Os imortais de 2018
“Não existe na face do planeta azul uma pessoa sequer do nosso tempo que não tenha pensado alguma vez: afinal, para quê servem os prêmios? Qual o sentido de aclamar uma pessoa, reconhecê-la como um valor superior aos seus iguais? Quem passou pelo magistério e enfrentou o problema que é a avaliação dos alunos lidou inúmeras vezes com o fato. Deve-se estimular o aparecimento dos melhores, dos gênios? Quem avaliza de verdade a genialidade ou a mesmice dos contemporâneos?
O pensamento a respeito dos prêmios percorre caminhos curiosos. Nos anos 1970, por aqui em especial, o teatro conheceu um fenômeno histórico surpreendente, o endeusamento desvairado do modo de produção em grupo. Para o ar da época, o processo criativo ideal era a criação coletiva. Muitos conjuntos radicalizaram a busca, passaram a viver em comunidade e o supremo desafio – contam, não sei se é piada – consistia em aceitar o fato de que nem mesmo uma escova de dentes podia ser propriedade privada. A mulher ou o marido então, nem pensar: tudo era compartilhado. O amor era livre.
A mesma época conhecia o poder despótico militar e o jardim da infância das celebridades, o início do processo de aclamação de grandes mitos populares, ampliado pela televisão e pela recente rebelião jovem, uma onda capaz de provocar inacreditáveis comoções. Portanto, para que se pudesse pensar em fazer uma arte de impacto, autêntica, segundo o pensamento dos mais radicais, impunha-se fazer o oposto simétrico do gesto da indústria cultural. Em lugar do excesso de fama individual, o extremo grupal.
A arte devia ser um instrumento revolucionário direto, uma arma hábil para mudar o mundo. Neste cenário grandioso, o cultivo do apagamento do indivíduo, do eu, do sentido de propriedade, se tornou ponto de partida. O grupo era a roda de vida do teatro. Todos eram companheiros – mesmo que alguns companheiros decididos mandassem em todos, mais tímidos diante do poder. Aliás, longas discussões surgiam por causa das ações dos pretensos líderes que, no fundo, eram mesmo os líderes. Esta dinâmica, portanto, era avessa aos prêmios, vistos como práticas burguesas, claro.
A coisa adquiriu um tamanho de tal ordem que alguns acontecimentos corriqueiros atingiram naqueles tempos tons inacreditáveis, surreais. Na Escola de Teatro da Fefierj, atual UNIRIO, por exemplo, os alunos criaram uma rotina para implodir o projeto dos professores de procurar, descobrir e aclamar gênios teatrais. Ninguém desejava endeusar galãs e divas, mas sim produzir em equipe, consolidar as forças coletivas. Para detonar os professores, todos os trabalhos individuais de interpretação – formato dominante nas aulas – eram aplaudidos com frenesi pela turma, como se representassem sempre a quintessência da alma teatral. Cada um era galã inconteste dos seus minutos de fama.
Os professores ficaram desnorteados, a principio. Depois, acabaram entendendo o jogo – e a tendência humana natural para reconhecer os talentos natos triunfou, a prática se esgotou. Não dá para descolar o teatro do plano do subjetivo. E quando aparece uma Vera Holtz, atriz forte desde os bancos da escola, não há como impedir que o queixo da plateia caia. A estrela brilha por si, tem luz própria, rasga a noite, ilumina o céu.
As consequências do processo surgiram com naturalidade, afinal o teatro era feito dentro do mercado. Muito embora as divas intocáveis tenham sumido da cena, ou tenham se transformado em seres mais modestos, o mecanismo de época não chegou nem mesmo a criar um chão novo, grupal, para o palco brasileiro. Quer dizer, a arte da cena passou pela prova coletiva, sofreu uma baita pressão e voltou a ser o que sempre foi desde o século XVIII – ou XIX – cruzadismo personalizado, ato individual heróico.
Há um lugar histórico do teatro no qual todo este processo pode ser lido com muita clareza – o Grupo Oficina. A princípio, na sua fundação, no final dos anos 1950, a equipe pretendia apenas seguir de perto o desafio do Arena, mais velho: a atitude de fazer grande teatro, como o TBC, apenas com dez por cento ou menos do orçamento tebecista. Mas logo surgiu a identidade maior da equipe, a proposta de sondar (e, em seguida, sacudir) as tramas de estruturação do indivíduo, uma forma política contrastante com o engajamento direto do Arena. O Arena queria o social, o Oficina jogava o foco no individual.
Foi o caminho para o chamado “desbunde”, segundo a gíria da época. Ao mesmo tempo em que eram rompidos paradigmas considerados como reacionários, para dinamitar os limites burgueses das pessoas-atores, o grupo fazia enorme sucesso, se tornou célebre. Lutando contra a fama, o Oficina, perplexo diante da aclamação, decidiu varrer o lixo da sala de ensaio, empacotar e vender para os fãs, junto com o programa da peça: poeira, cabelos, cinzas de cigarro, guimbas… Lixo de celebridades. O teatro não podia se tornar um sucedâneo da Abril Cultural.
O tempo passou e toda a anarquia e o niilismo de Zé Celso não impediram que ele se tornasse uma estrela, uma celebridade. Quer dizer, por aqui, parece ainda longe o tempo em que o teatro será arte de amplo alcance social e institucional, coisa de anônimos esfuziantes. Ele persiste como furor bandeirante solitário, fruto da ação de indivíduos obstinados, decididos a viver de teatro, mas tributários de um sistema de celebrização, num jogo paradoxal. Para sobreviver, quem deseja fazer teatro precisa ser herói absoluto em cada minuto teatral vivido. Ou é celebridade, ainda que anônima, ou não aguenta o tranco.
O raciocínio tem alcance certeiro: atribuir prêmios a personalidades de destaque no teatro brasileiro é procurar palha no agulheiro, quer dizer, é deparar com personalidades notáveis por todos os lados, pois fazer teatro no Brasil não é para os fracos ou hesitantes. Só com uma imensa força de vontade e a crença num talento avassalador a criatura aqui consegue persistir na arte. A loucura deste sistema brasileiro aparece clara até nos nomes mais modestos: eles lamentam a sorte, se veem com modéstia. Não são estrelas solares, afirmam, mas nem sabem nem querem nem podem fazer outra coisa. E se jogam de cabeça no palco, sem medo de quebrar o coco.E volta e meio eles, pequenos atores modestos anônimos, nos doam jóias preciosas da mais delicada emoção.
A provocação mira o velho hábito de desqualificar o teatro nacional, ataca o ponto de vista negativo de sempre, de dizer que temos um teatro atrasado, ruim, mal feito e mal acabado, sustentado por pessoas de quinta categoria, atores incapazes de ter a mais vaga ideia do bem dizer e da bela palavra. Afinal, cada povo tem o teatro que consegue e merece ter, mas, no caso brasileiro, a turma do teatro é heróica. Importa falar sobre isto numa época de crise, um momento histórico difícil, em que manter os teatros abertos com peças parece ser um verdadeiro milagre. Aos trancos e barrancos, a classe teatral tem feito isto.
O panorama geral traçado pelo resultado do Prêmio Cesgranrio de Teatro revela esta condição essencial dos tablados nacionais. Na listagem figuram múltiplas vertentes da arte hoje. A variedade salta aos olhos na simples enumeração das peças indicadas no segundo semestre, ao lado daquelas escolhidas no primeiro semestre. Ainda que a premiação não contemple produções paulistas, ela situa nos cartazes eleitos uma variedade significativa de tendências, uma amplitude do fazer só explicável a partir do predomínio da força criativa de indivíduos-artistas solitários entregues à própria sorte.Que teatro é este que a história nos legou?
Não dá para olhar para o teatro brasileiro hoje – e sempre – e reconhecer forças institucionais, poderes econômicos, tradições e linhas abstratas de criação. Não há nenhuma força social comprometida com a estrutura da cena. Tudo passa pela ordem do sujeito e pelo esforço cego das personalidades. A evidencia, portanto, leva a avaliar os prêmios como ato sério – e justo – de reconhecimento da potência artística nacional. Em particular quando o prêmio consegue olhar para a extensão do panorama da arte. Uma arte que deveria ser totalmente coletiva, mas que é inteiramente individual no seu esforço fundador, só pode ser muito variada.
Assim, talvez se deva reconhecer que nenhum outro teatro do mundo mereça ganhar prêmios como o nosso. Aqui, o prêmio é um sinal de luz ao inverso: em lugar de reconhecer o mérito passado, ele alicerça a porta para o futuro, pois a obra construída se desfaz como se gravada em areia, por ser ato particular. Muitos fatores determinam o palco precário: a fragilidade, ainda hoje, do teatro nas escolas, a inexistência de programas de formação de plateia, a recusa eterna do Estado a ter um projeto cultural nacional (e muita gente boa acha ótimo o fato, pois não contamos com estadistas à altura desta proeza, os projetos seriam descalabros), a futilidade criminosa da classe dominante…
Importa, então, considerar os diferentes prêmios no interior destes limites. E talvez seja o caso de lamentar o fato de que sejam poucos prêmios: falta um grande prêmio federal, falta um prêmio dos governos estaduais (existem alguns, mas são perseguidos sempre por descontinuidades), faltam prêmios monumentais de dramaturgia. Faltam prêmios dos sindicatos. Faltam prêmios das academias e grêmios culturais.
Tais coordenadas acabam deixando o Prêmio Cesgranrio num lugar nobre. De saída, o montante da premiação envolve cifras altas, é o prêmio nacional com maiores valores envolvidos. O vencedor de cada categoria recebe R$ 25 mil reais, a soma das doze categorias atinge R$ 300 mil. A festa de aclamação dos vencedores é sempre um evento requintado, de fina categoria, no Golden Room do Copacabana Palace, oportunidade para confraternização elegante da classe teatral, pois nenhuma outra cerimônia atinge o mesmo grau de realização.
Então, comemoremos. A festa de 2018 está programada para o dia 21 de janeiro de 2019. A atriz Fernanda Montenegro será a grande homenageada e a apresentação da noite estará à cargo de Julia Lemmertz e Jonatas Faro. Se um significado preciso pode ser atribuído a este prêmio, sem dúvida se trata do desejo límpido de conferir ao teatro uma projeção institucional forte. Trata-se de uma obra de consolidação teatral. A obra tem sido arquitetada com extremo requinte. Diante dela, dá para pensar e ver claramente para quê serve o prêmio: o seu foco intenso está na defesa convicta da grandeza poética do sofrido teatro nacional.
LISTAGENS DOS INDICADOS AO PREMIO CESGRANRIO 2018
INDICADOS SEGUNDO SEMESTRE 2018
MELHOR FIGURINO
João Pimenta, por DOGVILLE
Maria Duarte e Márcia Pitanga, por UM TARTUFO
Kika Lopes e Rocio Moure, por ELZA
MELHOR CENOGRAFIA
Dóris Rollemberg, por A ÚLTIMA AVENTURA É A MORTE
Marcos Flaksman, por O INOPORTUNO
Mathieu Duvignaud, por A INVENÇÃO DO NORDESTE
MELHOR ILUMINAÇÃO
Russinho, por MEMÓRIAS DO ESQUECIMENTO
Renato Machado, por ELZA
Renato Machado, por A ÚLTIMA AVENTURA É A MORTE
MELHOR ATOR
Daniel Dantas, por O INOPORTUNO
Robson Torinni, por TEBAS LAND
Bruce Gomlevsky, por MEMÓRIAS DO ESQUECIMENTO
MELHOR ATOR EM TEATRO MUSICAL
Luiz Felipe Mello, por PIPPIN
Rodrigo Naice, por 70? DÉCADA DO DIVINO MARAVILHOSO – DOC. MUSICAL
Tauã Delmiro, por 70? DÉCADA DO DIVINO MARAVILHOSO – DOC. MUSICAL
CATEGORIA ESPECIAL
Elenco de “ELZA”
Henrique Fontes e Pablo Capistrano, pela adaptação teatral do livro “A Invenção do Nordeste e Outras Artes” de Durval Muniz de Albuquerque Jr.
Marcia Rubim, pela direção de movimento do espetáculo “TRAJETÓRIA SEXUAL”
MELHOR ATRIZ
Mel Lisboa, por DOGVILLE
Alice Borges, por IRMÃOZINHO QUERIDO
Ana Kfouri, por UMA FRASE PARA MINHA MÃE
MELHOR ATRIZ EM TEATRO MUSICAL
Nicette Bruno, por PIPPIN
Totia Meirelles, por PIPPIN
Izabella Bicalho, por ELIZETH – A DIVINA
MELHOR DIREÇÃO
Duda Maia, por ELZA
Victor Garcia Peralta, por TEBAS LAND
Ary Coslov, por O INOPORTUNO
MELHOR DIREÇÃO MUSICAL
Pedro Luís, Larissa Luz e Antônia Adnet, por ELZA
Jules Vandystadt, por 70? DÉCADA DO DIVINO MARAVILHOSO – DOC. MUSICAL
Jules Vandystadt, por PIPPIN
MELHOR TEXTO NACIONAL INÉDITO
Pedro Brício, por O CONDOMÍNIO
Miriam Halfim, por MEUS 200 FILHOS
Eduardo Moreira, Márcio Abreu e Paulo André, por OUTROS
MELHOR ESPETÁCULO
ELZA
A INVENÇÃO DO NORDESTE
DOGVILLE
LISTAGEM GERAL DOS INDICADOS – 2018:
MELHOR FIGURINO
Eduardo Giacomini, por NUON
João Pimenta, por DOGVILLE
João Pimenta, por ROMEU + JULIETA AO SOM DE MARISA MONTE
Kika Lopes e Rocio Moure, por ELZA
Maria Duarte e Márcia Pitanga, por UM TARTUFO
Ney Madeira e Dani Vidal, por BIBI – UMA VIDA EM MUSICAL
MELHOR CENOGRAFIA
Daniela Thomas, por ROMEU + JULIETA AO SOM DE MARISA MONTE
Dina Salem Levy, por CÉREBROCORAÇÃO
Dóris Rollemberg, por A ÚLTIMA AVENTURA É A MORTE
Marcos Flaksman, por O INOPORTUNO
Mathieu Duvignaud, por A INVENÇÃO DO NORDESTE
Natalia Lana, por BIBI – UMA VIDA EM MUSICAL
MELHOR ILUMINAÇÃO
Beto Bruel, por CÉREBROCORAÇÃO
Monique Gardenberg e Adriana Ortiz, por ROMEU + JULIETA AO SOM DE MARISA MONTE
Paulo César Medeiros, por MARIA!
Renato Machado, por A ÚLTIMA AVENTURA É A MORTE
Renato Machado, por ELZA
Russinho, por MEMÓRIAS DO ESQUECIMENTO
MELHOR ATOR
Bruce Gomlevsky, por MEMÓRIAS DO ESQUECIMENTO
Claudio Mendes, por MARIA!
Daniel Dantas, por O INOPORTUNO
João Velho, por A ORDEM NATURAL DAS COISAS
Marcelo Olinto, por INSETOS
Robson Torinni, por TEBAS LAND
MELHOR ATOR EM TEATRO MUSICAL
Chris Penna, por BIBI – UMA VIDA EM MUSICAL
Claudio Galvan, por ROMEU + JULIETA AO SOM DE MARISA MONTE
Leo Bahia, por BIBI – UMA VIDA EM MUSICAL
Luiz Felipe Mello, por PIPPIN
Rodrigo Naice, por 70? DÉCADA DO DIVINO MARAVILHOSO – DOC. MUSICAL
Tauã Delmiro, por 70? DÉCADA DO DIVINO MARAVILHOSO – DOC. MUSICAL
CATEGORIA ESPECIAL
Andrea Jabor, pela preparação corporal do espetáculo INSETOS
Cia. dos Bondrés, pelos 10 anos de atividade em pesquisa de máscaras balinesas
Elenco de “ELZA”
Gustavo Gasparani e Eduardo Rieche, pela adaptação e roteiro musical de ROMEU + JULIETA AO SOM DE MARISA MONTE
Henrique Fontes e Pablo Capistrano, pela adaptação teatral do livro “A Invenção do Nordeste e Outras Artes” de Durval Muniz de Albuquerque Jr.
Marcia Rubim, pela direção de movimento do espetáculo “TRAJETÓRIA SEXUAL”
MELHOR ATRIZ
Alice Borges, por IRMÃOZINHO QUERIDO
Ana Kfouri, por UMA FRASE PARA MINHA MÃE
Beatriz Bertu, por A ORDEM NATURAL DAS COISAS
Gisele Fróes, por O IMORTAL
Mariana Lima, por CÉREBROCORAÇÃO
Mel Lisboa, por DOGVILLE
MELHOR ATRIZ EM TEATRO MUSICAL
Amanda Acosta, por BIBI – UMA VIDA EM MUSICAL
Daniela Fontan, por A VIDA NÃO É UM MUSICAL – O MUSICAL
Izabella Bicalho, por ELIZETH – A DIVINA
Nicette Bruno, por PIPPIN
Stella Maria Rodrigues, por ROMEU + JULIETA AO SOM DE MARISA MONTE
Totia Meirelles, por PIPPIN
MELHOR DIREÇÃO
Ary Coslov, por O INOPORTUNO
Duda Maia, por ELZA
Henrique Dias e Renato Linhares, por CÉREBROCORAÇÃO
Leonardo Netto, por A ORDEM NATURAL DAS COISAS
Tadeu Aguiar, por BIBI – UMA VIDA EM MUSICAL
Victor Garcia Peralta, por TEBAS LAND
MELHOR DIREÇÃO MUSICAL
Apollo Nove, por ROMEU + JULIETA AO SOM DE MARISA MONTE
Jules Vandystadt, por 70? DÉCADA DO DIVINO MARAVILHOSO – DOC. MUSICAL
Jules Vandystadt, por O HOMEM NO ESPELHO
Jules Vandystadt, por PIPPIN
Pedro Luís, Larissa Luz e Antônia Adnet, por ELZA
Tony Lucchesi, por BIBI – UMA VIDA EM MUSICAL
MELHOR TEXTO NACIONAL INÉDITO
Cristina Fagundes, por A VIDA AO LADO
Eduardo Moreira, Márcio Abreu e Paulo André, por OUTROS
Leandro Muniz, por A VIDA NÃO É UM MUSICAL – O MUSICAL
Leonardo Netto, por A ORDEM NATURAL DAS COISAS
Miriam Halfim, por MEUS 200 FILHOS
Pedro Brício, por O CONDOMÍNIO
MELHOR ESPETÁCULO
A INVENÇÃO DO NORDESTE
A ORDEM NATURAL DAS COISAS
BIBI – UMA VIDA EM MUSICAL
DOGVILLE
ELZA
ROMEU + JULIETA AO SOM DE MARISA MONTE
Comissão julgadora: Carolina Virgüez, Daniel Schenker, Jacqueline Laurence, Lionel Fischer, Macksen Luiz, Rafael Teixeira e Tania Brandão.
Foto: Fachada do Hotel Copacabana Palace, 1930.
Tagged: Arena, Copacabana Palace, Da utilidade dos prêmios, Fernanda Montenegro, Golden Room, Jonatas Faro, Julia Lemmertz, Oficina, Prêmio Cesgranrio de Teatro 2018, Vera Holtz, Zé Celso
Sob a eterna benção do teatro
“Crise? Como assim? De teatro, de tudo? Ora, existe saída – não se angustie. A crise tem solução fácil, basta querer. A mais visível não é imediata, é de longo prazo. Mas, afinal, vale a solução. É bela. Importa identificar o caminho e juntar esforços, pois almas nobres estão reunidas batalhando a favor da mudança. Uma palavra resume o tema: educação.
Pois é, um grande eixo de força está em ação para acabar com a crise teatral. Quiçá mexer com a crise geral do país. O eixo tem enorme visibilidade aqui no Rio de Janeiro, ainda que pouco se fale nele. Mas começa a ter força por todo o país. Por todo o território existem histórias de sucesso, exemplos para seguir. Copiar, neste caso, soma a favor da mudança radical da estagnação e da decadência. Vamos ao exemplo aqui de casa: gente, ele é abismal, aterrador, tal a sua grandeza humana.É um caso de enorme desmedido, tipo o amor de Pedro e Inês. Lembra disto?
Ok, sejamos objetivos. Trata-se do ensino de teatro – ou de artes cênicas – na Rede Escolar. O Rio de Janeiro é revolucionário por ter implantado a atividade à frente de todo o país. A conquista carioca surgiu como parte (embora tardia) de um processo mundial de reconhecimento da importância do teatro para a formação cidadã. Por isto, assim, forçados pelo mundo e não apenas por influência do Rio, a prática ganhou o território brasileiro, como um rastilho de pólvora. Logo se tornará rotina importante da vida escolar. Quer dizer, esta condição já está em vigor aqui na cidade maravilhosa.
Falo da escola pública: a Rede Municipal do Rio de Janeiro possui uma estrutura escolar de perfil avançado, mais do que moderno. Nas escolas, existem aulas de teatro. Mas há um pouco mais. Em diferentes regiões escolares da cidade, existe um Núcleo de Arte, nove no total. Nele, após os estudos regulares diários em sua escola, no contra-turno, a criança pode ter aulas de artes à sua escolha – música, dança, artes plásticas, vídeo e animação e, claro, teatro.
Visitei sábado o sensacional Núcleo de Arte Prof. Albert Einstein, na Barra da Tijuca. E precisei disfarçar e recorrer àquela mulher férrea que às vezes mora dentro de mim para não chorar. Uma torrente cristalina de emoção varreu a minha alma. Disfarcei, fiz cara de contente e trouxe a emoção para estas palavras. Amigos, procurem conhecer o Núcleo de Arte do seu bairro ou aquele que está pertinho ou visitem o Albert Einstein. E contribuam com esta ideia.
Detalhe – contribuir aqui significa falar, disseminar o trabalho, comentar, divulgar. Espalhar a notícia na sociedade funciona como uma imensa dádiva. Várias empresas e instituições podem se engajar na proposta. Cada Núcleo de Arte apresenta um rol enorme de necessidades, muitas fáceis de sanar, para o grande capital ou a grande estrutura institucional. E o impacto não bate só nos contemplados.
Já no caminho aprendi que iria para uma escola diferenciada ao extremo. Ela fica no Novo Leblon, um lugar que pouco conheço, na Barra da Tijuca, um bairro em que sempre exercito a estranha arte de me perder – e não no sentido antigo, da minha adolescência, em que o areal deserto da Barra da Tijuca era, segundo as mães, um antro de perdição. Eu me perco mesmo, fácil, para desespero do GPS.
Pois bem, perdida, passei na porta de um clube de bombeiros – não posso explicar, não sei o que é isto, fiquei no espanto! – e pedi ajuda ao porteiro, um senhor já idoso, negro, bonachão, dono de um sorriso capaz de iluminar o universo. Pois quando ele ouviu o nome da escola, conseguiu ampliar ainda mais o imenso sorriso para exclamar: ah, a minha escola! Tem festa lá hoje? Dê um abraço apertado por mim no diretor…
A Escola Albert Einstein e o seu Núcleo de Arte são exatamente isto, lugares de humanidade absoluta, plena, uma atmosfera devotada à criação contagiante. O astral impressiona por sua positividade, são pessoas decididas, aquele tipo que acredita que vivemos num baile e que importa mesmo tirar a vida para dançar. E, no caso de faltar música, elas terão a música nos pés, no corpo, na alma. São pessoas alegres, iluminadas pelo próprio trabalho, gente que vive em sintonia com o seu ideal, fazendo tudo por ele. Quando mostram a escola ou o núcleo de arte ou descrevem o seu ofício ou relatam a trabalheira insana que enfrentam para manter tudo em forma, o olhar dessa gente brilha com fulgor. São estrelas guerreiras do trabalho. Nenhum obstáculo, diante delas, aparece como tal – se ele está ali, deve ser vencido.
E que gente é esta? Professores, claro. Professores de arte, professores de teatro. Os que me receberam foram os professores de teatro. Dentre eles, o perfil mais comum consiste naquele ator que, diante da profissão, percebeu a instabilidade radical da carreira e, para sobreviver, decidiu dar aulas. Mas, alto lá! – não se trata de gente mesquinha, frustrada, que fracassou na cena e foi dar aulas, nada disto. Alguns até têm carreira paralela no palco e na TV, outros decidiram se entregar de corpo e alma à magia que é formar gente com arte, mudar diretamente o mundo. São apaixonados. E apaixonantes. Na verdade, todos foram mordidos pela mosca-magister, um bicho contagioso, resistente a vacinas e sem remédio, capaz de virar a cabeça de todas as suas vítimas, para sempre entregues ao ofício de ensinar.
Estes atores-mestres logo perceberam, diante dos alunos e das escolas, que era necessário outra visão do ensino da arte, devotada ao trabalho com a expressão do ser humano, algo que não formará necessariamente um artista, mas dará plena potência, imensa dignidade à cada pessoa. Assim, se jogaram na batalha, inventando métodos, enfrentando imensas carências. A adesão ao fazer tornou o saber de cada professor algo muito vivo. A todo momento, as teorias se despem da distância e mergulham no cotidiano. Neste ritmo, o Núcleo de Arte se impõe como realidade viva, palpitante, uma usina de libertação da expressão humana.
A dinâmica seguida nestes espaços de arte obedece a uma estrutura muito ágil. Os alunos da Rede buscam o núcleo capaz de oferecer as habilitações em arte de sua preferência. A entrada e a saída são livres. Para os que chegam, existe o Módulo Básico, de alfabetização na arte escolhida. Para os que possuem alguma formação ou passaram pelo Básico, há o Módulo de Continuidade. E, afinal, há o Módulo de Montagem, uma oficina multidisciplinar em que diferentes professores se integram para que os processos criativos resultem num produto de arte.
A minha visita foi direcionada para ver o trabalho de montagem deste ano do Núcleo de Arte Prof Albert Einstein, o espetáculo O Amor de Pedro e Inês, texto de Rodrigo Rangel focado na história de D. Pedro e de Inês de Castro. No Albert Einstein, o professor Rodrigo Rangel conseguiu construir – ou adaptar – um gracioso teatro. O espaço singelo, equipado com refletores feitos de latas de tinta e muito material reaproveitado, logo se revela um lugar poético dominado pelos estudantes. Eles, ali, estão em casa. E felizes.
Seria bastante extenso descrever as qualidades impressionantes da montagem. Para aproximar os jovens estudantes de um tema árduo, com frequência tratado sob um português culto e até empolado, Rodrigo Rangel levou a trama para a realidade de tiroteio carioca. Em cena, um grupo de teatro escolar, de uma favela deflagrada, tenta ensaiar a história portuguesa, enquanto as balas chovem ao redor.
O aluno ator professor ensaiador volta e meia sai de cena, às voltas com o cotidiano fervilhante das escolas em áreas tensas, um meio para nos falar da realidade crua imediata. Enquanto isto, os alunos-elenco seguem ensaiando. E aí a ciranda da imaginação dá a melhor resposta aos tiros e aos seres truculentos. A peça acontece como construção humana pura, na mais impressionante garra de fazer.
Inventividade corporal, espacial, visual, musical, trabalho com vídeo, dança… A cena roda diante da plateia como um caleidoscópio de belas ideias, ideias aptas a inventar tudo – a pobreza de meios desagua numa imensa fortuna de imaginário. Caixotes compõem amuradas, torre, castelo. Pincel, brocha, vassoura viram bonecos-marionetes… Plástico preto surge como manto real. Capsulas de balas compõem a mão de um esqueleto precioso…
No caso do professor Rodrigo Rangel, não foi o primeiro texto nesta linha de trabalho. Em atividade no Município desde 1995, ele concebeu uma proposta genial para aproximar a fortuna cultural do ocidente de alunos da Rede que, com frequência, vivem distantes do universo mais denso do saber. O espírito empreendedor o levou a adaptar Cyrano de Bergerac, de Rostand, Medéia, de Eurípedes, Lisístrata, de Aristófanes, Sonho de uma Noite de Verão e Romeu e Julieta, de Shakespeare, A Aposta, de Tchekov.
Por conta da projeção conquistada, ele passou de uma escola da Rede para o Núcleo em 1999 e, no Núcleo, ganhou salas abandonadas para fazer o teatro. Mas não é só, o reconhecimento foi ainda mais longe – este ano, ele recebeu a Medalha Carioca de Educação, honraria concedida pela Prefeitura para as contribuições mais relevantes para a educação na cidade. A seleção é rigorosa, feita por uma comissão de especialistas. Foi a primeira vez que a láurea foi concedida a um professor de teatro.
E a hipótese de estarmos diante de uma crise sem precedentes no país fica esfumada diante da nobreza deste tipo de iniciativa. Quando o professor Rodrigo Rangel fala a respeito do seu trabalho, ele fala de arte em dois planos diferençados – o trabalho de ator, no qual sempre se destacou desde os bancos da Escola de Teatro da UNIRIO, e o trabalho do professor.
Ele comenta que cada arte traz a sua gratificação. Cada arte tem a sua engenhosidade. A solidão do ator no seu processo criativo implica na certeza de mover a sensibilidade do mundo em algum grau, ainda que ínfimo, exclusivamente a partir de si. A comunidade do processo de ensino da arte a escolares desencadeia a certeza não apenas de criar plateias e difundir a arte, mas de aflorar gente num sentido sensível novo ou renovado, como se o que é humano devesse tomar as rédeas do mundo. Diante deste oceano criativo de tamanha beleza, vamos dizer o quê? Obrigada, professor. E parabéns, por sua infinita grandeza de espírito.
NUCLEOS DE ARTE DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
Relação dos Núcleos de Arte
E/CRE Núcleo de Arte Endereço/Telefone(s)
1ª CRE NA Avenida dos Desfiles
nucleartdesf@rio.rj..gov.br
Rua Salvador de Sá, s/nº –Cidade Nova– Sambódromo –Setor 9
Tel. 2502- 5199
2ª CRE NA. Leblon
nucleartpfisterer@rio.rj.gov.br
Praça Nossa Auxiliadora, s/nº – Leblon Tel.. 2512-8666
NA Copacabana
ucleartguima@rio.rj.gov.br
Rua Toneleiros, 21 – Copacabana
Tel: 2236-0154
3ª CRE NA Nise da Silveira
Creo3artes@rio.rj.gov.br
Rua Ramiro Magalhães, 521 – Engenho de Dentro
Tel. 3276-7787 / 3111-7085
4ª CRE NA Grécia
nuclearte@rio.rj.gov.br
Avenida Brás de Pina, 1614 — Penha
Tel.: 3391-4682
5ª CRE NA Professor Souza da Silveira
nucleartsilveira@rio.rj.gov.br
Rua Amália, s/nº – Piedade
Tel.e Fax: 2597-2937
6ª CRE NA Grande Otelo
nuclearteotelo@rio.rj.gov.br
Rua Arnaldo Guinle s/n°- Coelho Neto Tel:
7ª CRE NA Silveira Sampaio
nucleartsilveira@rio.rj.gov.br
Rua José Perrota, 31 – Curicica – Jacarepaguá
Tel. e Fax: 2441-2550
NA. Albert Einstein
nuclearteae@rio.rj.gov.br
Rua Guimarães Rosa, 156 – Novo Leblon – Barra da Tijuca
Tel. e Fax: 2438-5144
9ª CRE NA Prof. João Fernandes Filho
ucleartdickens@rio.rj.gov.br
Rua Primeira Cruz, s/nº – Campo Grande
Tel. e Fax: 2415-2373
NÚMERO DE ALUNOS:
E/CRE Unidade de Extensão – Núcleo de Arte Nº Alunos
1ª Av. dos Desfiles 453
2ª Copacabana 608
Leblon 951
3ª Nise Da Silveira 347
4ª Grécia 773
5ª Prof. Souza da Silveira 467
6ª Grande Otelo *
7ª Silveira Sampaio 757
Albert Einstein 519
9ª Prof. Joaõ Fernandes Filho 511
Total 5.386
OBS: N A grande Otelo, criado em 2008, sito à Rua Arnaldo Guinle, s/nº – Coelho Neto (E/6ªCRE), em processo de implantação.
(Informações copiadas do site da SME/RJ)
FICHA TÉCNICA:
O Amor de Pedro e Inês
Texto, Direção e Músicas: Rodrigo Rangel
Direção de Movimentos e Vídeo: Diego Braga
Cenário e Adereços: Da Penha
Figurinos e Adereços: Carol Bianchi
Produção: Núcleo de Arte Prof. Albert Einstein – Prefeitura do Rio de Janeiro
Elenco:
Personagens/ Atores:
Professor Chico Caseira – Gabriel Magalhães
Rafael/Pedro – Renan Tavares
Léo/ Lobato – Matheus Linhares
Márcia/ Inês de Castro – Vitória Silveira
Bia- Adrielly Santos
Daniel/ aluno operador – Rayan Pretinho
Luana/ Constança – Mandy
aluna muda – Leilla Soares
Sara – Sarah Menezes
Tagged: A Aposta, Arte e Educação, Cyrano de Bergerac, Lisístrata, Medalha Carioca de Educação, Medéia, Núcleo de Arte Prof Albert Einstein, O Amor de Pedro e Inês, Rodrigo Rangel, Romeu e Julieta, Rostand, Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, Shakespeare, Sonho de uma Noite de Verão, Tchekov
O Teatro do corpo
“Teatro não é literatura: a afirmação já rendeu bastante polêmica. Ainda rende. Mas ela aparece aqui sob uma outra veste – o que se quer dizer com ela é muito simples. No teatro, à diferença da literatura, a palavra é destituída de seus poderes próprios, ela vira corpo. Isto mesmo – ela corporifica. Palavra no palco é ação, portanto corpos em movimento.
No entanto, a coisa não é tão simples assim: dois caminhos complementares estão insinuados no parágrafo de cima. Um caminho é o da palavra, não está sob o foco agora. Vale observar apenas que a tal palavra é sirigaita, quer dizer, é uma palavra cheia de carne, não é uma palavra seca, perdida em si, como sonha a vã literatura.
O outro caminho, totalmente rebolativo, é o do corpo. Sim, o corpo: esta nossa parte perecível, que vai sumir um dia, para que as nossas palavras, eternas de alguma forma, tenham a razão, a fala final. Por ser perecível, o corpo só cabe em si, nada o preserva, muito embora as emoções elaboradas por ele possam chegar às palavras… Mas este seria o terceiro caminho, ali onde palavra e corpo caminham, não interessa agora.
Interessa apenas e exclusivamente o corpo, esta parte baixa oposta ao espírito. Ele tem uma história vasta na História do Teatro mas, choremos, ainda não se escreveu o precioso volume História do Corpo no Teatro. Valeria a pena, não tenho dúvida.
Para começo de conversa, o corpo não existe, existem os corpos. O corpo grego não é o corpo medieval, não é o corpo renascentista, não é o nosso corpo. Quando se aprende a olhar o corpo, é uma diversão analisar fotos antigas e perceber a linha do corpo de cada tempo. E em cada tempo, múltiplos corpos se comprimem – por idade, classe social, gênero… Há uma cadeia infinita de corpos ao nosso redor.
O curioso é que todos os corpos nascem livres. Nas crianças, apesar da ação rápida das exigências sociais, ainda se consegue ver vestígios da liberdade, gradualmente suprimida pelo jogo social. Para os artistas, na sua formação, é preciso treinar o corpo – contê-lo nos padrões estéticos da época, condicioná-lo ao espírito do tempo.
De toda forma, parece inegável o predomínio, na maior parte da história do corpo teatral, no ocidente, de uma submissão do corpo à palavra. A partir do texto, da ideia do autor, o ator desenha uma realidade física e esta realidade física obedecerá ao fluxo textual.
Direções como as de Debora Colker, em Dancing Days, ou de Duda Maia, em Elza, alcançam uma projeção enorme a partir deste debate. Pois não é que o corpo, nestes casos, insinua um estado de rebeldia, emancipação, voz própria? E é este o ponto principal aqui: em que grau se pode afirmar a existência de um processo novo, do nosso tempo, em que uma potência física desponta e aponta para uma outra construção do ator no palco?
A reflexão importa no drama, no teatrão (se é que ainda temos teatrão, nesta terra sem deus, na qual nem Dioniso emplaca…), na vanguarda e, em especial, no musical. Ao que tudo indica, a intensidade do corpo, plástico e comunicativo, se tornou ferramenta básica para a comunicabilidade da cena. Importa ter o corpo adestrado – e são muitas as ofertas de treinamento – mas, mais do que isto, é imprescindível trabalhar a “fala” do corpo. No musical, o corpo precisa ser música, precisa cantar (isto é um pouco mais do que dançar). Veja-se as coreografias de Victor Maia, agora mesmo nas cenas vibrantes de 70? Década do Divino Maravilhoso, no NET Rio.
No caso brasileiro, pois cada país hoje terá as suas amarras e solturas, vale perceber e dissolver os processos de mordaça e de enrijecimento corporal existentes para conduzir a estruturação do nosso corpo social. Penso nos trabalhos históricos de Angel e Klauss Vianna, Regina Miranda, Joana Ribeiro, Ana Bevilaqua, Suely Guerra – para citar de memória e de impulso. Para situar profissionais híbridos, que volteiam entre a sala de aula, a sala de ensaio e o palco.
Há uma tendência contemporânea para o apagamento de fronteiras, a aproximação das artes, a erosão dos limites dos fatos culturais. Em São Paulo, de 6 a 16 de dezembro, acontecerá um festival, o Risco Festival, em primeira edição, com atividades gratuitas e apoio da Secretaria Municipal de Direitos Humanos. Segundo as organizadoras, estarão em pauta diversas expressões artísticas, “dança, performance, música, artes visuais e foto, que se fundem e complementam para provocar uma reflexão sobre a criação artística produzida por todxs e para todxs…”
Ou seja, há um palco em movimento, ainda que o release do festival não fale no teatro. Mas o teatro em estado pleno precisa ser chamado à arena. Penso em tudo o que se pode fazer nas salas de aulas, para a formação do cidadão, a partir do trabalho com teatro na escola, tema de infinita grandeza e imenso poder estratégico. Na rusticidade das escolas públicas de hoje, o trabalho com o corpo pode ser revolucionário, para famílias em que a opressão é o cotidiano. O cala-boca tem uma extensão inacreditável.
Esta semana um evento universitário, aqui no Rio, dimensiona bem a extensão do debate. Organizado por professores da UNIRIO e da UFRJ, aborda o trabalho de corpo para autistas, com a oferta de oficinas para autistas, psicóticos e acompanhantes e familiares. A iniciativa impactante revela como o corpo cresceu, transbordou da cena e começou a ser uma fala social. Portanto, vale associar os dois continentes, corpo e cidadania. Mas não apenas por causa de uma nova essência do teatro ou da expansão do corpo na sociedade contemporânea.
Na verdade, o teatro é necessidade urgente na sociedade brasileira porque estamos no meio de uma crise histórica sem precedentes, uma ruína dos sonhos de gerações. E de séculos. Basta ler alguns documentos a respeito da história da Inconfidência Mineira (1789) para avaliar como e quanto temos sonhado com estas terras daqui em estado de cidadania livre, ainda que tardia. O problema é que esta tarde não chega. Assim, quem é massacrado pelo edifício social arruinado é o cidadão, o homem comum, aquele que mal começou a ensaiar a sua fala para entrar em cena neste salão de barões e viscondes chamado Brasil.
Para o homem comum que precisa ir ao teatro e dimensionar com sensibilidade a sua existência, a maestria da palavra deve ser incitada. Corporificada, incorporada, encorpada. Portanto, uma palavra nova, plena, redonda de si, carregada de sentimentos e impregnada por um corpo que sente e vive Brasil, este gigante calado há mais de meio milênio. Palavra e corpo não são palavras ocas, oratórias, vazias. Não são apenas recursos teatrais. São sinais vitais de uma sociedade que está aí e precisa mostrar as garras para ser reconhecida. Que as suas garras sejam palavras e palavras bem fincadas na beleza do corpo é a nossa última esperança. Pois o resto, é o caos.
FOTO: Angel e Klauss Vianna.
RISCO Festival, SP – de 6 a 16 de dezembro
Locais e endereços:
Aparelha Luzia (Rua Apa, 78)
Biblioteca Mário de Andrade (Rua da Consolação, 94)
CCJ – Centro Cultural da Juventude (Av. Dep. Emílio Carlos, 3641)
Centro De Referência De Promoção da Igualdade Racial (Av. dos Metalúrgicos, 155 (Cidade Tiradentes)
CRD – Centro de Referência da Dança – Galeria Formosa (Baixos do Viaduto do Chá, s/n)
Espaço Público – Av. Paulista, altura do número 3000
Espaço Público – Vale do Anhangabaú
Itaú Cultural (Av. Paulista, 149)
Instituto Tomie Ohtake (Rua Coropé, 88)
MIS – Museu da Imagem e do Som (Av. Europa, 158)
SP Escola de Teatro (Praça Roosevelt, 210 – Centro)
Teatro de Contêiner (Rua dos Gusmões, 43)
Teatro Décio de Almeida Prado (Rua Cojuba, 45)
Vila Itororó (Rua Pedroso, 238)
Informações para Imprensa
Canal Aberto Assessoria de Imprensa
III Encontro Circulando: caminhos com o autismo”.
Dias 6 e 7 de dezembro . (UNIRIO e UFRJ)
Coordenação geral: Professores Adriana Bonfatti e Joana Tavares (UNIRIO) e Ana Beatriz Freire e Fábio Malcher (UFRJ)
“Projeto Circulando: Ateliê de teatro para jovens com transtornos mentais” – projeto cadastrado na PROExC, implantado em março de 2013 na Escola de Teatro do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, através do oferecimento de ateliês de teatro para jovens que sofrem de transtornos mentais (autistas e psicóticos).
Em 2014 o projeto passou a oferecer ateliês para acompanhantes e familiares.
Desenvolvido em âmbito interinstitucional, o projeto estabelece parceria com o projeto “Circulando entre invenção: um novo dispositivo clínico para jovens autistas e psicóticos”, coordenado pela profa. Dra. Ana Beatriz Freire, do Instituto de Psicologia da UFRJ.