O coração do teatro: Ruth de Souza
De repente as palavras correm, se escondem, somem. Mesmo uma pessoa cheia de palavras pode, um belo dia, acordar e, em vão, tentar encontrá-las. Qual o remédio? Não sei. Quem sabe existe um país das palavras, um lugar no qual elas se exilam quando ficam cansadas de nós. E elas voltam, mas só quando a voltagem do querer se torna mágica.
Eu entendo – quem é que não se cansa, de vez em quando, da humanidade? Enfadonho, tanto palavrório oco, cínico, discursos de falseanos. Quem é que não se surpreende com a leviandade corriqueira dos seres humanos diante das palavras?
Sim, certamente desde Sócrates – o grego que calou as próprias palavras com cicuta para libertar as nossas – existe o compromisso de casar palavras com o pensamento e com a verdade. Mas, vamos combinar: se ele impôs este compromisso, foi para que muitos andassem… longe dele! E aí… palavras ao vento, estranhas ao pensamento.
Pois somos descendentes traiçoeiros de Sócrates e herdeiros de outras práticas, contraditórias, dissimuladas. Há um outro par, também grego, cuja existência contribui também para implodir nosso uso das palavras: as gêmeas siamesas democracia e demagogia.
Elas nasceram juntas, no mesmo bercinho, uma não vive sem a outra. Mas uma é venenosa, é aquela irmã que nasceu só para derrubar a gêmea. A palavra séria de uma é o engodo, na outra. É preciso estar atento e forte, portanto.
Quem sabe um outro figurão da grande família grega, hábil esgrimista do verbo, possa ser um caminho para dissolver o embate, liquidar o vazio da alma? Saída fácil? Ah, que ele venha, rápido. Será?
Talvez o impasse histórico que nos cerca não tenha qualquer solução, mas, convenhamos, o costume deste moço, de confrontar opostos, expor antagonismos e contradições, bem pode acalmar – sim, apenas acalmar – a sensação humana de que a vida é pequena e nada vale a pena. Quem sabe?
Sim, o teatro, caro leitor, pode ser este anjo protetor do eterno vazio. Se ele não traz a chave para o céu, com certeza permite aos seus fiéis flutuar livres, por instantes, no caudaloso fluxo humano de ser. É quando nos vemos ali, diante da cena, e acreditamos num mundo outro, pura invenção, para sentirmos e pensarmos de outra forma.
Pois bem. Há um teatro antigo, por aqui cada vez mais raro, aquele que poderíamos chamar de grande teatro, o teatrão, senhor das chaves da imaginação, primo do sonho. Hoje, há o teatro-realidade, teatro-documento, parente bastardo do velhusco, pois para este aqui o que interessa mesmo é brincar de dar a palavra à realidade.
Sinceramente, não sei se a palavra gosta disto ou mesmo se ela, convidada a desfilar no antigo lugar devotado à mais descarada representação, se ela funciona de verdade neste figurino e para quê, nele, ela funciona. Segundo algumas más línguas, quem vai ao teatro da verdade vai lá ouvir o que já sabe, portanto, vai espanar a roupa velha, disfarçar os rasgadinhos e remendos.
Mas a festa não para por aí: teatro da ilusão, teatro da verdade são opostos simplórios para dar conta do desvario de nosso tempo. O pior é que a quebra da ilusão cênica antiga e a brincadeira com a verdade se esfacelaram em múltiplas vertentes. Pois é, teatro, teatro do teatro, teatro teatralizado, anti-teatro e teatro de ruptura. Pós-moderno, pós-dramático, pós-pós. De toda forma, seja como for, um dado salta aos olhos de todos: múltiplas são as formas do teatro do nosso tempo. Mais por aqui do que em qualquer outro lugar do mundo…
O motivo? Ah, o Brasil precisa ser vanguarda mundial. E aqui, inventaram de apostar no estado de invenção absoluta, portanto rejeição do teatro convencional. Existe texto? – sou contra, brada o palco. Em breve teremos dificuldade para entender o que vem a ser mesmo teatro no sentido formal do termo.
Seremos, dentre as grandes cidades do mundo, os únicos lugares impossíveis para ver Shakespeare ou Molière ou Tchekhov ou Shaw ou Pirandello ou Jorge Andrade… Mas, mesmo sem relação próxima com a grande tradição, teremos viscerais encenações, demolidoras ou críticas, dos tais belos textos bolorentos. Teatro do teatro do teatro ou menos.
Logo, teremos um outro grande enigma: como entender as pessoas loucas que apostaram o ser e a alma para dar vida aos grandes textos de dramaturgos magistrais? Como explicar atores que não se formaram no cultivo do improviso, da cena desconstruída, da performance-puro-ato-de-criação?
Muitos aprenderam bastante na velha escola, deram o melhor de suas vidas por isto, se transformaram, transformaram as gentes ao redor, defenderam a ideia de que o fundamental é iluminar a aventura humana, para se surpreender diante de sua riqueza, contemplar tramas de vida emaranhadas.
Como entender a dimensão histórica de Ruth de Souza (1921-2019) sem termos a noção clara do que é o grande teatro e sem reconhecermos o sentido do grande teatro para a existência humana? Há um sentido do teatro enquanto estrutura profunda da vida que não se pode perder.
Nas entrevistas sobre a sua origem e sua formação, Ruth de Souza gostava de contar que aprendeu a ir ao teatro e a amar a cena graças aos ingressos que a sua mãe, lavadeira, ganhava das patroas. Assim, pode ver óperas e grandes espetáculos no Theatro Municipal – ia com o melhor vestido, toda arrumadinha.
Assim, se tornou, em 1945, a primeira artista negra brasileira a representar no palco do Theatro Municipal, como atriz do Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias do Nascimento e Agnaldo Camargo. A peça era O Imperador Jones, de Eugene O’Neill. Ou seja: grande teatro de absoluta qualidade dramatúrgica.
Sob a influência de Paschoal Carlos Magno, considerado por ela como um grande mentor, recebeu uma bolsa de estudos da Rockfeller Foundation, para fazer um curso de teatro na Karamu House, grupo fundado em 1941, o mais antigo teatro afro-americano dos Estados Unidos, e um estágio na Haward University, uma chance para mergulhar nas referencias do teatrão de alto coturno.
A carreira de Ruth de Souza no teatro brasileiro – além de sua extensa atuação no cinema e na televisão – revela o perfil de uma grande dama. Além da devoção ao TEN e do trabalho intenso com a equipe, ela foi dirigida por nomes históricos tais como Ziembinski, Turkov, Dulcina de Moraes, Sergio Cardoso, Nydia Licia, Amir Haddad, Antunes Filho, Ulysses Cruz. A dramaturgia encenada por ela reúne autores de impacto para a história do teatro, de O’Neill a novos autores nacionais, de Camus a Nelson Rodrigues e Jorge Andrade.
Dotada de aguda inteligência cênica, Ruth de Souza percebeu cedo, no início da crise do teatro moderno, uma crise objetiva de linguagem, algo da falência do teatro nacional. Trata-se da mesma velha crise, hoje assustadora, inclinada a reduzir tudo a jogo de invenção, ainda que pueril.
Ao comentar, em entrevista para a Série Aplauso, a concepção de Antunes Filho para Vereda da Salvação, de Jorge Andrade, cartaz do final da história do TBC em 1964, ela observou, entre lúcida e ácida:
“Era um elenco numeroso, com mais de 20 atores, encabeçado por Cleyde Yaconis, Raul Cortez e Lélia Abramo. Eu não estava cogitada para fazer a peça. Jorge Andrade foi à minha casa e me disse: “Ruth, a atriz que estava fazendo a Germana não consegue suportar a dureza dos ensaios e pediu para sair da peça. Vim aqui te convidar para o lugar dela”. Aceitei, claro, mas realmente trabalhar com Antunes Filho não é brincadeira. Foram seis meses de ensaios exaustivos. A pobre da Cleyde Yaconis ficava tentando se libertar de umas correntes que a aprisionavam; Aracy Balabanian andava no palco, de um lado para o outro, com uma expressão estranha, imitando um urso polar. Stênio Garcia tinha de levar todo o elenco para o sítio da Cleyde e se escondia no mato para assustar os demais. Cada ator fazia um animal. Cheguei para os ensaios resolvi interpretar um gato. Ficava andando de leve, quase na ponta dos pés, soltando miados suaves. Enquanto isso, o Antunes Filho estava lá, sentado e fumando. O resultado é que Vereda da Salvação foi um dos maiores fracassos do teatro brasileiro.”(Aplauso, p. 73)
Apesar de ser apenas uma fonte, ela é eloquente e permite sustentar um ponto de vista contundente – a crise atual do teatro brasileiro ainda é a crise do teatro moderno. Nasceu da incapacidade da classe de assumir sem constrangimento a singeleza do moderno, ato mínimo delicado como uma canção com João Gilberto.
Há, portanto, uma lógica implacável no processo histórico. Homenagear Ruth de Souza parece um ato simples – basta honrar o grande teatro, aquele que ela percebeu como um caminho para a libertação social, política, cultural, étnica e moral.
Consequentemente, o Rio de Janeiro deveria finalmente construir um teatro, num daqueles belíssimos casarões incendiados do Centro, para sediar o Teatro Experimental do Negro. Isto seria uma verdadeira homenagem.
O TEN erguido em memória à atriz seria um centro cultural no sentido maior do termo. Teria aulas de cultura geral e de cultura afro-brasileira, de teatro e de dramaturgia. Assinaria convênios com instituições congêneres do mundo, a Karamu House, por exemplo. Teria uma grande sala de espetáculos – Sala Ruth de Souza.
Duas madrinhas presidiriam o processo – a belíssima jovem IZA, um exemplo sublime de encanto brasileiro, e a irresistível dama da cena negra mais palpitante, Tais Araújo. IZA é de Olaria, Tais é do Méier, Ruth de Souza era do Engenho de Dentro – a magia suburbana precisa assumir o seu poder, para mudar a cidade.
E mudar o teatro. Inaceitável a inexistência de um teatro negro regular no Rio. Inaceitável a inexistência de um teatro negro carioca pródigo em palavras, pleno poder de pensar e dizer.
Talvez as palavras fujam quando as grandes damas partem e, no seu lugar, não vemos a permanência de seus nobres gestos. De que adianta louvarmos a grandeza absoluta de Ruth de Souza apenas com palavras, se as tais palavras são apenas sons fugidios vazios, não trazem obra elevada?
Evoé, Ruth – que tenhamos em breve um teto para, irmanados, falarmos da grandeza que foi ter, um dia, entre nós, junto do coração do teatro, você.
SERVIÇO
Cronologia básica de Ruth de Souza (1921-2019)
Teatro
TEN
o 1945 – O Imperador Jones
o 1946 – Todos os Filhos de Deus têm Asas
o 1946 – O Moleque Sonhador
o 1947 – O Filho Pródigo
o 1947 – Terras do Sem-Fim
o 1948 – Recital Castro Alves
o 1948 – A Família e a Festa na Roça
o 1949 – Aruanda
o 1949 – Filhos de Santo
o 1949 – Calígula
TEATRO DE CAMARA
o 1949 – Mensagem sem Rumo
CIA NYDIA LICIA – SERGIO CARDOSO
o 1952 – Vestido de Noiva
o 1959/1960 – Oração Para uma Negra
o 1961 – Quarto de Despejo
TEATRO BRASILEIRO DE COMEDIA
o 1964 – Vereda da Salvação
TEATRO POPULAR DO SESI
o 1967 – O Milagre de Anne Sullivan
MONTAGENS INDEPENDENTES
o 1978 – A Revolução dos Patos
o 1980 – Passageiros da Estrela
o 1983 – Requiém para uma Negra
o 1994 – Anjo Negro
o 1999 – 8 Mulheres
O teatro, a vida e o leito de sementes
O berço da vida – talvez se possa definir assim, de um jeito rápido, um leito de sementes. Aprendi na vida acadêmica, convivendo com pesquisadores de biologia, que o chão das florestas é um leito de sementes – abriga folhas, gravetos, húmus, uma multidão de pequenos animais e formas de vida e sementes.
Olhando-o, talvez os engenheiros ou os físicos pudessem formular a equação da vida: através de um jogo de incógnitas daqueles que eles amam, se x ou y, pois z ou w, eles nos permitiriam saber qual a potência de regeneração de uma floresta, indefesa diante do nosso poder de civilização.
Quer dizer, o leito de sementes, de certa forma, contem a floresta, portanto os cálculos diriam como e quando ele poderia reparar ou trazer a exuberante natureza de volta. De certa forma, toda a floresta está ali, pulsando, esperando para fazer valer a força da vida.
Penso que a arte, a cultura e em particular o teatro precisam ter os seus leitos de sementes. Seriam aqueles depósitos latentes da arte, prontos para desabrochar e fazer com que a pulsação verdadeira do ofício, puro amor à vida, se mantenha viva.
Mas, veja bem, senhor leitor. O leito de sementes, por conter em si a equação da vida do habitat ao redor, é algo natural – importa destacar. Ele é apenas o chão da floresta. Ali onde ela nasce e morre para renascer, naturalmente. Isto quer dizer algo muito simples, caro leitor – quer dizer que a arte, no seu conjunto, deve trazer ao redor de si, obrigatoriamente, o seu leito de sementes. Sim, convenhamos, bem entendido, se a arte acontece num ambiente de cultivo da vida. Se a sociedade é – ou se torna – uma clareira devotada à morte, o leito de sementes precisa ser arrasado ou mesmo não deve existir.
Sociedades periféricas, coloniais e dependentes, tendem a professar um estranho culto de adoração da morte, posto que se estruturam como lugares do precário, do descartável, do transitório. A humanidade aí acontece como fiapos, esgarçamentos, desigualdades, para preservar o desenho colonial geral.
As multidões de pessoas que tecem roupas em terras sombrias do mundo para os grandes armazéns de grife internacionais são descartáveis, mortas-vivas, sujeitas à escravidão – portanto, no culto à morte que as envolve, a arte não é necessária. Se por algum acaso ela acontece, ela não precisa de leito de sementes, pois tudo o que se espera desta arte é que ela exista apenas como mortalha social.
Num país como o Brasil, uma colcha esfarrapada de retalhos de gritante desencontro entre as partes, não existe o lugar da arte como prática cultural efetiva, institucional. A arte se dá no lugar do precário, num espaço de morte social. Portanto, pensar em leito de sementes para o teatro, aqui, é um ato urgente. E incendiário. Um caminho possível para por em xeque a dinâmica de morte social.
E o que seria esta ousadia transgressora? Seria, por exemplo, seguir pegadas de um Artur Azevedo (1855-1908). O tema é muito extenso, ultrapassa bastante as dimensões desta coluna, vale indicar apenas uma vertente do caso. Por exemplo – não dá para focalizar a tensão teatro popular x teatro acadêmico. O ângulo escolhido é só um: a formulação de projeto social para o teatro.
Artur Azevedo não tinha ilusão a respeito do seu sucesso popular, pois mais de uma vez provou a instabilidade da plateia brasileira. Ele não se enganava – percebeu que a aclamação era volúvel, o culto ao teatro verdadeiramente não acontecia.
Assim, para a Exposição Nacional de 1908, comemorativa do centenário da Abertura dos Portos, Artur Azevedo concebeu um programa de atividades digno de seu amor ao teatro. Aliás, a atuação de AA à frente da comissão de festejos teatrais seria um excelente objeto de pesquisa e daria um belo livro, como parte dos festejos do próximo bicentenário da Independência.
O conceito básico do seu projeto envolveu dois eixos – o estímulo à dramaturgia nacional, força sema qual não se ergue o teatro de um país, e o fortalecimento da prática teatral, graças à criação de uma Companhia Dramática Nacional, integrada por artistas profissionais brasileiros.
O dedicado autor trabalhou duro para realizar o projeto, um festival de teatro muito bem pensado, realizado no Teatro João Caetano, erguido ali na Praia Vermelha – a Urca, então, praticamente não existia, vale a ressalva. Esta foi a última obra do grande autor – pois ele morreu neste mesmo ano e muitos conjeturam se a fadiga não teria contribuído para encurtar os seus dias.
O teatro da exposição abrigou a montagem de 15 peças, uma seleta de textos clássicos brasileiros e textos atuais. Assim, a proposta atuava em dupla chave, a difusão da dramaturgia histórica (Martins Pena, Machado de Assis, Franca Júnior, José de Alencar e Artur Rocha) e o incentivo aos contemporâneos (Coelho Neto, Filinto de Almeida, Goulart de Andrade, Júlia Lopes de Almeida, Pinheiro Guimararães, José Piza e Artur Azevedo).
As apresentações aconteciam às segundas e às sextas feiras e garantiram um lugar de nobreza para o teatro nacional. Neste mesmo período – ou melhor, começando um pouco antes – Artur Azevedo lutava por uma outra grande causa que, na sua concepção, transformaria o teatro brasileiro: a construção do Teatro Municipal.
É legítimo supor que, para o dramaturgo, a companhia criada para a Exposição Nacional poderia ser a companhia de teatro oficial do país, encarregada do palco do futuro grande teatro em obras em 1908. AA não viu a inauguração do Teatro Municipal e, logo, teve menos um dissabor na vida.
Assim como a Exposição Nacional se desfez, o teatro da exposição, feito em madeira e estuque, desapareceu. A proposta monumental de estímulo ao teatro brasileiro pensada por Artur Azevedo se perdeu em terra salgada, pois os terrenos da Praia da Saudade não se constituíram em leito de sementes favorável à arte.
Nem pense, caro leitor, em contra argumentar, alegrar-se com a afirmação de que ali, na Praia Vermelha, estão os cursos de teatro da UNIRIO, a mais antiga faculdade de teatro do país, e da UFRJ. A rigor, tais cursos foram parar por ali por mero acaso e não existe na instituição qualquer memória a respeito do velho projeto de Artur Azevedo.
O ponto que se desejava atingir aparece aqui. Neste momento, em que a crise grassa por toda a sociedade brasileira, acenando com uma sufocante redução de recursos, e no qual as práticas de arte não se consolidaram o suficiente para surgirem como realidades essenciais, importa formular projetos e sair na batalha a seu favor.
Não são projetos isolados, simples propostas de montagem para a sobrevivência imediata. São projetos em que se precisa pensar o teatro como leito de sementes – sua realidade, sua prática, sua densidade social, sua história e seu futuro. O teatro carioca – e talvez o teatro brasileiro – tem se proposto como se fosse um capítulo da moda do momento, das sensações e do gosto do agora.
Isto significa que o teatro, ele próprio, se vê como prática descartável, tão raso quanto um novo modelo de vestido ou de maquiagem. E neste jogo reside todo o perigo, pois o palco cede tanto ao gosto do momento que se descaracteriza, assina a sua sentença de morte.
Ao formular o programa de teatro para a Exposição Nacional, Artur Azevedo apostou num teatro em que havia um pouco mais de exigência dos recursos da arte, um pouco menos de facilidade comercial. E apostou na identidade da arte ao recorrer aos grandes textos do século XIX – textos cômicos, por sinal.
O país cresceu, o Rio virou uma megalópole, do mar da Urca nasceu um bairro, muita gente boa estuda teatro e nem tem ideia de quem foi Artur Azevedo – pois este crescimento nacional, na verdade um inchaço, não foi acompanhado por ações elementares para cimentar a vida teatral.
Exemplos? Como os concursos de dramaturgia, municipais, estaduais, federais. Um absurdo revoltante – precisamos conhecer quem se dispõe a escrever sobre a nossa vida, precisamos coroá-los com louros, ver os seus textos em cena.
Vivemos no desprograma cultural. Ou no programa ignorantal. Não temos políticas de apoio a grupos e companhias estáveis de teatro. Não temos programas de incentivo a montagens de clássicos nacionais. Não temos programas de ida ao teatro para estudantes dos diferentes níveis escolares. Não temos políticas de incentivo a novos talentos. Não temos projeto de nação, não sabemos o que queremos ser.
Por isto, é de admirar a existência de iniciativas tais como a nona edição do Concurso Jovens Dramaturgos do Espaço Cultural Escola Sesc, cujas inscrições se encerrarão esta semana. A ideia é muito bem urdida – o público alvo abrange os jovens autores entre 15 e 29 anos de idade.
Para concorrer, basta enviar um texto inédito, a ser avaliado por uma curadoria, orientada para julgar a originalidade, a estruturação do texto e o uso da linguagem cênica. Cinco autores serão selecionados para uma residência artística em dezembro, com a participação em oficinas orientadas por profissionais de referencia. Além disso, haverá a publicação dos textos e leituras encenadas.
A outra novidade alentadora é o lançamento de uma montagem profissional de O Oráculo, texto de Artur Azevedo, cartaz com uma temporada tímida no horário alternativo do Teatro Vannucci, apenas este mês. A equipe tem perfil heterogêneo – a diretora Ana Miranda, professora de teatro e atriz, é iniciante e, por isto mesmo, vale a pena conferir o tratamento que ela dispensou ao clássico.
Talvez algum engenheiro ou um físico, revolucionários, decidam apostar no estudo da transformação humana. Quer dizer, em lugar de calcular vetores e forças de atuação sobre a matéria inerte, quem sabe eles voltem suas mentes para a transformação humana e formulem a equação da vida social.
ela, considerando a prática do teatro e o seu leito de sementes, eles indicariam em números e fórmulas a potência de transformação das pessoas quando expostas a uma cena teatral essencial, de pura arte. Talvez precisemos desta revolução copernicana – ou leonardiana – para provarmos a força da arte.
E assim, quem sabe, ainda que vivamos nos trópicos assombrados pela morte social, tenhamos, enfim, governos menos canhestros, capazes de sair do lado obtuso da política, para contemplar a grandeza luminosa da arte. Certamente o nosso cientista discursará e nomeará o ponto central de sua descoberta: não há vida, humana vida, fora da humana arte.
SERVIÇO
IX Concurso Jovens Dramaturgos
Inscrições até o dia 25 de julho, 5ª feira
Podem participar jovens de 15 a 29 anos de todo o país.
Para informações e inscrições os interessados devem acessar o regulamento disponível em: espacocultural.escolasesc.com.br
Peça: ‘O Oráculo’
Local: Teatro Vannucci – Shopping da Gávea
Endereço: Rua Marquês de São Vicente, 52, 3° Piso – Shopping da Gávea, Gávea
Telefone para informações: (21) 2274-7246
Temporada: 07 de agosto a 28 de agosto
Dia: Quarta-feira
Horário: 21h
Valor dos ingressos: R$80,00 (inteira) e R$40,00 (meia)
Forma de pagamento: na bilheteria do teatro (em dinheiro) e outras formas de pagamento no site: www.tudus.com.br
Duração do espetáculo: 60 minutos
Classificação etária: Livre
Lotação: 400 lugares
O teatro tem acesso para deficientes / acessibilidade
O teatro do amor ao povo
O amor está no ar – ou no palco. Aliás, se olharmos a História do Teatro Brasileiro, este sentimento doce e encantador está em cena faz tempo. Quem sabe, desde sempre. Não é o caso aqui de tentar pensar as razões do fato, importa apenas constatar a extensão da coisa. Ela é memorável. Tão memorável que causa bastante confusão.
Como assim? Ah, olhe ao redor. Uma parte inquieta do teatro brasileiro, sobretudo a ala mais-do-que-jovem em especial, ferve contra esta situação. Aliás, de certa forma, há mais de um século, sempre ferveu. Eles detestam a cena de amor. Para este segmento, o teatro existe e deve ser feito para dependurar a alma humana de cabeça para baixo, dissecá-la, transformá-la numa radiografia do imediato e atual. Feito o ato de autópsia, resta focar as estruturas últimas, as mais decisivas, aquelas compartilhadas com o resto do mundo.
Portanto, a mera expressão sentimental, lírica e delicada, seria um equívoco. Ou uma perda de tempo. O sentimental seria sentimentaloide por princípio, eternamente. Logo, visão de mundo superficial, distorcida. Estaria desde sempre condenado, pois, afinal, as manifestações amorosas correntes seriam a celebração piegas de um amor sonhador, pequeno-burguês, divorciado de um sentido mais autêntico do viver. De roldão, estaria diluído no caso o sentido de propriedade, entre outros atrasos de vida. Em resumo, algo para refutar como a quintessência da caretice.
A situação contempla pensadores avançados da vida social, viabiliza a construção de um teatro de pesquisa por vezes bastante hermético, para iniciados. Mas, para o teatro em geral, o raciocínio implica em algo grave, bem se pode imaginar. Ao se recusar a falar de sentimentos universais simples, diretos, envolventes, o palco se lança num gueto estreito, se distancia do homem comum. Como o pobre cidadão comum precisa de arte para viver a vida (ninguém, no nosso tempo, consegue viver sem arte), ele corre, então, para as canções românticas preocupadas em aquecer os corações. Existem outras panacéias, mas a música popular ainda é o abrigo por excelência do cidadão órfão do teatro acolhedor de outrora.
O que isto significa enquanto História? Bom, vale ir por partes. Dizem que foi Artur Azevedo (1855-1908) – sempre ele, o irresistível – quem botou as canções cotidianas, sentimentais e/ou irreverentes, na boca do povo. Com seus versos fáceis, mas inspirados, muitas redondilhas, aliado a músicos hábeis, AA conseguia fazer o povo sair do teatro cantando. A noite teatral se prolongava pela vida e o sabor da cena virava um deleite cotidiano. O grande mistério está aí: como foi que este casamento se perdeu?
A magia conquistada por nosso maior revisteiro – com certeza ele foi o grande inventor da revista teatral brasileira – não surgiu por combustão espontânea. Sim, sua trajetória significou a vitória da comédia. E o caminho de conquista do amor popular fora iniciado com Martins Pena (1815-1848), muito embora nos tempos deste o cômico fosse, aqui, um gênero menor. Nos tempos de Martins Pena, numa noite teatral em cinco atos, a tragédia ou o drama com três atos era o ponto alto do programa, completado, por exemplo, por um bailado e uma comédia, cada qual apenas com um ato, para desanuviar o ambiente.
Mas é bom frisar – João Caetano, o ator brasileiro de todos os tempos, dedicou-se ao drama em especial e a tragédias dramáticas, digamos, nas quais deixava à mostra o fígado e o coração. Ele foi um astro popular fulgurante. O jeito desmedido de ser foi, inclusive, um senão interposto contra ele por observadores mais intelectualizados, convencidos de que o ator extrapolava para ganhar o público. Apesar do teatro declamado de seu tempo, de raiz literária forte, ele foi um tigre da Praça Tiradentes – note-se que a expressão tem ressonâncias históricas complexas. Ele espirrava mais corpo e sentimento do que espírito, digamos… opção inferior para a nata intelectual.
Os comediógrafos que se seguiram a Martins Pena – Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), França Júnior (1838-1890) e mesmo os doutos literatos José de Alencar (1829-1877) e Machado de Assis (1839-1908) – viram sem opção a ascensão irreprimível do gênero cômico no coração do povo, ainda que os dós de peito e as lágrimas furtivas continuassem a ser cousa de muito prazer. Apesar do nariz torto dos acadêmicos, a cena teatral teimava em caminhar junto com o gosto popular. O mais espantoso é que, lida hoje, ela parece um episódio de candura. Algumas velhas condenações soam ininteligíveis para nós.
Há, no entanto, uma certeza: havia uma comunhão pecaminosa. Quer dizer, o teatro brasileiro era sentimental, sentimental demais e não tinha vergonha de se dizer assim, porque assim o povo o fazia. O teatro gostava disso, era natural. A constatação funciona para entender, inclusive, de onde veio o teatro de Nelson Rodrigues (1912-1980), um jornalista que certamente ficou impregnado/impressionado com o sentimentalismo da cena ao seu redor. Os textos transbordavam e outro tanto surgia por obra dos atores. Sem considerar uma troca fervorosa palco-plateia, não se entende Leopoldo Froes (1882-1932) ou Itália Fausta (1878?-1951).
A pergunta vem fácil – por que motivo, no teatro brasileiro, este filão de comunicação palco-plateia se esgotou? Se olharmos com atenção para qualquer palco do mundo com alguma expressão, de Buenos Aires a Londres, passando por Madrid, Paris, Nova Iorque, veremos por lá instalado e bem instalado este cenário teatral simples devotado à alma do homem comum. E nós? Não temos pesquisas extensas, mas uma primeira impressão aponta para um jeito estúpido de ser nacional colonizado, no qual domina a voragem para estar na moda, estar a cavaleiro do futuro, de braços dados com o ritmo do mundo. Temos horror ao risco de sermos taxados de caipiras.
Se esta primeira explicação for considerada válida, muito da culpa do problema cabe ao Rio de Janeiro, a raiz estaria na síndrome cortesã que nasceu aqui. Já repararam como o Rio de Janeiro precisa estar na moda, ser moda, não ser caipira e, pior, dizer que os outros são caipiras? O sentimento teria começado cedo, um dia ainda escrevo a respeito, mas ele se impôs de fato e de direito com a vinda da família real.
Alguém consegue ter ideia do choque cultural que deve ter sido quando a aldeia tosca, sujinha, pobre mesmo, da noite para o dia, por obra do arrojado Napoleão, se tornou capital de um reino europeu??!? Deve ter sido adrenalina na alma, para nunca mais se recuperar. Assim nasceu um impulso louco para buscar a crista da onda a qualquer preço, negar o que se é, esconder a caipirice sob verniz de Europa ou o que for.
Portanto, há uma corrida no teatro brasileiro pela novidade de amanhã que espelha esta ânsia de não ser o que é, de parte do povo. Quando as radionovelas e as telenovelas surgiram, elas prenderam nas casas muita gente que adorava teatro, ainda que a rua fosse um programa arrebatador. O teatro começou a empalidecer, mas sobrevivia. Mas, logo de imediato, puxaram o tapete da velha cena.
Pois a seguir eclodiu a ideia do teatro moderno, um teatro de conceito e de invenção, uma cena de poesia na qual o sentimento devia ser letra morta, a favor de visões de mundo mais sofisticadas, inclusive o pastiche dos sentimentos. Neste jogo, o compromisso da alma cênica com a verve sentimental se perdeu. A canção, que não era boba nem nada e conquistava uma vida autônoma, liberta do papai teatro, aproveitou a brecha, agarrou os corações e se lançou na vida. O teatro foi se reduzindo, caminhou para ser programa bacana – até os teatros dos subúrbios sumiram.
E assim foi – o teatro foi se encolhendo tímido, intelectualizado, ensimesmado com os desafios essenciais do mundo moderno e ficou cada vez menos popular. Pensar o teatro brasileiro hoje significa lidar com estes dados – não se trata apenas de um problema socioeconômico, do baixo poder aquisitivo do brasileiro diante duma mercadoria cara. Sim, o teatro brasileiro é caro para os brasileiros. Basta fazer uma conta simples: calcule dois salários mínimos, portanto um rendimento já bastante considerável na pirâmide nacional dos salários, veja o preço de dois ingressos, imagine ao menos um táxi e umas pipocas. Veja o que a soma representa como percentual dos rendimentos: é pesado.
Mas, ainda que caro, ele poderia seduzir, ser uma extravagância romântica para um casal trabalhador – se ele mobilizasse, com as suas propostas, o interesse do casal. Não mobiliza, eis a verdade. Muitas peças encenadas no Rio possuem um horizonte de interesse bastante restrito, esgotam o público-alvo em curtas temporadas e, para alguns segmentos, são absolutamente desinteressantes. Nem de graça as pessoas desejam ver certos cartazes. Isto significa reconhecer que o público teatral encolheu.Existe a proposta sensacional do Sesc, com ingressos baratos – mas boa parte da programação se inclina para esta faixa de interesse restrito.
A síndrome – talvez ela pudesse ser nomeada como síndrome do elitismo absoluto ou da ruptura com os corações partidos – acaba sombreando o teatro em geral. Quer dizer, ela cria dificuldade para o teatro desavergonhado que decide embarcar no compromisso com o coração popular, em particular os musicais. O Rio de Janeiro é um dos raros centros teatrais do mundo em que não existe um mercado consolidado de teatro comercial, popular – ou popularesco, se quiserem. Isto significa reconhecer que é um mercado sem o coração do mercado.
Um dado curioso, espantoso até, é que muitos atores não se sentem constrangidos em trabalhar em telenovelas, se sentem bem como protagonistas de dramalhões rasgados na televisão, alguns dotados de um desenho sentimental bastante simplório. Grandes atores, eles encantam o público na defesa de cenas que beiram o pastelão. Os mesmos atores, porém, não se sentem à vontade para defender tranquilos uma peça sentimental, equivalente, no teatro. No palco, tem que ser a grande arte inefável.
O mais inusitado é que alguns destes grandes nomes se afirmam como cidadãos politicamente engajados, ativistas. Trabalham na televisão sem drama e, nos palcos, rejeitam os dramas de gosto mais popular, em favor de pesquisas arrojadas de linguagem. De quebra, muitos repudiam os musicais. Assim, nem ocupam o palco com equivalentes estéticos das novelas, nem contentam o público construído, amante da TV, na suposição que a arte legítima precisa ser um tipo de desvario que o povo não entende. No seu preciosismo, deixam de montar autores como Ibsen, Tchekov, Durenmatt e os clássicos nacionais, por exemplo, hoje bastante próximos da sensibilidade do homem comum.
Parece um saco de gatos? E é mesmo. A pulsação mais plena e acabada da colonização passa por aí. Não reconhecer ou não buscar reconhecer a própria identidade, não se identificar com a dinâmica peculiar da terra, não reverenciar a própria arte ao ponto de levá-la para a praça, persistir num padrão estético expressivo que fala mais ao ego do que à arte ou ao público é algo muito doido.
Por isto, dá um prazer imenso constatar que existem espetáculos sem medo de ser pop, de ser povo, de esbanjar sentimento, exalar amor e emoção. Aboliram o ranço elitista. São peças que abraçam o povo e formam um casal sem vergonha, em benefício da pesquisa a respeito da sensibilidade brasileira.
É isto, em resumo. O teatro brasileiro feito no Rio precisa se espraiar pela cidade, invadir o Méier, Todos os Santos, Engenho de Dentro, Madureira e Marechal Hermes. Sacudir esta gente. Ele precisará ir mancomunado com a MPB, pegar de volta para a cena a moça brejeira fugitiva, que se mandou para o rádio nos idos dos 1930/1940. Gente, este teatro vai fazer sucesso, o lugar ficou vago.
Um abre-alas importante, malicioso e inteligente, vai voltar ao cartaz no Imperator e levantar a poeira do tema. Quem perdeu, deve tratar de ir ver. O musical é um gingado só, da ideia aos corpos. Trata-se do delicioso Quando a gente ama, espetáculo concebido com maestria por João Batista ao redor das músicas de Arlindo Cruz. Histórias rápidas de amor estão entremeadas com as canções, entre as quais as consagradas O que é o amor, Casal Sem Vergonha, O Show Tem que Continuar.
Simples assim. Portanto, mais uma página no novo musical Brasil, um ato de amor. O que estará em cena é um episódio luxuoso do casamento entre o teatro e a MPB, no caso, o samba. O elenco honra o tema – reúne Alexandre Moreno, André Muato, Cris Vianna, Édio Nunes, Lu Fogaça, Rodrigo França e Vilma Melo. Consegue imaginar? Importa ver, para saudar o amor nestes tempos em que o sentimento anda difícil por toda a parte. Mais, até: precisamos pensar teatro brasileiro. O tema, urgente, se obriga a explorar este mistério, agora já um tanto antigo, a distância entre a arte da cena e o povo do país. Chegou a hora do amor ao povo entrar em cena. Ou o teatro vai desaparecer daqui. Por falta de amor, exatamente.
SERVIÇO
Quando a gente ama
Espetáculo de João Batista com músicas de Arlindo Rodrigues
Data: 19 de julho a 04 de agosto
Horário: Sextas e sábados, às 20h. Domingos, às 19h
Local: Imperator – Centro Cultural João Nogueira (Teatro)
Endereço: Rua Dias da Cruz, 170 – Méier/RJ
Valor do Ingresso: Plateia inferior e balcão: R$ 50 (inteira) e R$ 25 (meia)
Local de venda: Bilheteria do Centro Cultural, Terça e Quarta: 13h às 20h30; Quinta a sábado: 13h às 21h30; Domingo: 13h às 19h30. Ou através do site ingressorapido.com.br
Classificação: 14 anos
Duração do espetáculo: 90 minutos
Informações: (21) 2597-3897 (das 9h às 12h/13h às 18h). Exceto Feriados.
O amor e o significado da palavra Prêmio
De repente, você ama – o amor, esta estranha loucura, conduz as suas ações a favor do objeto amado. Tudo o que você deseja é celebrar a grandeza de sua fonte sublime de inspiração. Fanfarra, louros, troféus e toda a glória precisam desabar dos céus, tudo é pouco para promover uma aclamação grandiosa.
Numa visão ingênua, os prêmios funcionariam assim, a reboque do afeto. Amou, acionou a engrenagem da celebração total. Tanto mais seria assim, quanto mais heterogêneas se tornaram as comissões julgadoras: na atualidade, por aqui, vai se espalhando a concepção de que os jurados devem representar múltiplos olhares, não devem ser apenas e absolutamente críticos de teatro, como se pretendia outrora. Seriam amantes simples, ingênuos? Ou não? Amantes de verdade?
Nos velhos tempos, as comissões eram integradas por críticos atuantes na imprensa. A vantagem da situação era que, com frequência, os jurados viam quase tudo – ou, ao menos, o máximo de tudo. E escreviam a respeito de tudo. Era difícil acompanhar toda a temporada, mas o crítico era naturalmente obrigado a tentar acompanhar: escrever num jornal ou revista significava ver os cartazes e desenvolver uma visão a respeito.
A peste nossa de todo o sempre
“Contradição insolúvel – desafio lógico inédito para o mundo – identidade Brasil. Por aqui não tem aquela história de tese-antítese-síntese. Somos uma civilização (seria mesmo este, o nome da coisa?) ou, melhor dizendo, uma confusão nova, talvez tese/antítese/pow. Ou pin-pow.
Não, não estou falando de nenhum tiro ao alvo ou do velho soldadinho, estou falando mesmo da velha cantiga da infância, tiros imaginários incapazes de resolver qualquer coisa que seja, pura arte de brincar. Ou completa manifestação de impotência, já que somos adultos. O amargor de perceber forças antagônicas, opressoras, que persistem atuando, sempre, sem uma resolução lógica positiva. Na hora do perigo, não há desenlace.
O que isto significa? Significa que aqui os contrários caminham juntos, persistem em estado de fúria, desafiam o pensamento e vão dar em nada. Nada caminha de verdade. A vontade de pensar um diagnóstico brasilis surgiu por causa de umas leituras do século XIX. Estou amando loucamente, como sempre, faz tempo, o irresistível Artur Azevedo (1855-1908). Por mim, ele seria decretado baluarte absoluto da alma nacional.