As ondas longas do canto nacional
Ouvidos atentos, olhos conquistados. Muitos estudos precisam ser feitos a respeito da relação brasileira entre rádio e teatro. Ela está na ordem do dia. A aproximação entre os dois espaços de criação nasceu desde a implantação do rádio no país e nem sempre foi pura harmonia, muito pelo contrário… Assim como o cinema despertou temores de que, por causa dele, o palco iria se acabar, também as transmissões radiofônicas, em especial depois da eclosão da paixão pelas radionovelas, trouxeram a suspeita de que os dias da cena estariam contados.
O tema surge para o debate por várias razões. Em primeiro lugar, por causa da insinuação, agora, de novo, de que o teatro poderá morrer em função de ocupações domésticas, tais como a televisão, os filmes em casa, a dedicação ao parque de diversões contido nos celulares. Estive por estes dias conversando com amigos da Zona Norte do Rio e eles se declararam reclusos noturnos, quer dizer, eles não saem mais de casa à noite, por causa do medo da violência. Abdicaram de vez do prazer de ir ao teatro e se dedicam a outras artes e diversões, em casa. Optaram por se divertir entre quatro paredes familiares.
A razão da escolha de agora difere da situação passada, gerada quando o rádio despontou, que era de puro amor radiofônico. Registra, contudo, a mesma inclinação para a diversão doméstica desfavorável ao teatro. Dificilmente a maioria dos recolhidos atuais optará por ouvir rádio, mas, de toda a forma, eles elegeram a opção de se divertir no lar. Este novo recesso me fez lembrar o antigo, rememorar uma velha história importante para o teatro.
Pois existem outras razões para trazer à baila o tema da aproximação entre as duas searas de produção: o rádio, quando surgiu, decididamente enfeitiçou a população. O sucesso fez com que muita gente, artista, migrasse dos palcos para os microfones das estações. Vale assinalar um fato menosprezado, a ascensão do rádio coincidiu com o declínio progressivo do teatro de revista, tema bastante polêmico não pesquisado até hoje. Seria possível argumentar que a revista cumpriu um ciclo e sumiu por sua própria fraqueza.
Ela não teria conseguido se reinventar. Não conseguiu se estruturar com estabilidade como atividade de mercado, dentro de um jogo econômico mais competitivo do que o do século XIX, quando o palco era soberano. Só que a nascente música popular, que pulsava no teatro, nasceu nele para as plateias, se tornou uma fortaleza nas rádios. A partir deste trampolim, virou indústria, numa vertigem de capital distante da realidade teatral.
O trânsito atingiu também autores e atores. Alguns dramaturgos – e o maior exemplo é Oduvaldo Vianna, o pai (1892-1972) – se tornaram grandes personalidades do rádio, como autores de radionovela e como dirigentes de emissoras. Algumas vozes célebres de atores do teatro brasileiro só podem ser analisadas com propriedade se considerarmos a sua formação ou a sua aclamação nas rádios.
Mas é possível ir mais longe. Um dado curioso a observar é que hoje um movimento inverso, de retorno, marca a cena brasileira. A música, traidora, que abandonou a cena a favor dos estúdios, voltou a ocupar a velha casa em escala crescente, no ciclo de renascimento, de agora, do teatro musical. A pergunta mais importante do tema é a respeito do fluxo que preside este movimento. O quê move a sensibilidade brasileira neste jogo? O que torna a produção de música importante aqui, irresistível, uma atração capaz de abrir exceção na reclusão atual do carioca? Uma amiga da Zona Norte desistiu do teatro mas, pressionada, reconheceu – vai sair de casa sim, para ir ao Centro, mas para ver musical, suprema delícia, a seu ver.
Vale reler algumas páginas do final do século XIX, assinadas por Machado de Assis, ou do início do século XX, com Lima Barreto. Os dois acusam a existência de um forte gosto brasileiro pela música. Mas, se havia o retrato de uma devoção ao piano, no primeiro, o segundo já fala do violão e da impressão repulsiva que o instrumento, amado pelos marginais, causava nos chefes das famílias, autênticos caçadores de seresteiros. Os primeiros sucessos destes notáveis vadios aconteceram nas rodas de samba e de batuque. Para os palcos das revistas, foi um passo curto. E o violão acabou por se tornar um som nobre da vida brasileira.
Não se pode, entretanto, achar que o passo curto foi fácil, rápido e rasteiro: o processo de namoro foi lento. Não foi uma paixão imediata, fulminante. A música que veio do século XIX, mesmo no violão, era filha dileta do belcanto, amante do dó de peito. Apesar do remoto vínculo idealista, ela mexia com o corpo, com os quadris. O resultado é fácil de imaginar: a revista e o teatro musical do início do século aconteciam sob uma aura de transgressão. Causavam repulsa nos meios intelectuais elevados e nas famílias de qualidade, eram qualificados como terra do trolóló e pernas nuas. E o mais engraçado é que pode até ser que o corpo da roda de samba tenha sido contido para caber no palco. Ainda assim ele era uma facilidade expressiva, era tosco, excessivo, segundo as normas dos saraus à beira do piano. Aracy Côrtes (1904-1985) machucando um maxixe era uma visão obscena.
O que foi que provocou a mudança e fez surgir um tórrido caso de amor? Não há dúvida, para a boa música brasileira, a dissipação dos tabus, a popularidade e o gosto familiar foram conquistados graças ao rádio. E é do rádio que o teatro empresta, agora, os seus maiores sucessos, acontecimentos que podem fazer as pessoas saírem de casa, mesmo com a violência, pois os horários das sessões teatrais começam a se aproximar das tardes. Se antigas marchinhas ironizavam as fãs, vistas sob o rótulo pejorativo de macacas de auditório, hoje se pode ver nas plateias que macacas e madames compartilharam paixões. O caso de amor aconteceu e varreu tudo e todos.
É nesta abordagem que se pode entender a aclamação de vários sucessos da cena teatral musical recente. Olhar a cena carioca neste momento revela propostas de contorno bem nítido, cuja origem só pode ser explicitada se for considerado o sucesso do rádio, dos programas de auditório, a consagração do hábito de ouvir música em casa, na intimidade. E o prazer de ter a alma banhada por belas vozes brasileiras.
Vale destacar que o rádio foi a porta democrática capaz de viabilizar a aclamação de pessoas de origem muito humilde – Elza Soares e Elizeth Cardoso (1920-1990) chegaram ao estrelato absoluto, mais do que merecido, por este caminho. As ondas sonoras levaram para todo o território a arte das duas e o caminho de consagração foi mais eficiente do que o teatro poderia ser, pois era um caminho imediato e nacional. Por mais que o Rio de Janeiro, capital federal, falasse dos palcos para o país, esta repercussão possuía outro andamento.
O rádio proporcionou também o surgimento de possibilidades locais de projeção – novas estações foram criadas por todo o território. É importante observar como, até certa altura, estas manifestações locais não possuíam autonomia e seguiam o padrão ditado pelo Rio de Janeiro. Este jogo centro-periferia transparece no início da carreira de Isaurinha Garcia (1903-1973), uma voz privilegiada de São Paulo que iniciou a carreira na Rádio Cultura e na Rádio Record, de São Paulo, e se firmou como artista a partir de sua cidade.
No início de sua trajetória, as referências com que trabalhava eram Carmen Miranda (1909-1955) e Aracy de Almeida (1914-1988), consagradas cantoras sediadas no Rio de Janeiro. Contratada pelo rádio em São Paulo, Isaurinha construiu uma identidade forte, consolidada na sua cidade, com projeção nacional, graças à beleza de sua voz e ao poder do novo veículo. A sua carreira nacional projetada longe do Rio traduziu, portanto, o esboço de uma nova realidade geopolítica da arte no país.
Pois eis em sua integridade a questão. Por obra e graça do gosto popular por espetáculos musicais, as três grandes cantoras estão em cena no Rio de Janeiro em produções cuidadas e de grande densidade artística. Elizeth recebeu a graça divina do desempenho inspirado de Izabella Bicalho e faz enorme sucesso no Teatro Maison de France. A atriz consegue irradiar o encanto e o magnetismo da cantora, envolta numa aura de época muito bem desenhada.
Elza Soares recebeu a ousadia de ver a sua identidade plasmada através de um número cabalístico – sete atrizes representam o seu imenso poder artístico no palco do Teatro Riachuelo. Num redemoinho de canções, pulsações, corporeidades, cores, elas revelam a impressionante força de Elza, força humana e força artística.
Já Isaurinha Garcia retorna à cena numa nova encenação sob a luz da excelente Rosamaria Murtinho, criadora da personalidade em 2003. Nesta nova montagem, ela terá a companhia das radiosas Kiara Sasso e Soraya Ravenle. Trata-se de uma narrativa biográfica, dedicada à estrela paulista na época de ouro do rádio, novo cartaz do Teatro Oi Casa Grande. O que se pode dizer?
O encanto que o rádio espalhou em ondas curtas e frequência modulada está entre nós de novo, sob uma outra forma, a forma teatral. As atrizes, contudo, não fazem mais um teatro cabeça-pescoço, engessado como uma ópera velha – elas trazem uma idade nova do musical brasileiro, quente, vibrante, povoado por corpos expressivos, musicais.
Os primeiros musicais biográficos deste novo ciclo histórico – como Dolores ou mesmo Rádio Nacional, por exemplo – ainda possuíam atores em desempenhos quase radiofônicos, frontais, rígidos diante das canções. No início, o palco mimetizava um pouco a situação do estúdio, engessamento ainda presente em algumas montagens, esquecidas do fato de que se trata de uma outra poética.
No geral, contudo, o novo musical busca desenvolver uma forma cênica em sintonia com a vida atual – uma vida em que a intensidade do corpo é um valor de primeira grandeza. Mesmo falando do passado, o teatro descobriu que encenar não é apenas fazer fluir a voz, como se o físico fosse uma estaca alto-falante. A cena mudou e é importante conferir – a homenagem às estrelas fica ainda mais emocionante. Não dá para perder a chance de sintonizar com ondas profundas responsáveis por muito da nossa identidade.
Vale agradecer ao rádio, por ter sido incubadora e abrigo de talentos tão notáveis. E ao teatro, agora numa fase musical intensa, por gostar tanto de música e oferecer oportunidades preciosas para que se saia de casa, se levante a cabeça, e se vença o medo de morar no Rio. Importa usar a velha paixão por canções para lotar os teatros. Nada melhor se poderia oferecer ao sofrido povo carioca neste momento: olhos, ouvidos e corações em sintonia fina.
Elizeth, A Divina
ESTREIA: 04 de julho (4ªf), às 17h
LOCAL: Teatro Maison de France
Av. Presidente Antônio Carlos, 58 – Centro / RJ Tel: (21) 2544-2533
HORÁRIOS: quartas às 17h e quintas às 19h /
INGRESSOS: R$ 50,00 e R$25,00 (meia) / HORÁRIO
FUNCIONAMENTO DA BILHETERIA: 3ª a domingo, a partir das 14h
VENDAS POR INTERNET: www.tudus.com.br /
CAPACIDADE: 355 espectadores / DURAÇÃO: 120 min (com intervalo)
GÊNERO: Musical
CLASSIFICAÇÃO INDICATIVA: Livre
TEMPORADA: até 16 de agosto (excepcionalmente nos dias 01 e 02 de agosto não haverá espetáculo, devido a compromissos do teatro previamente agendados)
Elza
Temporada de 19 de julho a 30 de setembro
Quintas, às 19h. Sextas e Sábados, às 20h. Domingos, às 18h
TEATRO RIACHUELO
Rua do Passeio, 38/40 – Centro
Vendas na bilheteria do teatro e site da Ingresso rápido.
Ingressos:
Quintas: R$ 40 (Balcão Superior), R$ 80 (Plateia e Balcão Nobre), R$ 100 (Plateia VIP).
Sextas: R$ 50 (Balcão Superior), R$ 100 (Plateia e Balcão Nobre), R$ 130 (Plateia VIP).
Sábados: R$ 50 (Balcão Superior), R$ 100 (Plateia e Balcão Nobre), R$ 150 (Plateia VIP).
Domingos: R$ 40 (Balcão Superior), R$ 80 (Plateia e Balcão Nobre), R$ 100 (Plateia VIP).
Classificação etária: 14 anos.
Duração: 120 minutos.
Isaura Garcia – O Musical
ESTREIA: 29 de Julho
Local: Teatro OiCasagrande, Av. Afrânio de Melo Franco 290 A, Leblon
Temporada: de 26 de julho a 14 de outubro
Horários: quinta-feira, às 20h; sexta-feira, às 20h; sábado, às 17h30 e às 21h; domingo, às 18hPreços: de R$ 50 (inteira) a R$ 150 (inteira)
Vendas: bilheteria do teatro e pelo site Tudus (https://www.tudus.com.br/evento/oi-casa-grande-isaura-garcia–o-musical)
Classificação etária: 12 anos
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Elza: eu, mulher, agradeço e retribuo
Por você eu faço tudo: existem mulheres assim. Elas movem o mundo com a força do seu amor à existência, elas querem uma vida melhor e seguem adiante sempre, para chegar lá. Ou tentar, até o último limite de suas forças. Elas são Elza. E Elza está em cena num esplendor só, nunca pensado, num ato de justiça à grandeza deste monumento-mulher.
Teatro: a fábrica do inefável
Dizem os cientistas que a matéria existe aqui, ao nosso redor, em três estados: sólido, líquido e gasoso. Basta ter sensibilidade aguçada para perceber o quanto eles estão errados, pois os estados da matéria são cinco – sólido, líquido, gasoso, musical e inefável.
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O cenógrafo do infinito poético
Como se fosse um velho quadro construtivista, a cena brasileira se veste de preto e branco, o preto do luto e o branco da limpidez da alma infantil. A cena lamenta a morte, ontem, de um artista de absoluta dimensão histórica, requintada capacidade poética, Hélio Eichbauer (1941-2018). Ele foi um cenógrafo poeta, um artista capaz de indicar com rigor e fantasia, a um só tempo, o sentido mais sofisticado da arte da cena.
Estudante de filosofia com interesse por artes plásticas e teatro, personalidade inquieta, Hélio Eichbauer optou pelo estudo da cenografia no início dos anos 1960, depois de conhecer o trabalho do cenógrafo Josef Svoboda na Bienal de São Paulo. A fascinação o levou para a Tchecoslováquia, para estudar com o artista. Lá, conquistou uma formação clássica, de visão rigorosa da arquitetura da cena, fundada no abstracionismo monocromático. Os estudos envolveram a criação de maquetes como ponto de partida, aliada aos exercícios de criação fundados na composição gráfica, no desenho e na escultura a partir de repertório dramatúrgico convencional.
Quem foi que descobriu o Brasil? Foi o teatro?
Não sei dizer o motivo, mas o Rio Grande do Sul volta e meia laça a minha vida. Primeiro, foi o incrível espetáculo Mockinpott, de Peter Weiss, do Teatro de Arena de Porto Alegre, apresentado no Rio em 1976. Um esplendor. Depois foram alguns alunos, na época em que os sindicatos do RJ e do RGS não possuíam acordo de reconhecimento profissional. Os jovens eram notáveis, mas sumiram da escola de teatro assim que o acordo sindical entre os estados foi assinado. Uma pena, sempre se renova a rotina da profissão com alunos adoráveis em sala.
A prefeitura e o teatro da cidade
Nasci no Distrito Federal, capital cultural do país, capital do país. Durante a infância, me afeiçoei à ideia, por obra e graça do poder, hábil, naquela época, na arte de implantar em nós um profundo civismo. Quando decidiram mudar a capital, eu ainda era criança, mas não gostei nada, esbravejei. A vida seguiu de perda em perda, e foram retumbantes os meus furores domésticos contra o esvaziamento total da importância da cidade. Contudo, ela permanecia linda. E culta. Recentemente…
Bom, por conta da doutrinação insana que eu sofri no inicio da vida, uma cariocagem desvairada, detesto quando maltratam o Rio de Janeiro. Sou Distrito Federal, sou Guanabara, sou Rio de Janeiro. Sou esta pequena partícula de terra bronzeada incrustada nas montanhas cansadas deste litoral velho ao sul. Mexeu com o Rio, mexeu comigo.
Portanto, não desisto de lutar pelo Rio e penso que neste descalabro total em que vivemos agora só há uma saída: teatralizar a cidade. Transformar o Rio num grande fluxo de teatro a céu aberto, Teatro de Janeiro. O plano é diabólico, proponho que a arte do palco envolva tudo e todos, num reformismo mais avançado do que aquele que moveu um dos meus grandes inspiradores, Lima Barreto, carioca também, Distrito Federal destilado. Nada de Pereira Passos, a coisa tem que ser mais adiante! Cariocas, avante!
Começaria assim – faríamos uma intervenção decidida na gerência urbana mais ampla. Exigiríamos do alcaide que estivesse no cargo a adoção de um Plano Diretor de Vitalidade Urbana – o PDVU. O PDVU imporia uma visão teatral para cada recanto da cidade, detalhadamente, ao ponto que se pudesse ter uma cidade-poema cênico, uma instalação de arte coletiva capaz de deslumbrar todo o ocidente. Sim, a ação aconteceria por bairros e de bairro em bairro ergueríamos uma cidade-arte inédita, nunca vista no mundo, quiçá na Via Láctea ou mesmo em todo o universo. Seria uma teatralização moderna, construída a partir da realidade cotidiana aqui e agora, e não uma enxurrada de voos metafísicos.
É evidente que o lugar número um da proposta do PDVU seria Copacabana. A Princesinha do Mar seria transformada de maneira descarada no bairro trans, no bairro fantasia, no bairro sonho. Por todas as esquinas seria estimulada a implantação de lojas de fantasias. O traje típico de Copacabana seria “à fantasia”. Os salões de beleza – você sabem que Copacabana tem uma inflação de salões de beleza, não? – seriam estimulados, com redução de impostos, para que organizassem desfiles, mostras, encontros de Fantasia de Si. Quer dizer, além de andar metido em fantasia, o transeunte poderia usar os salões para transformar face, cabelos, superfícies maquiáveis.
As lojas de fantasias seriam (ou poderiam ser) verdadeiros ateliês de criação – fantasia encalhada, fantasia reciclada. Imaginação pediu, fantasia surgiu – qualquer um poderia encomendar aquela fantasia esquisita desejada por toda a vida sem esperança de realização. No Carnaval, seria permitido usar fantasia de gente comum, para surpreender os turistas desavisados que estivessem muito exaltados buscando adrenalina nas ruas do bairro. E Copacabana continuaria a ser assim a nossa maior referência universal. A trilha sonora seria o bolero e a marchinha, a chuva seria confete, as cortinas puras serpentinas.
Ipanema seria outra coisa – seria o bairro intelectual, suprema ambição de seus moradores célebres, e teria livros por toda a parte. Além de livrarias, teria praçatecas, digamos, praças com estantes para o acesso universal e pleno aos livros. E para organizar a brincadeira festiva solene do bairro, tão agradável, do livro-esquecido e do livro-revelação. O jogo teria regras simples: todo ipanemense teria que, uma vez por mês, abandonar um livro amado, importante para as letras do mundo, no santuário-mor do bairro, a Praça Nossa Senhora da Paz. E teria também que “achar” um livro para ler, dentre aqueles deixados pelos concidadãos. A teatralização seria o ato de ler – e mesmo quem não gostasse seria convidado a vestir o figurino, andar com páginas ao redor da alma. Ler em voz alta, em público, seria a suprema manifestação de amor e civilidade.
Alguns bares e esquinas seriam nomeados como academias ipanemenses. O assunto em suas mesas seria necessariamente a vida intelectual do bairro, da cidade, do país e do mundo, jamais trivialidades, fofocas ou besteirol. Uma ou duas esquinas seriam transformadas em locus poeticus – assim mesmo, em latim macarrônico – tribunas livres para a recitação de poesias. E a roupa ipanemense seria esta mesma que muitos deles usam, um misto de panos enviesados, fardão acadêmico, invenção e informalidade – aquela coisa de: veja, estou na moda. Ou: eu sou a moda! A música seria a Bossa Nova, claro.
E por aí seguiria o plano reformador, conduzindo as almas a outros lugares: distantes das agruras de hoje, eles se tornariam lugares maravilhosos. Mas as vocações destes lugares não seriam arbitrárias, seriam ditadas pela tradição local, nada seria imposto por ato de autoritarismo. A população seria ouvida duplamente, através da escuta refinada da tradição, a qual todo bom carioca conhece bem, e através de eleição popular, bairro a bairro, em assembleias públicas bem barulhentas e sem os riscos e os custos de modernices fantasiosas como as urnas eletrônicas.
Não vou expor todo o plano diretor aqui – não quero correr o risco de algum aventureiro dele lançar mão. Porém, alguns exemplos mais, bem eloquentes, podem ser expostos. No caso do barulho, vejamos. Reza a tradição carioca que o bairro da Urca, talvez por ser tão novo, ter idade ao redor de um século, se tornou notável por ser um paraíso de silêncio e tranquilidade, mesmo com as tsunamis tradicionais de suburbanos que varrem o recanto nos fins de semana de verão – afinal, isto faz parte da rotina do Rio.
No entanto, um belo dia inventaram a mureta e a pobreta e, tchibum, adeus silêncio. Em particular no verão, há um bafafá noturno de assustar sentinela distraído. Pois bem, considerando a tradição de quietude, o plano pretende propor para o bairro a situação de oásis da pesca. Aos jovens mureteiros e pobreteiros seria oferecida requintada formação em pesca. Por todos os cantos possíveis seriam abertas lojas de equipamento de pesca e os militares do bairro, nas horas aquarteladas ociosas nas matas, providenciariam belas minhocas nativas para refinar a qualidade da atividade. A Urca permaneceria pululando juventude à beira mar, mas haveria um grande silêncio, pois ninguém consegue pescar com barulheira. E note-se: a amurada da Urca é um ponto tradicional de pesca da cidade, nada seria feito contra o que já está na essência do que é.
Pois o plano não torceria nunca a vocação de um lugar. Exemplos? Pois bem – Cascadura poderia se tornar um bairro de comércio de pedras preciosas, em honra ao nome. A música? Chá-chá-chá – um som bom para casos calientes de amor alimentados tantas vezes por belas pedras. No entanto, a arte de tecer sapatos artesanais sofisticados, inclusive para fantasias de luxo e para bailados de qualidade, muito bem exercitada no bairro, seria mantida, pois seria também um ato precioso.
O bairro do samba seria, claro, Madureira. Mas a macumba e o bate tambor dividiriam morada, pois são parentes muito chegados e afins. Embaixo do viaduto continuaria a ter a festa dos ritmos urbanos da hora. A roupa ia juntar o branco ritual, as baianas e os shortinhos, com alguma ostentação nas beiradas. Vila Isabel não se aborreceria com o samba sediado lá para o meião da linha da Central, pois se tornaria morada da seresta e da vida de bar. As modinhas românticas embalariam as noites, em contracanto com todo o cancioneiro de Noel.
Para o Méier migraria toda a moda, mesmo com o jeans continuando com a sua sede em Vilar dos Teles. Sim, ok, Vilar dos Teles pertence a outro município, São João de Meriti, o plano diretor não vai se atrever a gerar conflitos intermunicipais, vale só o exemplo, para tornar mais clara a coisa. Veja-se bem um outro exemplo – Botafogo, outrora um bom reduto de lojas de produtos de macumba, se tornaria o abrigo das ervas, todas as ervas, com as fantasias de folhas nativas liberadas para os moradores. Chapéus de embaúba serão acessório banal, espanadores do calor sob o ritmo de polcas e lundus.
E isto sem conflitos com São Cristóvão, senhor das flores, embalado com o xaxado e todos os ritmos nordestinos comendo solto. Para a Tijuca iriam os médicos, hospitais, clínicas e assemelhados, toda a população junto, aderindo aos higienizados uniformes. A música sem dúvida seria a valsa. O rock dominaria Laranjeiras, pois lá estaria o bairro hippie, pazeamor e zen. Enfim, a geografia toda se tornaria ato de arte, a partir dos matizes da própria vida cotidiana, local, como se o gosto pela performance fosse a razão de ser da polis. Os teatros brotariam do chão como uma espécie de cogumelo ávido, pois seria preciso ter muitas assembleias e muitas representações das artes locais.
Parece delírio de quem já está desesperado diante da crise carioca sem fim? Devaneio louco de quem não aceita a situação patética de abandono da cidade maravilhosa? Encosto de alta voltagem das almas de dois dos cariocas mais profundos, o maranhense Artur Azevedo e o nativo de estirpe Lima Barreto?
Sei não. Pois desconfio que a coisa está nos ares, traduz o descontentamento abissal com as omissões governativas do momento. Podem me refutar, se eu estiver errada, mas achei tudo coerente, depois do meu delírio, quando li o release da deliciosa ópera Bastien und Bastienne, de Mozart, que será apresentada no Rio neste fim de semana.
Justamente ela estará em cartaz nos dias 14 e 15 de Julho, na Cidade das Artes, aquele insano monumento ao desperdício que a cidade foi obrigada a engolir. No PDVU a Barra da Tijuca, por razões muito evidentes, será o bairro da ópera, com grandiloquências urbanas novas prolongando as grandiloquências inacreditáveis locais. A Barra vai se assumir em veludo, véus, bordados preciosos, rococós. Portanto, o espetáculo é mais do que bem vindo, é precioso.
E basta uma olhada rápida nos detalhes da proposta para que se perceba a sua beleza e a oportunidade de tudo. A ópera foi composta por Mozart aos 12 anos, razão pela qual a versão apresentada irá incorporar a figura de um narrador menino que sonha uma visita ao Rio no futuro, uma visita a uma exposição do pintor Pieter Godfred Bertichem. Deslumbrado, ao acordar ele escreve a ópera. As cenas irão surgir aos poucos, enquanto ele escreve a música.
O artifício dramatúrgico permitiu à concepção da montagem incorporar imagens do Rio dos séculos XVIII e XIX – verdade, aquele Rio arrebatador que virou a cabeça de tantos artistas e estrangeiros – sugerindo, hoje, um passeio visual por uma cidade apagada no tempo, desconhecida de verdade para nós, na atualidade. Um ato de magia teatral, não há dúvida, imperdível – o enredo de Bastien und Bastienne traz exatamente este colorido. A história – um Singspiel – conta as desventuras de Bastienne, jovem camponesa que perde o amado, Bastien, para uma mulher nobre. Desesperada, louca para recuperar o amor perdido, ela recorre ao mago Colas, que aconselha ao jovem casal o que fazer.
O diretor Manuel Thomas, em boa hora para as dores do Rio, optou projetar em cena reproduções gigantes de artistas das missões francesa e austríaca – e este procedimento ofecerá ao público a rara chance de mergulhar num túnel do tempo peculiar, de banho de amor à cidade, um banho teatral restaurador da esfrangalhada auto-estima carioca.
Vê-se muito bem, portanto, que está em pauta um ciclo de celebração muito especial. O foco é a recuperação da cidade. Em sintonia com este movimento, o PDVU tem larga perspectiva de sucesso. Você, carioca, fiel devoto da mais bela cidade entre todas (nenhum carioca de verdade descrê deste dogma, mesmo que não o confesse publicamente), precisa começar a agir. Pois se o Rio de Janeiro é mesmo o coração do carioca, corra, antes que o seu órgão vital seja esmigalhado, depois de arrancado brutalmente do seu peito. Nos ensinaram a amar, agora querem nos levar ao ódio. Então, lembre-se: imposições do poder à parte, o Rio merece todo o seu amor. Precisa dele. Inventaram o carioca, acreditamos: não vamos abrir mão da velha fantasia.
Datas: 14/07 a 15/07
Horários: – Sábado:20h; Domingo: 19h
Duração: 60 Minutos em média
Local: Cidade das Artes
Sala: Teatro de Câmara
Classificação etária: Livre
Preços: Inteira : R$ 70,00/ Meia: R$ 35,00
Direção Musical e Regência: Evandro Rodriguese
Direção Cênica: Manuel Thomas
Pianista Preparadora: Eliara Puggina
Elenco
Bastien: Rodrigo Sammarco,
Bastienne: Chiara Santoro
Mago Colas: Rafael Siano
Mozart: Vittório Gava
Atlantis Opera Orchestra
I Violino: Kelly Davis Moura
II Violino: Sarah Cesário
Viola: João Reis
Violoncelo: Diogo Moura
Contrabaixo: Matheus Tabosa
Oboé: Ruan Pablo Ribeiro
Trompas: Jhonatas Oliveira, Felipe Alves.
Produção: Kether Arts
Imagem: Hospício de D. Pedro II, Praia Vermelha,Pieter Godfred Bertichem.
Tagged: Artur Azevedo, bairros do Rio, Bastien und Bastienne, Cidade das Artes, Lima Barreto, Mozart, PDVU, Prefeitura do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Teatro
A voz do corpo
Ocorpo fala e fala alto. Agora mesmo o pessoal dedicado ao corpo no teatro carioca começou a soltar a voz. O motivo da gritaria – uma gritaria gentil e educada, ressalte-se – é a ausência da categoria corpo nos diferentes prêmios de teatro da cidade. Nenhum prêmio atual considera estes profissionais numa menção específica.
A rotina dominante sempre fez com que os especialistas nos trabalhos de corpo fossem indicados e premiados na Categoria Especial, um grande balaio capaz de abrigar tudo o que não estiver nas categorias fixas. Pois bem, agora, os profissionais do corpo solicitam uma visão objetiva, nova, diferenciada, um prêmio para chamar de seu.
A turma tem perfil muito variado, um perfil de grandes dimensões. Participam da reivindicação, liderada por um grupo que redigiu uma carta aberta, apoiada por vários artistas, profissionais vinculados às categorias Coreografia, Preparação Corporal e Direção de Movimento. Estas especialidades absorvem artistas especializados dotados de formação bastante diversificada, atuantes em campos tão diferentes como a dança, o circo, as artes marciais, a educação somática.
O fato é histórico. Mas a historicidade, aqui, não remete apenas ao fato da reivindicação, não surge apenas por causa da existência objetiva do clamor, e sim por assinalar uma trajetória concreta do corpo do ator no teatro brasileiro. Em um século, de certa forma ecoando a própria libertação do corpo humano na sociedade, aconteceu uma transformação radical na fisicalidade dos atores. O tema é vasto, porém algumas notas precisam ser ressaltadas. Vale considerar como ponto de partida as lições do ator Procópio Ferreira (1898-1979), um primeiro ator da escola antiga: as suas palavras são preciosas, dizem muito a respeito da história do trabalho corporal em cena.
A cena é o início do século XX, o palco é um lugar de fala retumbante, para comover plateias numerosas, teatros sempre com mais de mil lugares, o velho edifício à italiana no estilo do século XIX. Para a formação teatral da época, na maior parte dos casos obtida na prática, a retórica e o bem dizer eram ferramentas essenciais; o ator precisava saber ganhar a cena, situar-se em três quartos, semi-perfil para a plateia. Nesta atitude, corpo estatuário, suporte para a emissão de palavras de impacto, ele devia soltar o verbo, para fazer tremer as almas e as paredes. O ator seguia a ação descrita nas palavras e as coordenadas da ação conduziam algumas movimentações pelo espaço, movimentos que traduziam com exatidão o texto. Era uma arte apaixonante para a sensibilidade daquele tempo, Procópio era um monstro sagrado. Aliás, para celebrar tanta popularidade, convém lembrar que no dia 8 de Julho ele completaria 120 anos, se vivo estivesse.
No livro que publicou em 1925, A Arte de Fazer Graça, Procópio Ferreira definiu o ator de forma precisa: “O ator é o intérprete fiel e consciente do autor; o criador, ao vivo, da personagem imaginada, pela frase e pela ação, dentro da peça.” A definição traz uma costura clara – a palavra, o texto, as intenções do autor, que, a seu ver, podem ser completadas de forma inteligente pelo ator, são os condutores absolutos do trabalho em cena. E ele diz mais: “O gesto, no teatro, é o introdutor diplomático da palavra.” Portanto, o corpo do ator era um suporte, um sustentáculo, para a expressão mais importante, a fala.
Uma das grandes chaves do sucesso da atriz Eva Todor (1919-2017) foi, numa época em que a palavra fazia a cena, a presença corpórea intensa, inclusive cômica, obtida a partir do uso da formação em balé e de efeitos acrobáticos. O seu território primeiro foi a revista, um teatro mais livre para o corpo, mas quem observa com atenção as chanchadas da Atlântida, da década de 1950, pode ver com muita clareza o que teria sido o corpo em cena na primeira metade do século, nos anos 1930, mesmo na revista, e dimensionar o furor de alegria oferecido pelas soluções criadas por D. Eva. A cena famosa de espelho do filme Os Dois Ladrões, de Carlos Manga, com Eva Todor e Oscarito, sempre usada nas aulas de História do Teatro Brasileiro, dimensiona o ardiloso uso do corpo sob intenções cômicas na época. Mas, ainda aqui, toda a regência do ato se faz pelas palavras.
Portanto, durante boa parte do século XX o corpo do ator brasileiro era moldado por uma armadura verbal resistente. O grande marco para a mudança, a renovação incontestável, surgiu da dança, de certa forma. Klauss Vianna (1928-1992), bailarino e professor de dança, foi o revolucionário que sacudiu a cena. Preocupado com a expressividade do corpo e com a estrutura física da expressão, ele formulou um método a partir da experiência concreta de trabalho com atores. O marco da grande virada aconteceu em 1967, com a montagem de Navalha na Carne, de Plínio Marcos, direção Fauzi Arap, um desempenho histórico de Tonia Carrero (1922-2018).
Vários trabalhos a seguir alcançaram grande sucesso e impuseram a realidade de um corpo novo, não mais o corpo verbal antigo ou o corpo maleável adestrado para acompanhar o verbo, mas um corpo senhor de sua potência e de sua força expressiva. Klauss Vianna tornou-se referência, fez escola. DDentre tantos trabalhos que assinou, destacam-se historicamente Roda Viva, de Chico Buarque, direção de José Celso, e os trabalhos com o Teatro Ipanema de Ivan Albuquerque e Rubens Corrêa – notadamente O Arquiteto e o Imperador da Assíria e Hoje é Dia de Rock.
Portanto, uma poética nova despontou, um fazer diferente se impôs, não foi apenas uma assinatura ou uma proposição pessoal. Nasceu a Expressão Corporal, com a incorporação de múltiplas referencias, da dança moderna ao circo, passando pela dança clássica. Na realidade, uma frase de Klauss Vianna no seu livro A Dança situa com muita clareza o novo território: “Não podemos aceitar técnicas prontas, porque na verdade as técnicas de dança nunca estão prontas: têm uma forma, mas no seu interior há espaços para o movimento único, para as contribuições individuais, que mudam com o tempo.”
Realista ou profético, o fato é que as mudanças não pararam, trouxeram muitas nuanças, muitos profissionais, um corpo inquieto e múltiplo, até mesmo uma faculdade, sob a liderança de Angel Vianna, esposa e colaboradora de Klauss Vianna num grau absoluto. Assim como o corpo é móvel, assim as artes do corpo em liberdade de criação são obras de movimento, em movimento. O fluxo criativo ronda o infinito. Tanto a pesquisa caminha para dançar o cotidiano, poetizar a rotina, como envereda pelo lúdico, pelo formal, pelo extra-cotidiano ou o ancestral: não há fórmulas nem receitas.
E esta ebulição criativa aparece nas comissões de prêmios: nas reuniões, sempre há o reconhecimento de obras marcantes, colaborações destacadas, artistas do gesto que fizeram diferença na temporada. De fato, o campo de trabalho hoje é imenso. E necessário. É impossível entender a cena atual somente a partir da equipe criativa moderna tradicional – diretor, cenógrafo, iluminador, figurinista. Até mesmo para analisar a performance dos atores, é preciso ter noção de sua história físico-expressiva, além de considerar a linha de trabalho do artista encarregado da, digamos, “direção do corpo”.
Agora mesmo – para tornar mais precisa a visão da riqueza deste espaço de trabalho – surgiu o anúncio da Conferência Nacional Laban 2018, Sistema Laban Como Prática de Liberdade. O encontro acontecerá no Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, de 1 a 3 de Agosto, com o objetivo de reunir pesquisadores e artistas nacionais Labanianos. Importante perceber a oportunidade e a coerência. O conhecimento de Laban importa para a análise das peças teatrais do presente – um exemplo é a bem sucedida A palavra progresso na boca da minha mãe soava terrivelmente falsa, da Multifoco Companhia de Teatro, um coletivo cujo processo de trabalho incorpora múltiplas linguagens cênicas, em especial o circo e a dança contemporânea – e Laban. A bem sucedida direção de movimento de Palu Felipe só pode ser perceptível na sua densidade a partir do conhecimento de Laban.
Com certeza a criação de uma nova categoria nos prêmios envolve mais do que o reconhecimento da importância da atividade. A rigor, há um lado prático e financeiro, e há também o lado da pergunta difícil, rascante – há mesmo em cada temporada um volume razoável de participações, capaz, este volume, de justificar um olhar específico para os artistas envolvidos? Existem outras categorias esquecidas, que se tornaram obrigatórias na cena de hoje e permanecem injustiçadas? O que fazer – já que o tema é corpo – com o vasto terreno de habilidades do musical? O que fazer com o próprio musical, menosprezado em muitos ambientes, dominados ainda por um estranho preconceito reducionista da arte? Debate aberto, soluções adequadas virão. Importa reconhecer o valor de todo o trabalho de criação na esfera da arte.
Este mês de julho, por sinal, começou com uma grande perda na área do teatro, uma perda triste, mas propícia para iluminar um pouco mais o debate – o ator Peter Land anunciou a morte de sua esposa, a coreógrafa inglesa Gillian Lyne (1926-2018). Bailarina de formação, longeva, ela foi autora de uma lista admirável de trabalhos. Entre tantas atividades, ela assinou direções e coreografias – e recebeu duas indicações ao Tony pela criação da coreografia de Cats e de O fantasma da Ópera. O fato de serem musicais ajuda a ampliar o alcance da reflexão: Cats em particular é um argumento decisivo para apontar a força e o impacto da presença física do ator hoje. E os musicais, com certeza o teatro do nosso tempo, são o lugar de exigência máxima do corpo enquanto capacidade expressiva.
Vale assinalar um detalhe curioso. O talento natural para a dança de Gillian Lyne teria sido descoberto muito cedo, por um médico, consultado por sua mãe, preocupada com o rendimento escolar da menina. O médico teria pedido para falar a sós com a mãe e ligou o rádio – sozinha, a pequena dançava ao ouvir música, extravasava a sua dança interior. O médico recomendou aulas de dança e o talento foi cultivado. A dedicação intensa à sua arte foi a tônica de sua biografia, a partir de um pequeno gesto de reconhecimento, capaz de mudar toda a orientação de sua vida.
A reflexão a respeito da proposta formulada pelos profissionais do corpo, neste país dançante e gingado, deve considerar temas desta ordem. Sim, em algum grau ela está ligada ao bem das pessoas e ao bem do país. Pois, no final das contas, o que está em discussão é mesmo o valor mais simples e irredutível: o valor das pessoas. A partir do respeito às necessidades delas, é possível chegar ao bem social e à função mais nobre da arte em nosso tempo. O debate envolve tudo – a necessidade da arte, a redenção humana e a elevação sensível. Em tais condições, parece natural que a voz do corpo, soante no nosso tempo, livre da velha escravidão às palavras, ecoe forte, ocupe mais espaços – como os espaços dos prêmios. Afinal, como se pode ver ao redor, por todos os palcos, uma arte da cena intensamente corpórea é a condição do palco hoje. E ninguém duvida: ela diz algo importante sobre a vida atual, no país e no mundo.
Conferência Nacional 2018- Sistema Laban como prática de liberdade!
1 a 3 de agosto no Centro Coreográfico da cidade do Rio de Janeiro
Rua José Higino, 115 – Tijuca
Inscrição online:
www.evenbrite.com.br (digitar laban2018brasil em pesquisar eventos)