Este negócio estranho chamado cultura
Dinheiro não dá em árvore – conheço a sentença desde a infância, era uma frase de repetição de minha mãe. Ela batalhava duro para criar os filhos e as palavras serviam para dar limites às ambições desmedidas no orçamento apertado. As prioridades eram pétreas, como as tais causas monumentais das constituições. O luxo vinha depois, se houvesse depois.
Sempre lembro da frase quando contemplo o tema da cultura na sociedade brasileira. Eu tive uma infância com muitos livros, cadernos, lápis, tintas, artesanatos, algum cinema – estudo e cultura lá em casa não eram luxo, eram artigos de primeira necessidade. No rol figurava também o acesso à informação: a leitura dos jornais e a convivência com o rádio figuravam como rotinas de vida. Houve bastante relutância diante da televisão, ela custou a se instalar na sala, até se tornar rainha, como aconteceu por toda a parte.
Talvez por isto eu tenha extrema dificuldade para entender o mapa geral da sociedade brasileira, em que educação e cultura não figuram como artigos de primeira necessidade. E também por isto eu não consiga aceitar governos, políticos, administradores e que tais capazes de olhar e pensar a vida cultural sob filtros os mais bizarros. Só entendo educação e cultura sob um clima de liberdade absoluta de pensamento, criação e difusão.
Isto significa que o cidadão precisa ter formação, informação e direito de escolha. Não cabe ao Estado, nem ao estado, arbitrar o que possa ser criado, divulgado, difundido, vendido ou consumido. A sociedade deve ser culta, educada e informada para eleger as suas escolhas. Assim como a professorinha minha mãe pôde relutar bastante diante da televisão, antes de ser dominada pelo veículo. Em casa, tínhamos acesso livre, apesar dos perigos – e eles existiam – aos livros da biblioteca.
Comecei esta semana a ver o seriado The Crown, da Netflix. Antes, tentei acompanhar Downtown Abbey – parei após a cena do estupro, que considerei particularmente sinistra, no velho sentido da palavra, e não retomei ainda. The Crown me fascinou. De imediato. Decidi ver após ler os comentários, no jornal, de Bruno Astuto e agradecerei para sempre a indicação. A série é imperdível.
Os motivos desta sua condição alcançam tons bem variados, a meu ver. Claro que há a deslumbrante qualidade da cinematografia – se for este o melhor nome para definir toda a coisa. Do argumento aos atores, passando pelas cores e planos, tudo é de altíssima qualidade. Mas há dois motivos peculiares para o deslumbramento – o primeiro é a sensação de cidadania, pertencimento, participação. Diante de cenas históricas magistralmente reveladas, nasce uma sensação interior inefável de viver o mundo, a história, a trama política.
O segundo motivo percorre fibras mais delicadas da alma – diante da tela, você se surpreende com a alma inundada por uma densa sensação de prazer. Há, digamos, um orgasmo cultural, a chance de se sentir animal da civilização. Você, inocente telespectador, sente, diante da tela requintada, no seu ponto interior mais íntimo, a necessidade vital da cultura e o prazer de usufruí-la. Digamos que o seu ponto C – C de cultura, equivalente do tal do ponto G – entra em vibração alfa. Espero, honestamente, que você já tenha sentido isto alguma vez.
Uma explosão iônica de ideias, sensações e bemquerenças acontece. Um banho de luz. Ô, felicidade! Dá para recordar a frase de efeito retumbante do Galileu de Brecht: pensar é um dos maiores prazeres da vida. No entanto, no Brasil, infelizmente, volta e meia, meia e volta, a gente esquece desta condição estética elementar. Este prazer não é cultivado, não é uma rotina básica da dieta cidadã. Vivemos em estado de fome. Perguntas incômodas são necessárias.
Por que a sociedade brasileira deseja tanto, busca tanto, o embrutecimento coletivo? Por que museus, escolas, centros culturais, livrarias, bibliotecas, teatros, cinemas – tudo o que é de cultura, enfim, sofre aqui de vida precária, instável, vegeta à mercê de políticas de favor? Por que fazemos questão de viver nas trevas, na violência, na recusa à delicadeza? Por que as ideias, a cultura, a arte e o ato de pensar nos aterrorizam?
Qual o sentido de desqualificar a classe artística, atribuir rótulos arbitrários à produção de arte, à cultura e aos que se dedicam a esta atividade? Na época em que a tônica é o pensamento radical a respeito da independência, da ruptura com o colonial – seja qual for o nome que se dê a isto – parece muito estranho tentar impor limites aos atos de criação e de pensamento. Mais do que nunca precisamos de liberdade.
Antigamente, a facilidade retórica nos levava a imaginar uma trama diabólica imperialista para explicar a nossa indigência cultural. Hoje, a máscara caiu, a coisa mudou: o diabo viceja por aqui mesmo, está em nós, digamos, pois somos incapazes de ver as trevas que deixamos tombar sobre nós. Nós procuramos nos manter estúpidos para sobreviver numa realidade estúpida.
Esta condição, agora, na crise geral do país, se torna inaceitável. É inadmissível que ainda se possa cogitar conceituar o universo da arte e da cultura sob uma ótica fundamentalista, reducionista. Não há como não ver a educação e a cultura como prioridades maiores, para que se consiga mover este país do meio do atoleiro.
Importa frisar que a estupidez de agora não nasceu do nada, não surgiu de combustão espontânea ou do acaso. Ela é legítima filha da terra, infelizmente. Se não vivêssemos em estado cultural precário, aldeão, desde o século XIX, esta realidade assustadora de hoje não seria possível. É fundamental reconhecer a geração histórica do problema, para que ele não seja subestimado. Ele é filho da escravidão, do analfabetismo, da falta de escolas, das leis discricionárias de educação, da falta de saneamento, da fome, da precariedade da saúde – problemas estruturais eternos da sociedade brasileira que persistem em cartaz.
Portanto, um debate muito amplo do tema da cultura precisa ocupar a classe teatral, os artistas. É preciso promover uma grande virada. A primeira questão relevante é tornar a arte e a cultura materialidades sociais objetivas – criar, em especial, mecanismos de mercado para o fluxo da produção de arte, em parte com autonomia frente ao Estado. Botar a arte na rua, no mercado, na praça.
Para tanto, novas perspectivas de produção precisam ser formuladas. Dinheiro não nasce em árvore, pode ser que não venha do papai-Estado, então precisará vir do trabalho. Debates, seminários, encontros a respeito de modalidades de produção são, agora, iniciativas fundamentais. Alguma coisa já acontece. Ao lado de um evento pontual, existem dois espaços virtuais permanentes, dedicados ao trio mágico de reflexão/formação/difusão, que importa conhecer.
O primeiro é um encontro organizado no CCBB RJ: o workshop gratuito Identidades da Cena, Encontro Internacional de Cultura e Negócios, marcado para a próxima quarta-feira, dia 27 de novembro. A regência caberá a Bruno Mariozz, produtor do musical infantil Vamos Comprar um Poeta, e o objetivo é reunir produtores do Rio, em particular de artes cênicas, para abrir discussões sobre a estrutura de produção em arte e sobre as novas possibilidades de financiamento e fomento – em particular, pensar a ponte entre cultura e negócios.
A programação do evento tem um perfil híbrido, com atividades adequadas a iniciantes na prática da produção, como o debate sobre a formulação de ideias e de projetos, a definição de marca e de identidade, até o exame da situação econômica do setor. Neste item, serão focalizados os diferentes modelos de financiamento, alguns cases internacionais e – o que mais importa na cena atual – a visão para além das leis de incentivo.
Surge aí o debate a respeito das possibilidades de união do setor para a conquista de uma outra densidade econômica, a visão das práticas e a análise dos indicadores do impacto do setor na economia. Participarão também dos debates, via internet, produtores de Portugal e da Espanha, Leonardo Buenaventura López Suárez e Rui Idanha.
Na cena virtual, com custos variáveis do zero até o teto flutuante de alguns euros, existem várias ferramentas de formação no campo do negócio da cultura, úteis para expandir a visão do tema na atualidade. Parece distante a crença antiga de que o artista não deve entender nada de livro-caixa e assemelhados, bem como a avaliação marxista retrógrada que demonizava o mercado, como se fosse possível, em nosso tempo, conceber a arte dissociada da aura de mercadoria.
O site português CITALIARESTAURO.COM, voltado para a comunidade internacional, apesar do limite do idioma, oferece oficinas e cursos de formação presencial e virtual. O foco aqui é bem amplo, alcança uma larga escala de assuntos – da restauração e conservação de patrimônio às mais diferentes temáticas culturais e turísticas, passando pela museologia.
Agora a plataforma acabou de lançar um curso para a Elaboração de Projetos Culturais. Para que ninguém pense que o debate a respeito da presença do Estado na cultura é coisa nossa ou problema tropical, um dos eixos do curso consiste justamente em demonstrar que o financiamento de projetos culturais pode ultrapassar a captação de patrocínios e apoios públicos.
Para apresentar o curso, o site elaborou um artigo assinado por Fátima Muralha voltado à exposição das fontes de financiamento existentes para a viabilização de um projeto cultural. O texto parece bastante oportuno para as nossas inquietações por indicar, no caso europeu, uma expansão curiosa das fontes públicas de subvenção, quando considera que a origem do financiamento pode ser internacional – a saber, de fundos da UNESCO ou da União Europeia. No caso nacional, a mecânica é semelhante à brasileira, com fundos nacionais, regionais e locais, sob a forma de financiamento, incentivo ou apoio.
Com relação aos apoios e patrocínios privados, a impressão é a de que as fontes existentes são voltadas para o mecenato direto, sem isenção fiscal. A prática estaria vinculada ao crescimento do interesses das empresas pelo desenvolvimento de ações de responsabilidade social. Neste caso, a presença empresarial pode acontecer sob diversos matizes, desde o financiamento direto do projeto até à disponibilização de meios humanos ou logísticos.
A terceira forma de financiamento exposta engloba os recursos obtidos com receitas próprias – venda antecipada de ingressos, venda de produtos em feiras ou eventos, venda de espaços de publicidade em programas e outros suportes, merchadising do projeto, vendas de produtos em geral. Finalmente, o texto cita o financiamento coletivo, definido como uma espécie de mecenato cultural coletivo, segundo a autora.
Portanto, não há uma distância muito grande entre a realidade das práticas nacionais e as ibéricas, numa primeira visão. Talvez o abismo exista na abertura dos bolsos: aqui, eles ainda parecem ser bolsos-faca, cortantes, pois os seus donos não consideram prazeroso usá-los em prol de produtos culturais benéficos para o coletivo. Ao que tudo indica, ainda preferem, como os senhores de engenho e de escravos, gastar em prazeres suntuários.
Uma grife de luxo, mesmo pregada num bem de consumo perecível, ilumina mais o espírito da burguesia tupiniquim do que uma peça de teatro, uma grande ópera, um concerto musical – ou mesmo uma cortina preciosa para o Theatro Municipal, que precisa ser obtida por ação coletiva junto à classe média. Não que a classe média não deva se mexer: o duro é ter uma elite endinheirada que não professa o mecenato e finge ignorar o tamanho do bolso abarrotado.
Mas há ainda um outro mecanismo bem instituído de estímulo à expansão do saber a respeito do campo cultura e negócios. Já tradicional, o site Da Gaveta oferece uma ampla gama de ferramentas para a capacitação do produtor cultural, artes cênicas em particular. Há um minicurso gratuito e várias outras modalidades formativas, bem como uma excelente newsletter, sempre com um calendário afiadíssimo de editais e oportunidades institucionais.
Os procedimentos apontam para um novo patamar de estruturação da área do teatro – e das artes – que pode ter um alcance positivo para a estruturação do mercado neste país misterioso chamado Brasil. Muitos caminhos e guias, e mesmo pretensos guias, mais perdidos do que o conjunto da classe, devem surgir em escala crescente. Apesar do caos aparente e de um eventual tom de desespero, o saldo pode ser muito positivo. O fundamental seria chegarmos a uma conquista básica, a mudança da visão social da arte e da cultura no país.
Vale, agora, perceber bem claramente onde estamos. Somos um país tão bruto que tivemos um homem empreendedor, visionário, combatente de alto coturno em prol da cultura, chamado Pascoal Carlos Magno. Ele construiu uma fortuna considerável e, generoso, deixou para o Estado, em benefício dos jovens, tesouros tais como a sua casa, em Santa Teresa, com o Teatrinho Duse, e a notável Aldeia de Arcozelo.
Procure saber o estado atual destes bens. Ao lado do incêndio do Museu Nacional, eles dizem muito a respeito do deserto cultural em que vivemos e que precisamos transformar. Talvez não seja com o apoio do Estado. Na verdade, desde as canhestras loterias extraídas no século XIX a favor do teatro a mando do imperador, o interesse do Estado em arte e cultura, por aqui, é anedótico. Raros foram os governantes letrados e iluminados neste país. Portanto – como dinheiro não dá em árvore, não cai do céu, nem do bolso dos muito ricos, nem dos cofres do Estado, a hora é esta, só nos resta aderir a um velho lema: mãos à obra, vamos à luta.
Serviço:
Workshop Identidades da Cena – Encontro Internacional de Cultura e Negócios
Entrada franca, mediante inscrição prévia pelo email: contato@palavraz.com.br ou retirada de senha na bilheteria às 12h, caso haja disponibilidade de vagas.
Centro Cultural Banco do Brasil: Rua Primeiro de Março, 66 – Centro. Teatro II.
Dia 27/11, quarta-feira, das 13h às 17h.
Conheça o curso ELABORAÇÃO DE PROJETOS CULTURAIS |
Citaliarestauro.com <geral@citaliarestauro.pt>
DA GAVETA/DANS LE TIROIR é hoje uma referência para você, artista, produtor cultural ou empreendedor criativo que deseja tirar seus projetos da gaveta e colocar suas ideias no mundo. Através de nossos cursos online, ferramentas e eBooks você vai encontrar o empurrãozinho que faltava para viver do seu talento como artista.