Teatroville
Alguma vez na sua vida você viveu a experiência luminosa de flutuar no espaço infinito, liberto de toda materialidade mesquinha, entregue ao mais requintado jogo de ideias? Não, não é bebida, nem droga, nem alucinação ou pancada na cabeça – é teatro, puro teatro, na sua quintessência mais etérea, o velho e bom teatro amante dos humanos, soberano absoluto das almas.
É Dogville, adaptação teatral do filme de Lars Von Trier, assinada pelo genial diretor Zé Henrique de Paula, cartaz do Teatro Clara Nunes. Corra para ver e leve a sua turma: pode ser a única experiência teatral absoluta da sua vida. Você não vai esquecer nunca mais. E vai sair do teatro aturdido, pensando no que é que você faz na sua vidinha miúda com você. É o velho teatro revisto e sintonizado com as ferramentas criativas do nosso tempo, um mergulho na cena envolto em imagens fugazes de vídeo e filmagem, música rascante, vertigem de luz.
A cena árida de saída vai conduzir a sua percepção para um lugar trevoso, apagado, um galpão abandonado, um vazio humano disfarçado de cidade pequena. Um jogo teatral requintado começa: o palco é um palco, está quase nu, mas apresenta e representa. Assim, diante da plateia há um espaço vazio que é mesmo um palco, marcado por estruturas móveis, telas, vai e vem de cadeiras: ele é uma cidade. Impressiona a textura das cores, sombrias, do cinza ao preto, cores sujas, uma espécie de lama original, sobra de incêndio, coisa de lixo.
Um jovem mestre de cerimônias, quase um oficiante de um ritual de iniciação, frio, calculista, distante, protagonista fantasma, narra a ação dramática, do prólogo aos nove quadros, e comanda a ação num sentido surpreendente, para o desenlace. Vestido de preto e sem cara de sujo, o narrador construído por Eric Lenate indica a excelência da direção de ator de Zé Henrique de Paula graças a uma nota comum a todo o grande elenco. O desenho físico e gestual combina corpo natural e corpo simbólico de uma forma muito ardilosa, num convite permanente para a passagem do real ao simbólico.
Eric Lenate explora uma sinuosidade de corpo – e de alma, vale acrescentar – adequada ao seu papel de orquestrador supremo da história, encarregado da sentença definitiva a respeito de tudo. O seu personagem é duplo – numa evocação dos coloridos diabólicos dos autos medievais, ele transita como uma figura em negro, com filigrana vermelho, para narrar, mas se torna um misterioso poder em vermelho-sangue sobre tom negro, para tecer os meandros do desfecho impactante.
A trama é simples. A rigor, trata-se de uma fábula, estruturada como um ato de teatralidade profunda, sob uma clara influência de Brecht e Pinter, com um alcance moral direto. A mistura é inusitada, pois o primeiro buscava mostrar a razão e a verdade em cena, o segundo banhou o palco em desrazão plausível. Aqui o foco é o sonho de felicidade do indivíduo-cidadão. Mas há algo mais: o texto é inegável texto do nosso tempo, deste novo século, tem um cálculo corrosivo nosso na sua construção, um tom de nihilismo e de ousadia intelectual – o sonho é impossível.
O formato determina um enfrentamento desabrido da ideia de humanidade, revelada como tecido corroído, como se a moralidade pudesse ser apenas patrimônio de cada um, portanto impossibilidade. No meio dos cachorros, a virtude é filha do gangster e, no fim, o poder acaba por ser um acordo entre os dois. Explosivo, nitroglicerina na alma.
A proposta, basicamente, é a de oferecer um caminho épico-dramático de deslumbramento para que você, afinal, pense o seu lugar na vida em relação aos valores mais nobres do mundo ocidental. Portanto, há uma lição, como soe ocorrer nas fábulas. Para chegar até ela, o narrador conta a história de uma cidade cachorra, perdida no mapa, povoada por uma gente lixo, cachorra, esquecida de si e do mundo. Uma gente simples que poderia ter alguma envergadura civilizada.
Ilhas humanas desgarradas no seu fim de mundo, estes seres tão pequenos precisam de um outro personagem para conduzir a ação, no oco da cidade: um escritor-cachorro, sem livros e sem certezas, interessado em demonstrar uma improvável grandeza humana do lugar, Tom Edson. A figura, esculpida em cena com roupa farfalhante de cortante colorido em tons de terra, combinação desconcertante de barro e lama, impacta graças ao desempenho estruturado por Rodrigo Caetano, uma mistura sutil de parvoíce e cinismo. Espécie de co-protagonista, também diabólico porque inconsequente, é ele quem aciona a imaginação da plateia no grau delirante necessário: deseja demonstrar como as pessoas de Dogville são, na sua essência, boas.
Para cumprir a sua obra, ele é contemplado com a divina aparição de Grace – a graça feminina de bondade e ponderação, manipulada em requintada alquimia por Mel Lisboa. Arrebatadora, a atriz se impõe como o anjo do bem, delicado emissário metafísico capaz de suportar as misérias terrestres mais brutais em favor da comprovação da grandeza humana. Irresponsável por si, no seu idealismo tonto.
Ela é uma fugitiva e, fugidia, busca abrigo contra misteriosos perseguidores. Não deseja voltar ao mundo lá de fora. A sua aparência é um híbrido, estopim para incendiar as almas pequenas. É tanto a imagem do desejo, latente na roupa alinhada provocante, no batom, no tom solar, dourado, no vermelho paixão. E é também a pureza da graça, na sua lourice de tranças. De certa maneira, a trama apresentada contém uma revisão de A Alma Boa de Setsuan, de Brecht, um exercício teatral para delinear os riscos da bondade, com a visita de deuses à Terra para procurar ao menos uma pessoa boa.
Denunciada por Moisés, o cachorro da cidade cachorra, justo o nome daquele que trouxe as tábuas da lei, Grace é aceita pela comunidade por interferência de Tom. Em troca, se presta a realizar pequenos serviços para todos, ainda que, de início, deles eles nem precisassem. Logo a bela moça inexperiente se transforma numa escrava branca barata, aviltada, torturada, massacrada, pois teria se tornado perigoso abriga-la graças à procura intensa da polícia. As maiores barbaridades são cometidas contra ela – e perdoadas por ela.
Cada habitante, mesmo o menino imberbe, representa um pecado contra a ordem humana. Desfilam em cena o egoísmo, a avareza, a mesquinharia, a inveja, a mentira, o autoritarismo, a luxúria, a ira, a preguiça, a vaidade… o cortejo das baixarias capazes de reduzir a humanidade ao mais sórdido pó é pródigo. Haveria uma fina fresta, totalmente pessoal, por onde esgueirar-se neste jogo para fugir, mas isto significaria retroceder diante das próprias certezas. Quer dizer, aceitar o jogo do poder, pois o poder, a ordem de comando, humana, não parte necessariamente de uma força do bem. O poder, ao olhar apenas o seu próprio interesse, é um tipo de gangster.
Trata-se de uma obra monumental de ourivesaria teatral. Para alcançar este feito, Zé Henrique de Paula, um dos maiores diretores brasileiros da atualidade, fino desenhista da ação em cena, desde a marcação, no espaço, até a configuração do rol das intenções, no fluxo etéreo, recorreu a um elenco capaz de transportar todo e qualquer mortal aos céus. São texturas preciosas de expressão, movimento, irradiação de aura, percepção de conjunto, doação pública.
Fábio Assunção, virgem de teatro, entrega toda a sua força expressiva para a arte e é de lamentar o tempo que perdemos com a sua distância do palco – o seu Chuck reúne brutalidade, ignorância, carência, inteligência perversa num jogo sutil e multifacetado. Bianca Byington concilia a sua característica delicadeza inefável com o desespero, o egoísmo, a ausência maternal e a cegueira existencial de Vera, num exercício exemplar de não ver o próximo. A força telúrica impressionante de Selma Egrei transmuda-se em impactante avareza, transubstancia-se no ícone perfeito da mulher má. A naturalidade do menino Dudu Ejchel, na construção de Jason, é uma ácida insinuação de que a má fé pode ser erguida desde cedo.
Enfim, não há qualquer possibilidade de lançar restrições ao trabalho do elenco. A direção, na condução de atores de fôlego, desenhou um elenco no pleno sentido da palavra. Todos (e cada um) se projetam na medida exata da fábula, na arquitetura precisa das cenas, no jogo com as projeções e o vídeo-mapping, como se não houvesse amanhã e o teatro maior do mundo fosse este, hoje.
Anna Toledo (Martha), Marcelo Villas Boas (Ben), Gustavo Trestini (Sr. Henson), Fernanda Thuran (Liz), Thales Cabral (Bill Henson), Chris Couto (Sra Henson), Blota Filho (Thomas pai), Munir Pedrosa (Jack McKay) e Fernanda Couto (Glória) transformam pequenos nadas em lâminas de fatiar almas. Integram uma máquina de emocionar e de fazer pensar muito requintada. No palco, espectadores omissos do mundo, cada personagem tem uma cadeira, explorada em múltiplos simbolismos. O movimento se amplia a partir da esfera corporal de cada um e, no palco vazio, como se o sórdido galpão fosse metáfora do mundo, eles sugerem pobres nichos para chamar de seus e se abrigar da verdade da vida.
A cenografia de Bruno Anselmo participa de forma muito integrada na armação deste jogo cênico – praticável, maleável, móvel, também de cores sujas, ela se presta para construir o espaço volátil e para as projeções. A luz de Fran Barros ultrapassa todas as exigências técnicas – dar visibilidade, desenhar climas, amparar as projeções – para contribuir de forma decisiva para a criação de uma comovente poesia do espaço. É arrebatador. Vale o aviso: prepare-se para voar.
Sim, poesia do espaço, importa frisar – dogville, cidade cachorra, é antes de tudo um lugar. Uma espacialidade adequada para dizer muito, alto e bom som, de uma humanidade nossa, de hoje, perdida de si, dos valores que deveriam ser a base de sua existência, deveriam ser a sua razão de ser. Isto se desejarmos de verdade preservar a vida, honrar o humano. A radical poesia cênica arrebata por falar de nós, homens sem Deus, ainda que religiosos, derrotados filhos do lixo e do plástico que nós próprios criamos, incompetentes diante do nosso mundo. Um tapa na cara, para crescer. Atenção, a temporada será curta, corra para ver. O velho e bom teatro vai te abraçar, vai te deixar voar livre, puro, num mundo de ideias interessadas em celebrar o humano, ideias teatrais essenciais.
P.S. – Depois que o teatro raptou a minha alma, nos anos oitenta, passei a ter muita dificuldade para me manter fiel à minha velha paixão cinéfila, cultivada desde a infância. Passei a trair sem dó o cinema. Perco todos os filmes. Não vi Dogville. Recomendado por uma aluna brilhante, Paula Sandroni, comprei o dvd – mas até hoje ele permanece virgem na estante. Portanto, fica a dica: esta crítica é um puro e simples olhar para o teatro.
Título Original: Dogville.
Autor: Lars Von Trier.
Direção: Zé Henrique de Paula.
Elenco: Mel Lisboa (Grace), Eric Lenate (Narrador), Fábio Assunção (Chuck), Bianca Byington (vera), Rodrigo Caetano (Tom Edison), Anna Toledo (Martha), Marcelo Villas Boas (Ben), Gustavo Trestini (Sr Henson), Fernanda Thuran (Liz), Thalles Cabral (Bill Henson), Chris Couto (Sra Henson), Blota Filho (Thomas Pai), Munir Pedrosa (Jack McKay), Selma Egrei Ma Ginger), Fernanda Couto (Glória) e Dudu Ejchel (Jason).
Idealização: Felipe Lima.
Cenário: Bruno Anselmo
Luz: Fran Barros
Figurino: João Pimenta
Visagismo: Wanderley Nunes
Trilha Sonora Original: Fernanda Maia
Realização: Sevenx Produções Artísticas.
Assessoria de Imprensa: Adriana Balsanelli
Estreia dia 2 de novembro no Teatro Clara Nunes.
Temporada: De 2 de novembro a 16 de dezembro. Sextas e sábados, às 21h e Domingos, às 20h.
Duração: 120 minutos. Classificação: 16 anos. Ingressos: Sexta-feira Plateia: R$ 80,00 (inteira) / R$ 40,00 (meia). Balcão: R$ 50,00 (inteira) / R$ 25,00 (meia). Sábados e Domingos: Plateia: R$ 100,00 (inteira) / R$ 50,00 (meia). Balcão: R$ 70,00 (inteira) / R$ 35,00 (meia)
TEATRO CLARA NUNES – Shopping da Gávea, R. Marquês de São Vicente, 52 – Gávea, Rio de Janeiro – RJ. Tel.: (21) 2274-9696
Horários da bilheteria: Segunda a sábado, das 13h às 21h. Domingo, das 13h às 20h.
TEATRO PORTO SEGURO – SP
De 25 de janeiro e 31 de março de 2019 – Sextas e sábados às 21h e domingo às 19h.
Ingressos: Sextas-feiras R$ 80,00 plateia / R$ 50,00 balcão/frisas. Sábados e domingos R$ 90,00 plateia / R$ 60,00 balcão/frisas.
Classificação: 16 anos.
Duração: 100 minutos.
TEATRO PORTO SEGURO
Al. Barão de Piracicaba, 740 – Campos Elíseos – São Paulo.
Telefone (11) 3226.7300.
Bilheteria: De terça a sábado, das 13h às 21h e domingos, das 12h às 19h.
Capacidade: 496 lugares.
Formas de pagamento: Cartão de crédito e débito (Visa, Mastercard, Elo e Diners).
Acessibilidade: 10 lugares para cadeirantes e 5 cadeiras para obesos.
Estacionamento no local: Estapar R$ 20,00 (self parking) – Clientes Porto Seguro têm 50% de desconto.
Serviço de Vans: TRANSPORTE GRATUITO ESTAÇÃO LUZ – TEATRO PORTO SEGURO – ESTAÇÃO LUZ. O Teatro Porto Seguro oferece vans gratuitas da Estação Luz até as dependências do Teatro. COMO PEGAR: Na Estação Luz, na saída Rua José Paulino/Praça da Luz/Pinacoteca, vans personalizadas passam em frente ao local indicado para pegar os espectadores. Para mais informações, contate a equipe do Teatro Porto Seguro.
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Ei, Você aí! Um milionário chamado teatro
“Existe uma superstição teatral curiosa: ela reza que não se deve propalar a falta de sucesso. Para este modo de exorcizar a maré baixa quando ela já está acontecendo, vale sempre afirmar a potência da bilheteria. Por exemplo, falar que está dando meia casa, mais ou menos, algo por aí, ainda que a sala esteja às moscas.
Pois bem: gosto desta superstição e quero sugerir a criação de uma outra. O ponto a considerar é simples – toda obra de arte contem força para encontrar o seu público. A força está em latência na obra, irradia para o espaço ao redor e os que têm identidade seguem ao encontro, enfeitiçados, para conferir. Não estou desmerecendo a propaganda, ela ajuda, mas não é a alma do negócio. A alma do negócio-teatro é a força da obra, em potência e, em contato com o público, em estado de expressão.
A superstição que eu decidi criar é simples: toda obra de teatro, para acontecer, precisa ter dinheiro de teatro, ou então… a força da obra encrua, não acontece, não abraça o público. E, aí, adeus plateia. Não, não estou falando daquelas cédulas de mentirinha, adoradas pelas crianças. Estou falando de dinheiro vivo, de verdade, gerado pelo próprio teatro, pela bilheteria.
Para os iniciantes, marinheiros de primeira viagem, uma outra superstição seria criada, a dos padrinhos de camarins. Profissionais ou grupos mais experientes, felizes com a renovação da arte, investiriam um valor bom para viabilizar a produção de estreia de novatos, sem dinheiros de teatro ainda. Haveria até uma festa de batismo.
Qual o sentido desta superstição, os jovens mais inquietos logo perguntariam? Simples como água: tornar a classe mais definida enquanto categoria produtiva, mais unida e mais independente dos poderosos e dos donos do dinheiro social. Seria, de certa maneira, uma guinada para completar, afinal, a obra iniciada (e sonhada) por Mozart.
A prática já existe – em parte. Muita gente de teatro reinveste em teatro os lucros e mesmo a riqueza pessoal, as economias, a poupança. Já vi gente vender tudo – carro, apartamento, bens móveis – para conseguir a dotação necessária para uma produção. E existem as vaquinhas virtuais, crowdfounding, das quais participam a categoria, amigos, familiares.
Mas o que considero necessário é um outro foco. A ordem agora seria profissionalizar, profissionalizar a um ponto que passasse a existir, com expressão econômica forte, o dinheiro teatral. O tema não é local, exclusivamente brasileiro. E pelo andar da estrutura do showbiz, vale pensar a hipótese de que uma configuração internacional de mercado nova pode surgir.Um diálogo novo palco-plateia, em especial ali onde o Estado não faz caso da arte, como é tradição no Brasil
Na França, acabou de ser lançada a obra Financement participatif: une voie d’avenir pour la culture?, publicada pelo Departamento de Estudos da Previsão e das Estatísticas, do Ministério da Cultura da França, e Presses de Sciences Po. Vale assinalar a função deste departamento: a análise dos futuros globais possíveis, setoriais e temáticos, a partir de estudos e pesquisas, com o objetivo estratégico de determinar a ação pública. Vale dizer que o ministério não faz apenas contas para repartir mesadas, mas ele pensa a arte e planeja as estruturas essenciais para a sua prática.
A obra é muito oportuna. Ela parte da constatação de que o financiamento participativo não é novo, se for considerado o caso de Mozart. Já no século XVIII, reza a lenda, o compositor teria recorrido à prática, ansioso para ter o direito à livre expressão de sua arte, frente aos mecenas e patronos. Lenda ou verdade, de toda forma, o mercado de arte ocidental começou a se estruturar no século XVIII e, a partir do século XIX, efetivamente se constituiu como mercado.O artista se tornou livre para se vender na praça, para quem se dispuser a lhe dar um dinheiro em troca de sua arte. Em tese, o artista se libertou. Deveria se tornar realidade de mercado por sua capacidade de criar…
Hoje, com a internet e os computadores, o financiamento participativo se tornou uma força econômica respeitável, segundo os autores do livro. Tornou-se fácil colocar um projeto no ar, à disposição de uma comunidade de internautas, para ser analisado. Após um pouco mais do que um decênio, numerosos projetos artísticos e culturais foram beneficiados por este procedimento. Os fundos coletados por esta modalidade de produção reuniram, segundo os autores, para a cultura, 45 milhões de euros. Financiamento participativo e autoprodução são práticas em expansão, cresceram muito nos últimos dez anos.
Os autores, François Moreau e Yann Nicolas, se perguntam a respeito das modalidades e dos efeitos deste procedimento, a partir de dados apurados nos sites Ulule, KissKissBankBank e Touscoprod. Uma das surpresas proporcionadas pela análise do perfil dos contribuintes foi a revelação da conexão, talvez inesperada, entre proximidade geográfica e contribuição.
Uma das perguntas de importância no texto consiste em dimensionar o que, afinal,os produtores anônimos financiam – o tema importa para o planejamento cultural e para o pensamento a respeito do futuro da cultura. A preocupação, no caso, era definir se eles engrossam as mesmas tendências favorecidas pelos setores profissionais e institucionais, tradicionais, ou se contribuem para fazer surgir uma diversidade maior no mapa dos projetos artísticos.
Levando adiante o pensamento sugerido pelo livro, há um raciocínio provocativo importante.A linha de raciocínio conduz a duas constatações de impacto – em primeiro lugar, a necessidade vital de que cada arte assuma a sua potência econômica, governe a sua estrutura de produção. Urge, portanto, tomar iniciativas capazes de fazer com que o teatro constitua o seu capital – o controle do processo de produção precisa ser assumido pelos artistas, inclusive na geração do capital.
Em segundo lugar, é possível deduzir com muita clareza a função inteligente que um Ministério da Cultura pode – e deve – ter junto à sociedade. O Ministério da Cultura precisa pensar a cultura e se dedicar à estruturação do lugar social das práticas culturais. Isto se considerarmos, ao menos em parte, a experiência francesa – lá, em lugar da Revolução Industrial, aconteceu uma Revolução Cultural e a indústria da cultura francesa se tornou senhora do mundo. Se os ingleses dominavam os corpos, a França passou a dominar as almas.
No caso francês, se o ministério foi uma câmara normativa e produtiva, tal se deu até o século XVIII – daí o desespero de Mozart, ainda que ele não fosse francês. Para o bem e para o mal, o artista precisa escutar os mecenas e os gerentes da política da vez. A partir da estruturação progressiva do mercado, o ministério manteve instâncias de produção/criação, tais como a Comédie Française, mas a sua função de instância estruturante se revelou mais importante. A arte cresceu ao redor. Portanto, em lugar de financiar a produção, cabe ao estado contribuir para afiar a estrutura de produção.
A rigor, a percepção de que a cultura necessita ser instituição, de que valores clássicos, canônicos, precisam ser trabalhados para que sobrevivam como patrimônio comum e possam, assim, gerar o campo da cultura, integra a própria definição de ação cultural do Estado, ao menos no caso francês. Há, por exemplo, uma junção admirável de educação e cultura a favor do teatro na França.
É o caso da escola Théâtre Molière Sorbonne, fundada em 2017 sob a direção de Georges Forestier. Ligada à universidade e à academia de formação superior de professores e de profissionais da educação de Paris, a iniciativa promove um estudo histórico vivo de Molière. Em dezembro será apresentado o espetáculo Les Facheux, primeira comédia balé do autor, acompanhado com a música original e interpretação historicamente informada.
O projeto pretende pesquisar e divulgar o espetáculo teatral em sintonia com a sua historicidade. Seria um pouco como se, no Brasil, a Escola de Teatro da UNRIO criasse um Teatro Martins Pena. A partir de pesquisas históricas minuciosas, a instituição ofereceria, com a parceria do Instituto de Educação ou uma Faculdade de Educação pública, montagens dos textos de Martins Pena orientadas para a sua historicidade. Em Paris, os ingressos custam um preço acessível e são ainda mais baratos para estudantes abaixo dos 18 anos.
Estes casos ilustram um pouco o que se tenta falar aqui a respeito de estruturação do mercado. A suposição é a de que seria a fórmula ideal. De um lado, o capital, a prática, o teatro acontecendo, com bastante autonomia econômica e remota dependência do governo e do Capital Social. Do outro lado, o Estado e o seu cortejo de ações para garantir a infraestrutura produtiva, a formação de plateia, os alicerces da cena teatral maior. A construção de novos teatros, por exemplo, seria uma das prioridades deste formato do Estado.
Não é difícil definir um Estado estruturante, diferente do Estado paternalista que age nas intervenções imediatas. Uma política editorial consistente, por exemplo, precisa ser prática efetiva do Estado. Caso existisse esta concepção da cultura no Brasil, a carnavalesca Rosa Magalhães, cenógrafa, figurinista, diretora de arte, não teria esperado tanto tempo para publicar o livro E vai rolar a festa…, uma obra preciosa para a cena cultural brasileira.
Trata-se de um livro documentário, algo que se poderia chamar de doculivro. A obra reúne material da festa de encerramento das Olimpíadas Rio 2016 e das cerimônias de abertura e encerramento dos Jogos Panamericanos de 2007, no Rio de Janeiro. A rigor, o projeto do livro surgiu lá atrás, no trabalho de arquivamento do material de 2007. Mas não houve chance qualquer de encontrar um patrocinador. A referência ilustra a dificuldade para a produção de livros de cultura no país, em particular no caso do teatro.
Mas, afinal, o resultado deste trabalho de tanto impacto pode ser reunido e publicado, para efetivar o registro histórico e para constituir fonte de pesquisa para estudiosos em geral. Foram selecionados e editados desenhos, plantas, croquis, perspectivas, fotos do making off e dos espetáculos. Uma festa para o olhar. Uma oportunidade para comemorar a imensa capacidade criativa do brasileiro, da qual Rosa Magalhães é prova inconteste.
Portanto, capacidade de criação, inventividade, garra, disposição estética e disposição contemplativa não faltam por aqui. Falta dinheiro. Não adianta chorar e querer colo quando a mãe, no caso brasileiro, é uma viúva alegre, que já abdicou faz tempo da gerência da prole. Então, não há dúvida, é preciso produzir o dinheiro. Vale arregaçar as mangas e partir para o trabalho, mas com um rumo diferente, capaz, quem sabe, de transformar os sucessos de retórica em sucessos efetivos, fazer nascer um teatro aclamado pelo público como ato sonante de cultura, no qual o público vê, em cena, o resultado emocional do seu dinheiro. Neste espaço, a arte do teatro se torna ato social pleno e efetivo.
Financement participatif : une voie d’avenir pour la culture ?
François Moreau, Yann Nicolas
Presses de Sciences Po | Coéditions
Brochura- 18,00 €
Les Fâcheux de Molière
Jeudi 20 décembre à 19h45
Amphithéâtre Richelieu, Sorbonne Université
(17 rue de la Sorbonne, 75005 Paris)
Entrée : 10 € / 5 € (étudiants et lycéens, moins de 18 ans)
Réservations uniquement en ligne, avant le 19 décembre (pas de vente sur place) : https://www.billetweb.fr/facheux
Rosa Magalhães
E vai rolar a festa… (Ed. Nova Terra, 180 pág., R$ 80)
Foto: Fernando Tribiño / Divulgação.
LANÇAMENTOS
Restaurante La Fiorentina
Endereço – Avenida Atlântica, 458 A, Leme.
Data – Terça-feira, 27 de novembro, 19h.
Telefone – 2543-8395.
Cidade do Samba
Endereço – Rua Rivadávia Correia 60, Gamboa, Zona Portuária.
Data – Terça-feira, 11 dezembro, 17h.
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No país da cultura-lixo
“Muita gente acha que lixo é algo imprestável, podre, acabado – não serve para nada, pura tranqueira. Aliás, muitas destas pessoas que pensam assim, não pensam sequer um minuto no problema que arranjam, para a Terra e para a sociedade, quando produzem o seu lixo-tranqueira cotidiano. São pessoas que nunca se perguntaram para onde vai o seu lixo. Este é o lixo visto como infernal, maldito. O tema é vasto.
Para começar a questionar esta visão do mundo, é recomendável ver a peça Kondima – sobre Travessias, novo cartaz do Arena SESC Copacabana, trabalho impecável da Troupp Pas D’Argent. Lá pelas tantas, a inefável atriz Ruth Mariana surpreende a plateia com o seu depoimento contundente de refugiada: sobreviveu no Brasil muito tempo graças ao lixo brasileiro, ao seu ver um lixo ótimo. Este é o lixo celestial, abençoado.
A melhor política: todo o poder para as mulheres
“Deus só criou as mulheres para domar os homens”, afirmou Voltaire. Então, se o filósofo francês está certo, é bom a rapaziada correr e se preparar para um treinamento intensivo, pois de 9 a 13 de novembro o Rio de Janeiro vai sediar o MULTICIDADE, Festival Internacional de Mulheres nas Artes Cênicas. Mas será que a tônica é esta mesmo, como diria Voltaire?
Importa dimensionar as características fundamentais do evento sob o foco. Nele, estarão reunidas mulheres artistas de 5 países – Alemanha, Dinamarca, Reino Unido, França e Brasil (RJ, SP e PE). O objetivo central será a busca do intercâmbio e da reflexão sobre o fazer artístico e o posicionamento da mulher na sociedade contemporânea. Portanto, as obras selecionadas possuem um viez comum, são trabalhos de excelência artística assinados por mulheres engajadas na ampliação dos espaços sociais de atuação da mulher.
A linha da programação – vale conferir a lista completa das atividades no site do evento – segue uma pegada século XXI muito nítida, capaz de provocar um êxtase mais do que absoluto em filósofos feministas. A multiplicidade é dedutível do perfil das responsáveis pelo festival, pois a direção geral e a curadoria contam com a assinatura da atriz e diretora italiana Paola Vellucci, da diretora sérvia Jadranka Andjelic e da dramaturga e cineasta brasileira Eveline Costa.
Corpos opacos, almas reluzentes
Mistérios femininos. Corpos Opacos, em final de temporada no Mezzanino do SESC Copacabana, traz para a cena teatral a delicadeza do olhar feminino e a aura radiosa dos mistérios. Abre uma fresta de seda, entre a onda engajada e os mantos de flores, para sugerir o pensamento a respeito deste abismo, interesse de todos. A pergunta antiga – o que é afinal a mulher? – desponta revisitada sob novas tonalidades surpreendentes.
Mistérios femininos – eles estruturam muito da vida do mundo. Impossível traduzir em língua cartesiana regular certas tramas de afeto e de pertencimento, volteios do espírito de matriz telúrica, alheamentos e ausências da obrigação gregária. Até que ponto ir para um convento é uma derrota, uma perda, uma castração? Pode ser uma conquista, a conquista de uma liberdade indizível, de um outro corpo, um corpo desejante absoluto, uma vitória contra o mundo banal?