A cultura da falta de ideias
Digam o que quiserem – afinal, a palavra, como o pensamento, precisa ser livre. Se nem a liberdade de expressão estiver ao nosso alcance, a vida será uma aventura castrada, nesta altura dos tempos. Digo castrada, para ficar com um adjetivo delicado. As ideias livres devem reconhecer – sem dúvida – a busca da qualidade na vida social.
Considero essencial que os contemporâneos vivam assim, livres para opinar a respeito do mundo, por uma razão bem simples: só a vivência da liberdade de pensar permite honrar a vida humana. Os seres humanos existem para isto. Basta estudar a História para constatar que não há outro caminho. A História é uma grande mestra do pensamento livre.
Pode não ser uma conquista fácil, contudo. Já conheci na vida várias pessoas que detestavam estudar História. No entanto, apesar da existência destes desgarrados, convenhamos, flertar com a História é um prazer humano nobre, irresistível, libertador. E mesmo o inimigo número um da velha disciplina, quando submetido a um bom professor, em geral não resiste, capitula, abandona a descabida implicância, reconhece a excelência do remédio.
É claro que eu sou suspeita para falar, gostei de História desde sempre. Acabei incorporando ao cotidiano uma forma de pensamento na qual o juízo do tempo está sempre presente. E a vida volta e meia ajuda. Ainda agora, viajando para um colóquio fora do Brasil, passei por experiências bastante originais.
A primeira foi contratar um motorista de táxi, ao acaso, na rua, e descobrir que o chofer era grego e apaixonado por História. Quando ele, intrigado com o meu sotaque, soube que eu era professora de História e era do Brasil, para a minha apreensão ele passou a dividir a atenção entre as marchas e a retórica. E eu simplifiquei a vida, não disse que trabalho com história do teatro. Imaginem um grego querendo discutir História do Teatro. E afinal eu não queria conversar, queria ver a paisagem, estava muito preocupada com outros pensamentos.
Mas não houve jeito. O grego não parava de falar. Pronto – me vi obrigada a participar de uma discussão curiosíssima a respeito da qualidade – ou falta de qualidade – dos impérios e, em particular, do império português, frente aos demais grandes impérios históricos.
Para o meu motorista, o grande império da História do mundo, o maior de todos, foi o Império de Alexandre o Grande. Portugal, a seu ver, por ser um país pequeno e pobre, não teve meios para construir um império forte, logo esfacelado frente às potências holandesas e inglesas. Em vão tentei argumentar que a qualidade da organização política da Reconquista, motor do surgimento do pequeno país, impôs uma estrutura de poder favorável a uma nobreza, logo ociosa, pois sem guerras, avessa à possibilidade de expansão burguesa e… Ops, a viagem acabou.
Desci do táxi com uma sensação esquisita: a de ter passado por um debate impossível no lugar errado. Na minha cabeça, custei para me livrar das protestações do grego e só um tempo depois lembrei de argumentos que teriam liquidado o interlocutor. O primeiro, a curta duração do império de Alexandre. A segunda, a longa vida do império português, que se arrastou, mesmo arruinado, por boa pare do século XX. Arruinado? O que é bem isto? E a Grécia? Como explicar aquele fugaz poder antigo, que ainda governa as nossas almas com a filosofia, o teatro, a democracia, totalmente apagado da lista dos dez mais do mundo há tanto tempo…?
A discussão fora de hora, se bem que muito divertida, me impediu de examinar com atenção velhos prédios plantados no percurso, obras que eu queria olhar para fechar um diagnóstico bem implicante: cheguei à conclusão de que Paris é a cidade mais bonita do mundo. Não tem para ninguém – nem Rio, nem Roma, nem Florença.
A razão da escolha foi bem objetiva: Paris é a única cidade do mundo em que a História vive de forma densa, mas informal, apegada à paisagem. O gesto humano foi sendo preservado, querido, a um tal ponto que a cidade é uma festa para o olhar. Vaguei por várias ruas da cidade, inclusive na segurança das madrugadas, buscando ver isto, a História materializada por toda a parte. Aluguei um estúdio num prédio construído em 1820 e no mínimo um trinco, numa porta, insistiu em me dizer que esteve na inauguração da obra. Como é emocionante ver a História dispersa pelas ruas, ao alcance dos olhos, até mesmo em pequenos detalhes.
Talvez o meu julgamento tenha sido contaminado pela leitura recente do ótimo livro “Palco e Picadeiro – O Theatro Lyrico”, de Francisco Vieira, um pouco um livro em que a gente vê a cidade portuguesa e a cidade francesa do Rio de Janeiro indo abaixo. Continuei, na viagem, lendo Rio de Janeiro, com o volume sobre o ator Vasques que até então ainda não abrira. Ou seja, o passado da minha cidade anda colado comigo nestes tempos e o que eu percebo é a nossa imensa solidão de nós. Pertencemos a um mundo que se foi. A História não passeia diante dos nossos olhos. Vivemos alheios ao que somos e aos poucos destruímos também a beleza natural que nos cerca.
Talvez os povos possam ser divididos em dois grupos: o dos construtores conservacionistas e o dos demolidores amnésicos. Infelizmente pertencemos ao segundo grupo e somos vorazes. Em breve veremos a outrora refinada Avenida Rio Branco, em seu nascedouro a grande via francesa da cidade, chegar à sexta geração de prédios. Isto, para uma avenida tão nova, que mal fez cem anos, é um disparate absurdo.
Não sei se temos solução para isto, se temos chance de mudar de grupo e escrever outra ocupação na paisagem deslumbrante do Rio. Lembro de um paulista divertido que conheci faz tempo, gozador e predador, do ramo de marketing, que dizia sonhar com a construção de alguns condomínios de luxo no Aterro, na Lagoa e no Jardim Botânico… Tremo ao pensar que tal ideia possa ter passado na cabeça de alguém. Mas as ideias são livres. No entanto, elas só podem ser libertadoras, expressar o seu profundo compromisso com a vida, se forem cultivadas de acordo com as velhas práticas de criação que costumamos chamar de cultura. Sem vínculo com a História, é difícil ter ideias realmente livres.
Estes devaneios nasceram não só por causa de uma corrida de táxi sui generis, comandada por um homem simples, mas muito culto. Voltei de viagem e vejo teatros com belas peças apresentadas para um público reduzido, incerteza generalizada a respeito das relações de produção no campo das artes, indefinição das políticas culturais do Estado – mesmo que se queira dizer que, a rigor, há uma política neste vazio intencional de projeto.
Claro, não dá para buscar exemplos na realidade de Paris. Dá para reconhecer que dentro dos nossos prédios imensos e feios o concreto e o blindex não se tornaram boas incubadoras de ideias. Dá para perguntar os motivos da inércia que nos mantém reféns de tantas precariedades. Talvez importe começar a agir, como sociedade civil, como classe produtiva, a nosso favor.
Não existem homens livres sem ideias livres, não existem ideias livres sem cultura efervescente, sem amplo estímulo à liberdade de criação e à renovação do pensamento. Não existe pensamento livre sem História. Alguns polos no Rio de Janeiro entendem esta equação e pretendem agir para buscar a mudança.
Uma entidade que tem buscado o debate, o encontro e as possibilidades para fazer face à cena hostil brasileira, pensar a potência do teatro sob um regime permanente de crise, é a APTR (Associação de Produtores de Teatro do Rio de Janeiro). Vale a pena acompanhar a proposta e, quem sabe, tentar abrir núcleos de pensamento da arte por toda a sociedade.
O próximo encontro, com a presença dos últimos ex-ministros da Cultura, será no dia 11 pv, no Galpão Gamboa, e pode sinalizar com algumas luzes – não nos tornaremos a cidade-luz, mas no mínimo assumiremos a urgência de entender os nossos problemas, em particular o maior deles, a cultura da falta de ideias. Que a História, banida das ruas, varrida da cidade, esteja ao nosso lado, é tudo o que podemos desejar.
Serviço;
APTR, teatro e cultura
Encontro no Galpão Gamboa.
11/11/2019
R. da Gamboa, 279 – Gamboa, Rio de Janeiro – RJ, 20220-323
Telefone: (21) 98460-1351