A inutilidade do teatro
A pergunta persegue os artistas: para que serve o teatro? Qual o sentido de continuar a fazer uma arte quase tão velha como a história do mundo ocidental? O cidadão de hoje se interessa por este rito do passado? Sim, pois deixando de lado as polêmicas, o teatro nasceu na Grécia entre os séculos VI e V a. C . – é muito tempo. O ser humano segue sendo o mesmo?
Pois sim, estou considerando Ésquilo (525 a.C.- 428a.C.) como o marco inicial do nosso teatro. Ok, reconheço que, no fundo, de sua obra para cá, não existiu uma forma estável de arte que possa ser chamada de teatro. De Atenas até hoje, da Grécia ao Rio de Janeiro, muita coisa se fez nos tablados, com formas bem diversas, a tal ponto que parece estranho usar o mesmo nome para tudo, falar simplesmente em “teatro”.
Mas, se olharmos o sentido profundo do gesto, o ato de representação, talvez seja aceitável o uso da mesma palavra para falar disso tudo. A opção parece correta, muito embora a prática de cada uma das épocas teatrais, entremeadas por épocas sem teatro, surja como realidade de arte bem específica. Quer dizer, o teatro grego difere muito do teatro medieval ou do teatro elisabetano ou do nosso teatro, para ficar em poucos exemplos.
O que será que eles têm em comum, todos estes teatros, para que mereçam um mesmo nome? Tudo indica que é a sua função social, de falar do sentido profundo da vida dos seres do seu tempo para os seres do seu tempo. Não, não é exatamente um espelho da vida ou uma vitrine de almas – o palco sugere pretender um pouco mais, talvez seja a forma viva, movente, da sensibilidade da época. E este homem, permaneceu estável, olhos arregalados, olhando a cena este tempo todo…?
O debate se apresenta desafiador. Até no nosso próprio tempo, parece difícil falar de um único e mesmo teatro. As formas e os sentidos teatrais existentes aqui ao redor apresentam uma variação surpreendente. Algumas peças insinuam querer ficar longe de qualquer profundidade da alma, são meandros faceiros e rasos ao redor da vida, meneios de pura diversão. Outras convidam os contemporâneos para mergulhar de cabeça nas dores da existência, um pouco como se a vida fosse acabar amanhã de manhã.
Contudo, alguns traços da atualidade apontam para uma nova visão do fato teatral – em lugar de situar a alienação e o automatismo ali onde impera a diversão, ou melhor, o divertimento, haveria, em qualquer ato de representação, a saída de si. A celebração do existir. Quer dizer, a diferença entre teatro comercial e teatro de arte não seria mais de condenação do primeiro, como ato estúpido, mas sim, antes, o reconhecimento de graus diferenciados de reelaboração da sensibilidade. Assim, o outrora demonizado lugar do consumo seria deslocado, da alienação para a participação efetiva na ordem vigente. Conversa longa e densa…
Para quem é engajado, para quem defende a letra das leis do marxismo como princípios fundamentais inquestionáveis do pensamento, este raciocínio é absurdo. Para este contingente, não haveria nenhum sentido transcendental positivo na arte de mercado. O mercado seria um mal em si. Devastador.
Contudo, para o teatro, aquele lugar que fica depois da bilheteria, este caminho do pensamento torna a vida difícil, pois o poder do mercado neutralizaria muito do alcance transformador que se cogitaria para a cena. Como pensar hoje a relação entre capital e arte, bilheteria e palco? Recorrer ao Estado? Se o Estado paga a conta, não há um dirigismo? O que pretende, o patrocinador?
O problema é a universalidade do consumo. Não estaríamos nunca fora do universo do consumo, no nosso tempo, digamos – no máximo, frequentaríamos faixas diferentes de consumo. A peça contundente de denúncia seria comprada por uma plateia engajada. A peça de valores sociais correntes, pequeno-burgueses, seria escolhida por pessoas identificadas com um outro horizonte social. A diferença, no fundo, seria de revestimento ideológico: cada plateia estaria apenas flertando com as suas certezas.
Mas, de repente, na grande arte, todos testariam os limites das suas convicções, numa outra faixa de consumo, nobre. No caso dos grandes autores, dos grandes encenadores, a mercadoria adquiriria outro perfil: se o consumidor superasse a sedução inebriante do produto chique, poderia pensar/sentir outra coisa, fora das suas certezas, forçadas por uma poesia radical?
Mas, perguntará o leitor ranheta, onde está o autor? O autor, hoje, não se tornou um escriba devoto do jogo de cena, uma espécie de escravo dos atores? Este autor, preso na sala de ensaio, consegue mergulhar nas profundezas da alma humana, para obrigar a plateia a ficar com a respiração em suspenso, o cérebro paralisado? É possível trabalhar no teatro do nosso tempo, de comunicação imediata, com um propósito transcendental agudo?
As perguntas são constrangedoras num teatro como o brasileiro, no qual os autores sempre buscaram, em diferentes graus, o amor do público, a consagração através da identidade de sentimentos. Não temos uma história de dramaturgos raivosos, desafiadores, dispostos a rasgar a fantasia dos próximos, despir as almas.
Em geral, nos fantasiamos juntos, desfilamos no mesmo bloco de sujo, buscamos uma cumplicidade sentimental, evitamos a corrosão. Mesmo autores ácidos – como Plinio Marcos (1935-1999) – falam para uma plateia aliada, em que existe um pacto de reconhecimento solidário maior do que o drama, anterior ao drama. A bofetada nos escapa.
De certa forma, o nosso drama é o drama do outro. Nelson Rodrigues (1912-1980) fura abcessos, mas a carne sob o foco é suburbana e a plateia, zona sul. Jorge Andrade (1922- 1984) talvez tenha ido mais longe, faz a autopsia do paulista – porém o ponto de partida dos textos mira o cadáver do cafeicultor quatrocentão, do bandeirante, um ser já meio morto.
Talvez fosse importante ter no Rio um festival de teatro dedicado à dramaturgia brasileira – um evento totalmente voltado para a discussão da história e do presente do drama aqui. A iniciativa teria como objetivo abrir gavetas, tanto as velhas, emboloradas ou não, como as atuais, bem presentes. Falo do Rio de Janeiro por causa da linha histórica – pressionar ali onde o foco esteve.
Deveria ser um fazertival – um festival de fazer. Oficinas e encontros de trabalho processariam técnicas e metodologias do ato de escrever. Se o evento contasse com a benção de um patrocínio do British Council, poderia ter, em paralelo, uma mostra britânica de dramaturgia. Incorporamos muito pouco da herança inglesa, que passou ao largo por aqui.
A atividade seria oportuna para favorecer o pensamento hoje a respeito da função social do teatro. Para o país, a pergunta mais urgente, no meio da crise impressionante em que vivemos, seria a respeito da força do palco para impulsionar a transformação da sociedade brasileira. Existem no país almas cândidas que ainda acreditam no poder do teatro para mudar as pessoas e a sociedade, pelo simples fato da cena acontecer – eu sou uma delas.
Enquanto tal não se dá, é possível pensar a respeito da função dos festivais de teatro hoje, em especial neste país gigante chamado Brasil. Para quê fazer festivais por aqui? A pergunta nasce naturalmente diante da programação especial da MITsp – Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – uma mostra de teatro que tem perseguido o papel de ser revolucionária em suas proposições, fazendo jus à mania brasileira de ser vanguarda.
Nascida como uma mostra internacional, experimental, a MITsp desde 2018 passou a abrigar um Programa de Internacionalização das Artes Cênicas Brasileiras. Pois nesta terça, 27, serão encerradas as inscrições para a seleção de obras brasileiras para a mostra. A convocatória permitirá a definição da participação brasileira na programação de 2020, quando a mostra acontecerá no período de 5 a 15 de março. O formato atual viabiliza um festival de aspecto curioso, no qual a cena brasileira, programada na MITbr, contracena com espetáculos internacionais selecionados pela curadoria. Ousados, não?
O formato chama a atenção quando comparado ao do Festival Internacional de Edimburgo – talvez o maior festival mundial hoje, cuja programação abrange uma paleta surpreendente de formas de arte. Grandes espetáculos de teatro, música, dança, mímica, performance marcam presença, exposições de arte e variados eventos culturais pontilham a agenda da capital escocesa. Há o registro erudito, o pop, o cult, o experimental.
Na edição deste ano, encerrada ontem com uma tradicional queima de fogos, dois acontecimentos merecem alguma reflexão. De saída, vale pensar a extensão da festa de encerramento, o Virgin Money Fireworks Concert. Foi um acontecimento monumental, ao ar livre, com a Scottish Chamber Orchestra e a mezzo soprano Catriona Morison apresentando músicas previamente anunciadas, para que a audiência pudesse se preparar para o que iria ouvir – e foram mais de 400 000 fogos com a música.
Na divulgação, a produção comentava a previsão de bom tempo e convocava a plateia a comparecer com toalhas de piquenique e lanches práticos, que fossem incapazes de criar obstáculos para a enorme massa de público reunida ao redor do castelo. A ideia é a de um evento participativo, no sentido de estar em comunhão social sob as luzes de efeito e o som espetacular.
Curiosamente, na abertura do festival houve uma convocatória semelhante. Foi programada a apresentação da Los Angeles Philarmonic, sob a regência de Gustavo Dudamel, no Tynecastle Park Stadium, com entrada livre. A proposta buscou atrair para o estádio de futebol novos interessados em arte.
Não foi a única apresentação da orquestra famosa no festival. Neste evento de abertura, o programa seguiu um cálculo bastante peculiar – a escolha recaiu sobre a música de Hollywood, dos filmes da idade do ouro e dos blockbusters, em particular trilhas famosas de John Williams. Também aqui a programação foi anunciada previamente, para que o público soubesse de antemão o que iria ouvir e… para que pudesse se fantasiar, cada um vestir a fantasia de seu personagem preferido e, assim, ampliar a sua participação no show. Os fãs de Star’s Wars e Harry Potter, em particular, não mediram esforços e fizeram bela figura na festa.
A ideia de participação, de encontro, de inclusão do presente de forma direta e crua no palco também esteve na pauta do Festival de Avignon, na França, de 5 a 25 de Julho passado. Avignon, contudo, é um festival de teatro – o maior festival de teatro do mundo – com uma mostra oficial e um circuito off, semelhante ao fringe de Edimburgo. Na França, os números foram em torno de 5920 artistas em 1592 espetáculos, com a venda de cerca de 3,5 milhões de ingressos.
As propostas e os números apontam para um lugar a ser pensado – mais do que um conceito do artista, a participação parece se impor como um dado da nossa época, em que o estádio e a pulsação espontânea dos cidadãos parecem ser práticas correntes. Não basta a inclusão de temas da atualidade nus e crus na cena, como aconteceu em algumas das propostas centrais de Avignon. O conceitos de público, participação e representação aparecem em franco deslocamento, apontam para uma relação diferente entre palco e plateia.
Na cena brasileira, contudo, a esfuziante presença da plateia parece ainda fato restrito aos musicais. Ou em peças vanguardistas miúras, obras que se formulam como se fossem modelos de extrema transgressão, alheias ao que vai pelo mundo. As formas dramáticas clássicas ou os grandes espetáculos, quando acontecem em padrão monumental, ainda não parecem mobilizar a integração do público. Também, na crise atual, este tipo de espetáculo praticamente desapareceu.
No conjunto, ainda que não exista pesquisa de mercado voltada para a história da plateia, a impressão é a de que o nosso público de teatro só faz diminuir. A situação atinge as diferentes faixas de consumo. O teatro dito comercial vive em oscilação permanente, sem que se possa definir claramente áreas estáveis de produção. Apesar do peso da fome por inovação característica do teatro brasileiro, a vanguarda permanece restrita a segmentos muito reduzidos da população, quase um rito de iniciados, uma prática que não se mantém a partir da bilheteria.
O mais curioso de tudo é pensar o carnaval – talvez daqui a pouco seja impositivo reconhecer o caráter revolucionário da Beija Flor de Nilópolis, com as cenas propostas por Anderson Muller teatralizando na avenida o que o teatro não consegue ao tentar carnavalizar a arte. A partir das coreografias sem dança em carros alegóricos, de Paulo de Barros, uma outra forma teatral espetacular parece ter começado a surgir.
Isto significa dizer que o nosso grande teatro se tornou muito mais um fato de memória do que de realidade. Seguimos, então, na memória, nostálgicos, um valor que ainda temos e que precisamos preservar. Ele pode ser cultuado sob forma de livro.
Pois já está disponível para a venda um volume que deverá se tornar referência clássica da memória do palco brasileiro, o livro de memórias de Fernanda Montenegro. Aos noventa anos, a atriz possui um tesouro inestimável de histórias para contar a respeito de si, de companheiros áureos de arte e sobre a sofrida história do teatro brasileiro. Não deixe de conferir.
Musa de artistas, inspiração de poetas, ela recebeu de Carlos Drummond de Andrade um comentário definitivo:
“Não se sabe o que mais admirar nela: se a excelência de atriz ou a consciência, que ela amadureceu, do papel do ator no mundo. Ela não se preocupa somente em elevar ao mais alto nível sua arte de representar, mas insiste igualmente em meditar sobre o sentido, a função, a dignidade, a expressão social da condição de ator em qualquer tempo e lugar”.
Vamos combinar que, mais do que tudo, está nestas linhas a indicação de algo de que o teatro nacional precisa de verdade – o pensamento. Pois a arte de Fernanda Montenegro não é apenas arte de sentir, é também arte de pensar. Quando passeamos pelos festivais, pelo mundo, pela história, a variedade, a distração, a vibração artística apontam para esta necessidade em estado bruto, a necessidade de pensar a arte. Logo, pensar a arte do Brasil. Uma esperança. Talvez, quem sabe, se examinarmos com rigor as perguntas da arte, saibamos dizer algo sobre o sentido do país.
Serviço:
MITbr – Plataforma Brasil 2020.
Período de Inscrições: 1 a 27 de agosto
Resultado: 14 de novembro
MITsp 2020: 5 a 15 de março
Para se inscrever, clique no link: inscricoes.mitsp.org
Serviço:
PRÓLOGO, ATO, EPÍLOGO. Memórias.
Marta Góes e Fernanda Montenegro.
Páginas: 360
Lançamento: 20/09/2019
ISBN: 9788535932553
Selo: Companhia das Letras