A gripe e o pecado: longe do teatro
Dizem que tudo está escrito nos astros: não adianta espernear, pois na hora do nascimento cravaram um mapa e pronto. No entanto, o ser humano está longe de ser um mecanismo simples. Assim, dizem outros que não, não é nada disto – estava no céu uma disposição, mas, se você não prestar atenção nos caminhos, vai tropeçar e as estrelas vão mudar de lugar. Parece que as estrelas adoram mudar de lugar.
O que posso dizer? Não sou cigana – na infância, no subúrbio, aprendi a correr de ciganas até não mais poder, pois elas, segundo o conselho dos adultos, raptavam crianças, escondidas embaixo das saias lá não muito limpas. Depois da prisão nas roupas fedorentas, vendiam as presas – ninguém sabia para que rumo. Os cavalos, ao que diziam, viravam carne seca, mas a petizada, nunca souberam explicar. Na dúvida, pernas para que te quero: ciganas, não!
Assim, não entendo nada destas previsões, conjunções astrais, ainda que namore mapas, baralhos confusos, predições, sortilégios. Que graça teria a vida se não tentássemos supor que já está tudo decidido, é só virar a carta e pá? Uma cartomante aqui, um descarrego ali, vida que segue – e vai sempre surpreendendo.
Pensamentos dispersivos. Sempre acontece quando sou obrigada a ficar de cama. Peguei um livro, mas, o volume sensacional, excelente comparsaria para a gripe, não me livrou dos pensamentos saltitantes. Ao contrário. Piorou tudo. Pois no tal livro descobri que a data de nascimento do Rio de Janeiro é outra. E, portanto, a carta astrológica da cidade também é. Vivemos enganados sob estrelas falsas!
A descoberta, segundo este livrinho tinhoso que me pegou com mão de cigana fora de hora, seria do meu colega de Doutorado, o brilhante historiador da saga carioca, Nireu Cavalcanti. Infelizmente vejo pouco o velho colega de turma, distante dos saraus doutos da UFRJ. Felizmente, leio muito. E recomendo o colega, ele faz descobertas deliciosas. Mas não sei onde ele publicou – se é que já publicou – a nova certidão do Rio.
Enquanto procuro, para recomendar, vale indicar a leitura deste livro outro novidadeiro, sinuoso como os velhos caminhos da cidade maravilhosa. Trata-se do último romance de Alberto Mussa, A Biblioteca Elementar. Prepare-se: você vai ler de um sopro. Ou de um tiro. Sim, é um romance policial. E a graça é que se passa no Rio de Janeiro do século XVIII.
O livro é ardiloso como um contrabandista cigano, envolve a vítima por todos os lados, encena enganosas facilidades. Há um crime por desvendar – e o convite vem logo de saída. Há um passeio encantador pelas ruas, pelas paisagens humanas e sociais da pequena cidade do Rio de Janeiro. Há o misterioso mundo cigano acotovelado nos limites da cidade, logo ali na atual Rua da Carioca, a velha Rua do Egito, depois Rua do Piolho.
Mas há, em especial, um autor inteligente, preocupado em dividir o seu prazer com o leitor, como se a escrita fosse uma parceria inusitada. Assim como o cidadão contempla o seu mapa astral, assim ele pode e deve ter consciência de sua urdidura. O olhar inquieto também deve surgir diante das páginas escritas. Sinais da invenção literária afloram aqui e ali no texto, com muito humor. E várias perguntas ficam no ar.
Qual teria sido exatamente o destino traçado nos astros para esta bela cidade? Mussa afirma, a partir da aludida pesquisa de Nireu Cavalcanti, que a fundação do Rio aconteceu, na verdade, no dia 28 de fevereiro. A partir da voltagem erótico-sensual da trama, é para pensar que a cidade, para ele, nasceu destinada ao pecado. A Inquisição também pensava assim. Ou a linha bem sensual do romance significa apenas uma adesão a um gosto de hoje?
A galeria de tipos e de personagens presente no livro é sensacional – vários com razoável inspiração histórica, sempre coloridos pela notável capacidade inventiva do autor. As páginas, contudo, são poucas para uma gente tão sedutora e você leitor, ficará com a incomoda sensação de que eles pulam do texto e tentam passear um pouco ao seu redor, na sua vida – querem viver mais. No fundo, a a leitura do texto traz uma pergunta embutida numa queixa – por quê um esqueleto tão robusto para tão poucas carnes?
Sim, a história é seca, rápida, surpreendente e fulminante. E poderia se estender, se desdobrar por, ao menos, umas cinquenta ou cem páginas a mais. Como seria uma festa na Rua do Egito? Como era o cotidiano das casas, a vida miúda das mulheres? E o convento, com sua ordem terceira? Como segredos tão sombrios conseguiam ser guardados em casas de portas abertas? Quais eram os livros mais preciosos da biblioteca, preferidos pelas duas mulheres?… Como foram reunidos e ficaram juntos, numa época tão iletrada?
Como podem perceber, a obra é centelha no pavio, dispara o gatilho da curiosidade. De fato e de foco, uma circunstância me deixou maravilhada, condição bem adequada para uma cidadã devota da cidade maravilhosa ao ler um livro tesouro sobre o Rio. Foi o papel, na trama, da Igreja da Ordem Terceira da Penitência, a minha igreja de coração no Rio, muito embora considere uma graça a de Nossa Senhora do Brasil. Mas, a da ordem terceira…
Acontece que, no romance de Massa, a Igreja da Ordem Terceira tem um papel central. E que papel. Desconfio que, a bem da verdade, ela não era um emaranhado de ruínas em 1733, já estava edificada nas datas escolhidas para a ação. Basta uma consulta rápida à história da construção do templo publicada na página do convento. Mas literatura é liberdade, a hipótese sugerida pelo autor é saborosa e contém uma lógica cigana, transgressora, que capturou a minha atenção.
O que me deixou zonza de verdade foi o fato do terreno da igreja, ainda não completada para o olhar do autor, ser o palco de tórridos encontros sexuais. Encontros adúlteros bastante peculiares, impossíveis de detalhar para não revelar partes vibrantes da trama (alguns leitores se incomodam com isto e tudo o que eu desejo é que corram para ler o livro). E por que fiquei zonza?
Quem conhece a igreja, muito modestamente retratada na foto acima, sabe do que estou falando. Ela é um alucinante convite para o êxtase: conseguiram fazer uma obra de arte tão intensa que o efeito é arrebatador, dá ao corpo e à alma a sensação de levitar, como quis fazer Wagner com a sua música, ou Dante, com o fecho luminoso da Divina Comédia.
E o que tem isto? No meu entender, é de uma cortante inteligência transgressora fazer supor que um templo tão inefável possa ter brotado do solo dos desvarios mais descabelados, orgiásticos, dos sentidos. Há, por aí, uma questão pessoal, confesso. A história é rápida, mas interessante, para indicar o poder de mobilização sensível que a escrita de Mussa consegue acionar. Ao menos no meu desvario!
Acontece que eu conheci a igreja por volta dos meus doze anos. Eu era católica, bem devota, por livre escolha. Conheci no curso da minha mãe (minha mãe tinha um curso de artes femininas) uma jovem mulher deslumbrante, recém casada, mas muito desencantada com o casamento, ex-modelo-manequim. Casou com um funcionário mediano de alguma coisa, morava no subúrbio por causa disto, morria de tédio e era uma leitora compulsiva.
Eu achei a figura muito singular: maquiadíssima, sempre na moda, era bem extravagante. Como eu era leitora compulsiva, ficamos amigas. A diferença é que ela lia livros da biblioteca rosa para moças e eu lia José de Alencar – estava dedicada à leitura da obra completa (!!). Logo ela me emprestou livros muito agradáveis, esvoaçantes como borboletas, adoráveis para quem, menina ainda, brigava com as frases alencarinas.
Muito bem: um dia, depois de violenta noite de briga, a minha amiga ficou viúva. O marido morria de ciúmes insuportáveis, doentios, bateu muito nela, tentou matá-la com uma garrafa quebrada e se feriu. Ele era hemofílico, sangrou, morreu. No bairro correu o burburinho de que ela, de alguma forma, o matara. Mas nada foi provado contra ela, ela se mudou e, muito minha amiga, me convidou para uma missa em intenção da alma do morto.
Sim, a missa foi na Igreja da Ordem Terceira da Penitência. Eu já andava pelo Rio, fui sozinha e, quando passei a soleira, entrei numa das maiores crises de heresia de todas as crises vividas na minha vida. Esqueci morto, amiga, viúva, Deus, igreja, padre, o que fosse. Mergulhei na eternidade da celebração do absoluto flutuando, aérea, em suspenso naquela luz dourada, submersa num mundo de brocado de ouro. Não, não dá para traduzir em palavras. Foi a missa mais deslumbrante da minha vida, completamente sem missa.
Portanto, o que eu posso dizer esta semana nesta coluna, diante deste livro tão especial sobre o velho Rio brejeiro e pecador, diante de uma cidade que desaba e de um país que treme e hesita? Primeiro, atenção: a data de aniversário da polis mudou! Depois, lembrem bem, por aqui sempre estiveram todos dispostos para cair no pecado e para abraçar a traição. Mas, não mudou, a carta astrológica?!? Vamos entrar na linha e levar o pecado para a literatura?
Não, nada, disso aí. O que importa mesmo? Importa que eu fiquei de cama, traí o teatro e fiquei muito feliz. Portanto, comprem o livro, leiam, por favor. É uma excelente homenagem à cidade. E à literatura. E aos estudiosos e pesquisadores do Rio. E à igreja mais deslumbrante que quaisquer olhos já viram. E se você não estiver gripado, de cama, aproveite a primavera e suas brisas ainda amenas – vá até lá, visite a igreja. E construa a sua versão a respeito destas loucuras transgressoras: embarque na delícia que é a carioquice na literatura. Enquanto ainda deixam…
MUSSA, ALBERTO.
A Biblioteca Elementar. Editora Record, 192 páginas. Mapa e cartas celestes: Mayara Lista.
BREVE NOTA HISTÓRICA
Sobre a Igreja da Ordem Terceira, há registro de que em 1726 Manuel de Brito entalhou o retábulo e o revestimento das paredes da capela mor. Em 1732, fez os púlpitos e Manuel da Costa Coelho teria feito o douramento da capela-mor. Portanto, em 1733 não havia um refúgio em ruínas para noites vadias.
https://patrimonioespiritual.org/2015/07/25/igreja-da-ordem-3a-de-sao-francisco-da-penitencia-rio-de-janeiro-rj/
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O amor ao teatro e a paulicéia zampariana
Eu te amo, ó São Paulo! – e este amor é tão mais sincero do que tudo, por uma razão bem simples: sou carioca. Portanto, em nome de uma esquisita rivalidade incentivada por tantos há séculos, eu deveria espumar ódio, ranger os dentes e elencar um rol interminável de defeitos contra a enfumaçada megalópole. No entanto, a realidade é outra, o meu coração saltita feliz diante da agitação louca daqui. Ó, São Paulo! Que as suas luzes façam sempre a minha felicidade!
Confesso, sem medo: a minha vontade é bailar pelas ruas, como se doida eu fosse. Alguém pode perguntar, aflito, a razão de tamanha euforia. E eu direi que, por enquanto, é o teatro, sim, só o teatro, pois não tenho tido tempo na vida para averiguar se a cidade tem outros encantos tão irresistíveis quanto o teatro para oferecer. Deve ter, suponho, mas não quero nem saber, pois se eu conhecer algo mais assim tão arrebatador, vai ser um perigo, me mudo.
Recentemente, graças a uma aluna estudiosa, voltei mais uma vez as ideias para Franco Zampari (1898-1966). Não dá para pensar o teatro do Rio e o de São Paulo sem passar por ele, quer dizer, sem passar pelo TBC (1948-1966?). Zampari instituiu um modo novo, louco, absurdo, extemporâneo mesmo, de produzir teatro, com um padrão econômico delirante, dissociado do real. De certa forma, ele quebrou o padrão antigo, das velhas companhias dos primeiros atores, formulado no Rio, sem botar nada no lugar, pois o modelo que jogou na praça era inexequível. Uma via de exceção.
Este pode ser um debate longo, capaz de gerar uma forte controvérsia. E, quem sabe, pode ser até bem divertido. A Companhia Maria Della Costa (1948-1974), gerenciada por Sandro Polonio, seria um contraponto no exame do caso, ainda que o modelo proposto por Sandro, uma espécie de modernismo moreno, não tenha sido reconhecido na época. Bem ao contrário, até: Sandro e Maria apanharam muito, injustamente. Mas não é este o foco aqui. O que importa frisar é que, como herança do redemoinho de busca de um teatro precioso, de preço irreal, capitaneado por Zampari, surgiu uma carpintaria esmerada de trato da cena. Poderiam cogitar dizer aqui que a matriz foi a cabeça italiana, dos diretores italianos, mas eu discordo – defendo que a origem é a loucura absoluta de Zampari. A ostentação levou ao refinamento formal.
Esta forma cuidada se tornou o berço do teatro paulista. As produções paulistas surpreendem sempre: elas podem ter texto ruim, atores canastrões ou artificiais, direção pífia, mas a cena em que este todo precário se move… é sempre preciosa. O acabamento dos cenários, a qualidade dos figurinos, a geometria da luz, toda a cena, enfim, é, digamos, zampariana. Vale criar o novo adjetivo e honrar a origem.
No Rio, no entanto, o efeito foi outro. A partir da aventura tebecista, morreu o estilo preconcebido de cena e de solução de palco dos velhos atores, mas não se afirmou o esmero zampariano. A cena tendeu a se refugiar na exploração do encanto dos atores ou na inventividade dos diretores – palco nu, mal vestido e mal acabado não é coisa rara. O padrão zampariano não vingou na praia carioca. Despojamento e irreverência se tornaram rimas fáceis para descuido, desleixo, falta de acabamento. A consciência da cena como espaço de construção artística não se tornou uma constante, um a priori. Em alguns casos, a impressão que se tem é que os artistas pensam que a plateia vai olhar apenas para os atores e tudo ao redor pode ser descuidado.
Nestes dias agora, em São Paulo, rápidos demais, mesmo com baixo índice de espetáculos vistos, este diagnóstico, que me aparecera há algum tempo como intuição, se confirmou. Vi quatro espetáculos em três dias. Por total falta de ingresso e de acesso à produção, não consegui ver Chaplin, no Espaço Tomie Othake, montagem a respeito da qual eu teria interesse em escrever. Em compensação, fui ver um espetáculo muito ruim, fraco mesmo, tão fraco que não desejo me estender na sua abordagem. No entanto, vale a ressalva: apesar da cena ruim, o acabamento da produção era grandioso.
Os outros trabalhos vistos merecem destaque: obras admiráveis. Fui ver Anatol, de Arthur Schnitzler, direção Eduardo Tolentino, montagem do grupo Tapa, no excelente Teatro Paulo Eiró – uma casa de bairro de qualidade bastante boa, sem equivalente no Rio de Janeiro (aliás, os teatros de São Paulo merecem um estudo à parte). A oportunidade da encenação é surpreendente. O tema, tratado numa coleção de histórias, focaliza o universo das conquistas masculinas, o donjuanismo. Leva ao debate acerca da liberdade no afeto, a natureza verdadeira do amor, o direito ao uso e ao abuso das mulheres, enfim, à visão masculina do amor e à camaradagem entre os homens. A montagem apresenta o original num formato de painel teatral muito interessante.
As tramas passam em sequência progressiva, com o elenco armando e desarrumando os cenários, em composição sempre pontual, sugestiva, até chegar ao desenlace, à cena vazia e à solidão, no frio e na neve, na linha de Alphie (Como aprendi a amar as mulheres). Com ótimos desempenhos – a direção de ator de Tolentino é sempre um deslumbramento para quem gosta de teatro – a qualidade da cena estimula o pensamento a respeito de um tema quente atual, os limites do direito de cada um do uso do outro.
Uma outra encenação cortante materializa uma verdadeira celebração em grande estilo da arte do palco, em cartaz no SESC Vila Mariana. Deverá – vamos torcer – vir para o Rio, pois trata-se de um trabalho excepcional de arte e de contemporaneidade. Trata-se do icônico Vincent Rider, de Philip Ridley, encenação de Darson Ribeiro dotada de um grau de resolução cênica de tirar o ar. Não vou estender os comentários aqui, pois pretendo escrever uma crítica da peça. É preciso assinalar, contudo, que o cenário sufocante é varrido por uma interpretação de abalar a estrutura do mundo, de Sandra Corveloni, a mãe de um jovem assassinado de forma bárbara por ser homossexual.
Finalmente, fiz questão de ver Natasha, Pierre e o Grande Cometa de 1812, de Dave Malloy, direção brasileira de Zé Henrique de Paula, espetáculo apresentado no 033 Rooftop, espaço alternativo do Teatro Santander. Colorido, dinâmico e divertido, O Grande Cometa tem o mérito de sugerir o debate a respeito da estrutura do espaço cênico teatral. De repente, é como se o Teatro de Arena casasse com o TBC e a união desse certo – fossem felizes para sempre.
O libreto apresenta uma linha de ação dramática bastante convencional, enquanto dramaturgia: é apenas uma história de amor. Mas, convenhamos, que amor… Em resumo, a partir de um recorte da trama de Guerra e Paz, de Tolstoi, narra-se com razoável humor e certa irreverência formal uma história de amor ousada para 1812, com a mocinha traindo o noivo e encantando, ao final, o melhor amigo do ex-noivo.
Brincando com a possibilidade de ser múltiplo, própria do teatro, o espetáculo aposta nesta visão inventiva do mundo – se o cometa pode mudar os seres humanos, por que os seres humanos não podem mudar o teatro? – a cena pergunta. E responde com euforia, através de muita dança, música, canto, dramatização cantada e dançada. O espaço ajuda, o jogo de cena se espalha por cinco áreas de representação e duas passarelas. A estrutura permite que as cenas aconteçam em diferentes cantos, sejam vistas por ângulos variados, ainda que o fio condutor permaneça claro e contínuo, progressivo. Isto significa que não há uma visão única do espetáculo. Um pouco como se o século XIX trouxesse uma forma caleidoscópica de ver o mundo, a forma que prevalece no nosso tempo, uma era de multiplicidade de visões e de opiniões.
Aliás, vale observar a dimensão do novo em cena – a ação dramática é praticamente toda cantada. Mas o canto dos atores, contudo, apresenta variações muito interessantes, oscila entre o dramático e narrativo. Em vários momentos, em especial na abertura e no encerramento, no Baile e em Balaga, o conjunto dos atores ganha a cena e instaura um reino feérico de luz e de plenitude estética humana, festa para o olhar. A sensação é inusitada, com palco e plateia se entrelaçando. A montagem vale uma ida a São Paulo, pois dificilmente poderá ser apresentada no Rio.
Nestes três casos, duas características são decisivas: o preciosismo cênico e a intensidade-densidade atoral. O preciosismo cênico deve e pode ser vinculado a Zampari, seria a sua grande herança positiva. Ele aparece até mesmo no seu esmero maior, a preocupação de trabalhar com grandes diretores, prática que instituiu um grau de exigência sério, no mercado paulista, para a definição da função de diretor.
Já a qualidade dos atores, sua intensidade-densidade, tudo indica que precisamos reconhecer como coisa nossa, marca da identidade nacional. Na área da História do Teatro, ainda não sabemos explicar este fenômeno. Temos um teatro que foi inaugurado por um grande ator – pois nenhum autor do seu tempo alcançou a força artística de João Caetano (1808-1863). Talvez a garra da alma brasileira tenha um papel neste campo. E, afinal, a força e o ímpeto dos atores viabilizou, ao que tudo indica, a sobrevivência do palco nacional, após o encontro da cena com o extremo desmedido que foi, exatamente, a figura de Zampari.
Há, então, um subtexto caudaloso sob as palavras, sob as letras. O subtexto diz de uma força paulista peculiar, a capacidade de gerar um teatro de impacto, importante mesmo para a sensibilidade do país, desmedido como o jeito de ser-Brasil, um jeito comum a todos da terra. Só que, diante de teatros oscilantes por todo o território, São Paulo construiu um mercado de teatro de alta voltagem. Lado a lado, há o teatro-diversão, bem comercial, o teatro cultural, o teatro de arte, o teatro de invenção. Todos os gêneros desfilam na cena, ainda que a velha ala intelectual tacanha torça o nariz para certas linhas: até isto há por lá.
Na sala de espera de uma das montagens, presenciei pessoas comuns debatendo entre si as peças que viram recentemente com extrema propriedade e um interesse comovente. Nos diferentes teatros, mesmo na tal peça ruim, não falta público. Em consequência, nós, forasteiros, deixamos de ser sedentários e nos transformamos numa espécie de inversão dos velhos bandeirantes, agora em busca do ouro da alma de São Paulo. Como se contemplássemos minas faiscantes, ficamos extasiados diante de palcos paulistas, tão prodigiosos. Corações na mão, não existe saída: só nos resta amar São Paulo.
Anatol
Teatro Paulo Eiró
Sextas e aos sábados, às 21h
Domingos, às 19h
Ingressos: R$ 20,00/R$ 10,00 (meia entrada)
Ingressos somente na bilheteria do teatro
(aberta com uma hora de antecedência)
Até 30 de setembro
Avenida Adolfo Pinheiro, 765 – Santo Amaro
Duração: 110 minutos
Classificação: 14 anos
Vincent River
Teatro SESC Vila Mariana
Categoria: Drama
Classificação: 12 anos
Duração: 1h 30m
SESC Vila Mariana
R. Pelotas, 141 – Vila Mariana – Tel: 5080-3000 Apresentações: Sex 20h30, R$20 | Sáb 18h, R$20 Temporada: A partir de 17/08/2018 até 29/09/2018
O Grande Cometa
Teatro Santander – 033 Roof Topper
Sexta 21h30, Sábado às 16h00 e 21h30, Domingo às 19h30
Classificação: Não recomendado para menores de doze anos
Duração: 2h30 (com 20 minutos de intervalo)
Ingressos: De R$ 65,00 a R$ 160,00
Experiência Gastronômica Russa (cardápio com entrada + prato principal + sobremesa): R$ 130,00 (compra exclusiva pelo site)
Tagged: Companhia Maria Della Costa, Darson Ribeiro, Eduardo Tolentino de Araújo, Franco Zampari, Grupo Tapa, Sandra Corveloni, Sandro Polônio, Sesc Vila Mariana, Teatro Paulista, Teatro Paulo Eiró, Teatro Santander, Zé Henrique de Paula
A inutilidade dos atores, a eternidade do sensível
Os atores não servem para nada. São poeiras de arte descartáveis, miudezas que se perdem no tempo, desaparecem. Existem, pulsam, criam, arrebatam, sacodem os humores e puff!, para nada. O seu destino é ser esquecido. Logo, são inúteis.
Não, não acenem com a ilusão de que o cinema, a foto ou a televisão mudaram este jogo, pois mesmo quando impressos em imagens etéreas em movimento, o fim de todos será, de verdade, desparecer. O ator filmado está ali, mas fica ultrapassado – espere passar um tempo para olhar outra vez e verá – o danado sumiu. Quem é esta criatura? A resposta: ninguém. O ator filmado é tão volátil como o álcool canforado.
Injeção de álcool canforado foi um remédio – nem sei se é correto chamar de remédio – famoso no século XX. Não é do meu tempo e gastei horas de trabalho para descobrir do que se tratava. Ao que parece, existiam aplicações de álcool canforado, como injeção, para levantar o ânimo caído de uma pessoa. Algo semelhante à Coca-Cola com café, na minha geração, tão intragável que a criatura não dormia.
Vi uma citação do produto numa declaração pessimista de Procópio Ferreira (1898-1979). O grande ator dizia que o teatro, lá pelos idos de 1940, estava morto. Tão morto que mesmo injeções de álcool canforado seriam insuficientes para reanimá-lo. Parece que a nota ferina era para acertar Sergio Cardoso (1925-1972), a grande revelação do momento, que teria o hábito de se espetar para ter a energia incandescente, furiosa, despejada por ele no palco a cada noite.
Fiapos de nada
Um oco cintilante nos mantém em suspenso: inventamos a civilização do vazio. Um espaço etéreo, alienado da chance de ser, intensamente branco, preenche o nosso olhar e nos une – eles, os atores, e nós, a plateia. A relação palco e plateia, contudo, não é rompida, estamos distantes, dentro de um teatro, para ver teatro, ainda que a ação comece como se estivéssemos dentro dela. A ação pretende lançar no espaço, em suspenso, as nossas almas, para nos levar a perguntar sobre a densidade do existir e do ser.
A função da noite é mais do que nobre – em cena, está esta joia de dramaturgia sublime, Nerium Park, de Josep Maria Miró, na concepção de um diretor poeta dotado de uma assinatura incandescente, Rodrigo Portella. A temporada acaba amanhã, no Teatro Glaucio Gill, corra para ver, não perca por nada deste mundo. É teatro em tom maior, com uma encenação brilhante de um daqueles textos em que há o propósito intenso de indagar sobre as razões do nosso tempo.
Lágrimas amargas brasileiras
Chorei todas: chorei de secar a alma, para ver se ela vira múmia e, desidratada, suporto melhor este meu horrendo país. Desculpem, posso falar: sou jacaré com cobra d’água, como a elite local canhestra gosta de dizer daqueles nativos sem berço e brasão. Sim, sou verde-amarela, as cores escolhidas por D. Leopoldina para o país. Sou dessas pessoas.
Por isto, escrevo chorando. Sim, senhor Ministro de Estado e tantas Donas Marocas governamentais incompetentes, sou uma das viúvas apaixonadas do museu. E posso lhe informar: a sua batata está assando. O banquete de vocês, corvos do povo, está chegando, quentinho. Aproveitem, empanturrem-se.
Sou suburbana e, como todos os suburbanos nascidos na década de 1950, tive uma formação excelente em escola pública e fui impregnada por um nativismo pegajoso herdeiro do Varguismo. Fui guarda da bandeira, escrevi e recitei versos para a pátria mãe gentil e recebi muita educação cultural nos esplendorosos museus do Distrito Federal.
Meu pai, entre todas as amantes que cultivou com esmêro por toda a vida, tinha predileção por uma bronzeada e esguia senhorita, a mui heroica e leal cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Ele não vivia sem carro e adorava enfiar os filhos no calhambeque da vez para flanar por toda a cidade. Um dos altares da pátria cidadã que comecei a frequentar bem cedo, levada por ele, foi a Quinta da Boa Vista e o Museu Nacional.
A grande revolução das mulheres
Você sabe muito bem que existe um poder feminino, desde sempre, sinuoso, silencioso, capaz de mudar as formas do mundo. Sim, você pode dizer que ele não é silencioso, ele é amordaçado, silenciado, impedido de gritar e de se projetar. Vou concordar com você. Em especial depois de ver Para não morrer, um cartaz relâmpago que passou fulminando as sensibilidades ali no Teatro Poeirinha.
Você não viu? Pois aguarde, em breve a peça estará de volta ao Rio. Preste atenção e não perca – trata-se de uma experiência de arte única, rara, privilegiada. O centro do trabalho é um inventário rasante do poder feminino, da caverna aos nossos dias, por todo o mundo, mas, em especial,
na América Latina. O convite é objetivo: a imersão sensível nas tramas deste poder.