seja recebido com nariz torcido, pois o cheiro de dinheiro fica pregado para sempre em quem transita no palco comercial. Entretanto, para quem passeia por São Paulo e adora teatro, que prazer é mergulhar na Broadway paulista, a verdadeira Broadway brasileira – vai, que é linda!
Talvez por causa do TBC, os paulistas fazem teatro com um acabamento que, no Rio, só vigorava de verdade no finado Teatro Mesbla, aquele bem comercial de comédias rasgadas. Aqui, no Rio, as paredes trepidam com qualquer movimento de porta, as taças de cristal são de eloquente plástico, as sedas são tão sintéticas quanto os cabelos da Barbie… Para o teatro carioca, esta indigência é normal e deve ser contornada pela verve, pela imaginação, o tal do espírito de corte. E se o ator ri do fiasco, a plateia aplaude em cena aberta, em especial se for plateia da classe. O vexame vira criatividade. E pensar que os paulistas de teatro se envergonham de viver o oposto disto, desprezam a carpintaria nobre? Ô xente, que injustiça…
A longa reflexão nasceu após uma voltinha rápida de fim de semana por São Paulo. E também por uma lufada de alento, após a alvissareira notícia da estreia no Rio, afinal, da grande montagem paulista de O Homem de La Mancha, de Miguel Falabella, agora no Teatro Bradesco – um dos raros grandes teatros do Rio hoje. Um teatro que merece o século XXI.
A encenação é deslumbrante, imperdível, atesta o padrão de produção paulista com rigor. E o pior de tudo: ela revela por que São Paulo convenceu Miguel Falabella, carioca de quatro costados, a mudar de CEP. Miguel como Cervantes, sonhador como Quixote, Falabella, a histórica loura má do palco do Rio, não economizou talento ou força de trabalho para obter uma cena teatral poética triunfal. E a cidade não foi mesquinha com o seu novo filho. O resultado é digno de todos os louvores recebidos: deslumbrou já na estreia. Garanto, é imprescindível ver a montagem.
A fantástica produção é mais do que benvinda. A cidade foi a capital cultural do país, foi o berço do teatro profissional brasileiro, mas apresenta, hoje, uma cena tímida – são apenas cerca de dez musicais agora em cartaz no Rio, a maior parte formada por produções modestas locais. Neste quadro, é imprescindível receber as grandes montagens de São Paulo, sobretudo a fortuna musical.
Entre as duas cidades, surgiu um descompasso histórico de tal ordem que a maioria das produções paulistas não vem ao Rio. Aliás, a cartelera carioca de musicais é tão pouco louvada que não chega a merecer uma coluna de destaque, especializada, no principal informativo teatral carioca, o suplemento Rio Show, do Jornal O Globo. E o gênero, convenhamos, é bem típico do Rio, essencial para a saúde da cidade.
Uma pena. Um mercado teatral menos anêmico no Rio seria fortalecedor também para São Paulo, destaque-se. A praça teatral nobre ficaria dobrada. No momento, este é um grande passo que importa conquistar – um passo de gigante, vale reconhecer, agora que São Paulo ficou tão longe, se perdeu no horizonte. Talvez seja missão para bandeirante, quem sabe.
Mas a esperança move o mundo quando o amor ao teatro é verdadeiro: depois de tantas rusgas, de uma falsa inimizade histórica, chegou a hora de começar o namoro tão adiado entre Rio e SP. Que a fumaça das fábricas se una à espuma do mar e os deuses do tablado sejam louvados de forma ampla, geral e irrestrita, estejam eles dançando e cantando o amor aos homens, recitando dramas e risos cotidianos ou procurando fígados para esboçar estudos sobre a matéria de que são feitos os seres. Será que chegou a hora estimular vivamente o diálogo cênico interurbano, fazer São Paulo ficar mais perto, bem mais perto, de todos nós? A sorte esta lançada, torcemos.
O Homem de La Mancha
Temporada: 9 de junho a 27 de julho de 2018
Horário: quintas e sextas às 21h, sábados às 17h e 21h, e domingos às 20h
Local: Teatro Bradesco – Shopping Village Mall
Endereço: Avenida das Américas, 3900 – Barra da Tijuca – Rio de Janeiro – RJ
Classificação: 10 anos
Duração: 105 minutos
Gênero: Musical
Ingressos: R$75,00 até R$190,00
Informações: 21 3431-0100
Capacidade: 1060 lugares
Tagged: Cervantes, D. Quijote de La Mancha, Miguel Falabella, Teatro Bradesco, Teatro Carioca, Teatro Paulista, teatros de São Paulo
A Desordem Artificial dos Seres
Séculos e séculos se passaram sobre a Terra: o homem, animal racional, deixou de ser reles coisa viva e se tornou sujeito. O longo caminho, contudo, não trouxe a libertação, pois este fugitivo da natureza mergulha, sempre que pode, no caos gerado por sua própria liberdade. A Ordem Natural das Coisas, de Leonardo Netto, também responsável pela direção, que esteve em cartaz até este domingo no Mezanino do Sesc Copacabana, joga o foco diretamente aí. A qualidade da peça fará com que a temporada seja prolongada, procure saber e, onde estiver, não perca, corra para ver.
Trata-se de uma encenação redonda, indicada para quem gosta de pensar o nosso tempo, a nossa sociedade, as intrincadas malhas afetivas atuais envoltas no caos nosso de cada dia. O espetáculo vale a noite – além do texto inteligente, antenado com a alma atual do mundo, você verá um ator memorável em cena – João Velho. A sua construção do papel principal é de uma humanidade arrebatadora, ourivesaria fina.
A trama tem uma aparência de simplicidade enganadora. A cena acontece num apartamento moderno, desestruturado, povoado por caixas de presentes e de mudança, um cenário de ambientação assinado por Elsa Romero. No meio do entulho doméstico, perdido de si, Lúcio (João Velho), um noivo abandonado na hora do casamento, é consolado por Emiliano (Cirillo Luna), o ex-futuro-cunhado. Logo uma vizinha, Cecília (Beatriz Bertu), desponta em cena, para tentar salvar o náufrago do coração, mas a situação vai rodar em círculo, para um desfecho impactante: não é fácil assumir o controle da própria vida, saber o que fazer com a imensa liberdade que nos cerca.
Em boa hora a peça foi lançada em livro: a leitura compensa, ela merece um debate denso. O ponto de partida da ação é a cartilha clássica, pois a situação dramática, como queriam os teóricos da velha escola francesa, está debruçada sobre o início de uma grande crise. Mas a ruptura com o padrão clássico se dá a seguir, no andamento da situação dramática, pois não há progressão no sentido de desenlace, resolução – o problema não só permanece, como é adensado, como se houvesse um círculo sem fim, sem saída, no qual cada um, herói impossível, se encontra perdido de si e sem chance de perceber de verdade quem é o outro. A liberdade de todos transforma o outro numa pergunta sem resposta.
Assim, tudo o que acontece funciona para lançar o herói num desamparo maior, numa solidão maior, numa rede de mentiras, uma ciranda humana obscura, cujo desfecho é apenas uma espera – um resultado imprevisível. Esta espiral cega, de engenharia muito precisa, não tem transparência para o público: também somos levados de roldão. Talvez o texto tenha alguns excessos, talvez pudesse ter uma velocidade mais acelerada, talvez recebesse bem alguns cortes, opções limitadas pela direção do autor, vítima natural de apego ao texto. Mas isto não chega a ser um problema, não ofusca o extremo prazer que nasce da oportunidade de ver uma peça nacional de bela carpintaria, densos conceitos e perfeita sintonia com a profunda crise humana de nosso tempo, nossa solidão transcendental: acredite, o deleite é absoluto.
A direção preserva o texto também ao apostar alto no ímpeto dos atores. E João Velho, neste turbilhão, alcança resultados impressionantes. Ele é o noivo abandonado, o ser afetivo aturdido, desnorteado, entre o perplexo e o atônito. Emparedado pela impossibilidade de entender os fatos ao seu redor e entregue ao abismo de si, o Lúcio de João Velho expõe um artesanato emocional comovente, da apatia à ira. Num percurso requintado, o ator chega ao gesto mais sublime, a homenagem ao pai, Paulo César Pereio. Para quem é de teatro, é para vibrar de emoção cênica total.
Dois papéis funcionam como apoios para a construção da escalada sentimental vazia de Lúcio, dois desafios interessantes, exercícios estimulantes para afinar o jogo de cena, obras que evidenciam o fato de que o autor é ator. Emiliano, o amigo dedicado, impõe a Cirillo Luna uma equação perigosa, uma ambiguidade imprevista, da qual ele cuida com elegante contenção. Beatriz Bertu, na enigmática Cecília, alcança resultados fortes e chega a surpreender as expectativas na virada sentimental bem desenhada.
De certa forma, as personagens criadas são seres completos no sentido da expectativa da sociedade. Todos estudaram, assumiram o chamado da vida para ir à luta, cuidam de sua projeção profissional. Este protagonismo social é bem explorado pelo autor nos diálogos e também nas modernas inserções narrativas, através das quais a plateia conhece um pouco mais de cada um. Há, contudo, um clima de fratura permanente – de alguma forma, as vidas são falhadas, fraturadas, passíveis de questionamentos, pois a resposta à demanda da sociedade não resolveu o oco interior de cada um. Quando não existe um vendaval de perguntas interiores, há o questionamento por parte do interlocutor. Em consequência, tanto o publicitário, quanto o consultor de feng-shui e a especialista em arte aparecem como arremedos de existência.
Peça do presente, documentário sentimental de nossas vidas aqui e agora, A Ordem Natural das Coisas conta com uma produção singela, despojada, capaz de resolver com limpidez o cenário e traduzir a ação em figurinos adequados, de Maureen Miranda. Um exemplo eloquente da grandeza da criação está na fina grade-parede que envolve a cena, sugestão de gaiola dourada ou prisão preciosa. A mesma sutileza aparece nos gestos, de inspirada poesia cotidiana, resultado da acertada direção de movimento de Marcia Rubin.
E assim flui a criação, puro jogo de achados delicados, prazer teatral. A iluminação de Aurélio de Simoni dimensiona a linha de ação, situa os tons afetivos e sublinha o clímax. A trilha sonora, do autor, incide diretamente sobre o tema central, a hipotética libertação do ser humano no nosso tempo, ao eleger joias dos anos 1960, a velha rebelião musical juvenil, como parte do eixo central da ação.
Num tempo de tantas perplexidades e de tanta dificuldade para reconhecer a fragilidade da pessoa humana, situar os seus limites e dimensionar a sua cegueira, a proposta é mais do que oportuna. O espetáculo é um convite generoso para saudar a nossa condição vulnerável, ínfima mesmo, à deriva de jogos afetivos sociais cuja veracidade não conseguimos controlar. Que este presente nasça de um ato de atores, do texto ao palco, eis o grande motivo para louvar a cena – afinal, a passagem de tantos séculos nos permitiu saber de verdades humanas mínimas, descartáveis, mas essenciais, dilacerantes. E aqui elas são ditas por aqueles que, diante da arte, fazem o gesto mais efêmero: são apenas meros atores.
Texto e Direção: Leonardo Netto
Elenco: Beatriz Bertu, Cirillo Luna e João Velho
Direção de Movimento: Márcia Rubin
Iluminação: Aurélio de Simoni
Cenário: Elsa Romero
Figurino: Maureen Miranda
Trilha Sonora: Leonardo Netto
Design Gráfico: Lê Mascarenhas
Fotos: Dalton Valério
Mídias Sociais: Rafael Teixeira
Direção de Produção:Luísa Barros
Produção Executiva: Alice Stepansky e Thaís Pinheiro
Mobilização de Recursos: Marcela Rosário
Realização: Sesc Rio e Fulminante Produções Culturais
Espetáculo: “A Ordem Natural das Coisas”
Local: Sesc Copacabana (Mezanino).
Endereço: Rua Domingos Ferreira, 160 – Copacabana.
Dias e horários: Quinta a sábado, às 21h. Domingos, às 20h.
Ingressos: R$ 7,50 (associados. Sesc), R$ 15 (meia) R$ 30 (inteira)
Bilheteria: segunda-feira, das 9h às 17h. Terça a sexta, das 9h às 21h.
Sábados, das 13h às 21h. Domingos e feriados, das 13h às 20h.
Informações: (21) 2547-0156.
Capacidade: 70 lugares.
Classificação etária: 14 anos.
Duração: 90 min. Gênero: drama.
Lançamento do livro “A Ordem Natural das Coisas”
(Editora Livros Ilimitados)
Dia 7 de maio (segunda), às 19h, na livraria Travessa de Ipanema (Rua Visconde de Pirajá, 572).