O que será o amanhã?
A pergunta é o tormento atual de todos os profissionais e amantes de teatro. Pois é, como indaga o samba famoso, vale perguntar sim, o que será o amanhã? Alguns mais depressivos e maníacos deliram, atravessam a melodia.
Eles juram que o teatro vai acabar. A partir de suas falas exaltadas, dá até para imaginar um mundo de silicone. Nele, cada ser humano se tornaria uma bolha, uma cápsula viva, como uma espécie de crisálida, uma vida latente à margem do mundo. Com seres tão enroladinhos em si, o teatro seria impossível.
Neste mundo pós-larva – o mundo larva seríamos nós, hoje – não haveria futuro, a crisálida seria a forma humana definitiva. Portanto, só restaria ao palco se recolher ao museu das velhas invenções humanas. Atuar nas novas condições sociais se tornaria impossível, a categoria espectador estaria extinta.
Vale fazer uns parênteses irônicos: bem que um bocado de gente de teatro andou, desde o século XX, apostando na morte do teatro, na extinção do espectador. Verdade que nenhum destes teatricidas banais conseguiu pensar algo tão radical como uma peste, uma peste concreta, objetiva, nada artaudiana. Vida que segue.
Para desespero dos que apostam na morte da cena, nada é tão simples. O problema é que, após uma rápida olhadela ao redor, constata-se com muita facilidade que o teatro não é uma pacífica lagarta vegetariana. A velha arte tem uma pulsação incontrolável, uma agitação natural intensa, um ritmo frenético que a impedem de se reduzir a uma monótona devoradora de folhas. O teatro não para.
Convenhamos: nada nem ninguém morre pulsando, pulando, esbanjado inquietude. A rigor, nem a peste de agora parou o teatro. A pandemia da Covid-19 provocou um turbilhão de atividades teatrais alternativas por todo o mundo. Grandes centros teatrais abriram na internet o acesso aos seus monumentais acervos de peças gravadas, grupos teatrais conceberam projetos de criação artística digital, com ou sem a participação de não-artistas, pessoas e instituições se juntaram para praticar arte, debater, trocar ideias. As lives provam que o teatro não está morto.
Alguém, do contra, pode argumentar que, afinal, é um nada. São miúras de um lado, que ninguém vê, e colossos do capital, tanto a Broadway como a Comèdie Française ou o National Theatre precisariam destas atividades porque são empreendimentos econômicos que não podem parar.
Será mesmo? Pode ser, mas só em parte. Para aceitar o raciocínio seria preciso esquecer um fato decisivo – nestes lugares, as pessoas criam em estado absoluto de entrega, vivem a sua arte no sentido mais pleno e, portanto, não são máquinas registradoras humanas. Há algo acima e além que move estes seres.
Este algo constitui o centro do debate. Pode ser resumido numa palavra: arte. E por causa dele, exatamente, não existe a possibilidade do teatro morrer, nem mesmo se o mundo se transformar num mar de crisálidas, pois a arte é, digamos, borboleta, está depois do casulo.
Quer dizer – para o ser humano, o belo é natural e essencial, integra a vida, e, por causa disto, ele precisa estar presente em permanente movimento. Se ainda não podemos cogitar quando e como será possível juntar pessoas para que acompanhem juntas uma récita de teatro, podemos ter a certeza da volta e devemos pensar as hipóteses mais decisivas para o processo.
O problema deixa, assim, de ser filosófico ou estético – não se cogita em absoluto a morte do teatro. A arte da cena ainda integra e ainda integrará a dinâmica de estruturação da sensibilidade humana. E ainda mais: o problema deixa também de ser político – não se pode saber a quais ordens cidadãs imediatas o palco se prenderá. A rigor, ele estará a serviço da sobrevivência da arte de ser, portanto funcionará como alimento universal básico.
A constatação conduz ao reconhecimento do tema mais importante, aliás um tema que baila na pergunta “o que será o amanhã?” É que o problema passa a ser o desafio da sobrevivência imediata, quer dizer, passa a ser econômico. Teremos a volta. Mas, até lá e quando chegar lá, o teatro vai viver de quê? Como será o retorno? Quem estará lá? Com que dinheiro?
Alguns coletivos bem estruturados já começaram a cuidar do tema, pensar o assunto urgente. Basicamente, na nossa forma atual de produzir teatro, no século XXI, existem três caminhos para dotar o teatro de meios para o seu financiamento: a bilheteria, o mecenato/doação civil e a subvenção/dotação oficial.
No caso brasileiro, vale começar pensando o mais difícil, o apoio oficial ao teatro. Pode parecer bem estranho para um estrangeiro – até mesmo para um argentino ou um chileno – mas o Estado brasileiro não absorveu, até agora, a condição básica do teatro, de atividade estruturante da sensibilidade coletiva. O Estado brasileiro não entende que o teatro deve integrar a estrutura do jogo social, para a saúde do cidadão.
Assim, não temos transparência a respeito da participação estatal na resolução da crise. Em cada pequena localidade, caberá à classe teatral dialogar com os políticos locais para chegar a uma equação positiva. Este movimento aldeão será de extrema ressonância.
Junto ao governo federal, está prevista para esta terça-feira, 26 de maio, a votação do PL de Emergência Cultural, primeira pauta do dia. O acordo para a votação surgiu de conversas entre a relatora do projeto, deputada federal Jandira Feghali, o presidente da Câmara Rodrigo Maia e representantes do governo, segundo informe da APTR.
O objetivo principal do projeto de lei é o de contemplar, de imediato, o enfrentamento da crise, através de ações emergenciais de apoio ao setor cultural ao longo da vigência das medidas de isolamento ou quarentena. A União destinaria aos Estados, Municípios e ao Distrito Federal um total de R$ 3.600.000.000,00 (três bilhões e seiscentos milhões de reais).
Dentre as ações previstas, estão a renda emergencial para os trabalhadores no valor mínimo de R$ 600,00, subsídios para manutenção de espaços artísticos e culturais, micro e pequenas empresas culturais, cooperativas, instituições e organizações culturais atingidas pelas medidas de isolamento social, e editais e chamadas públicas de diversas naturezas, inclusive para a viabilização de atividades artísticas e culturais realizadas através de redes sociais e plataformas digitais.
Vale pensar que a extensão da proposta é ampla – talvez um cobertor curto para aquecer uma família numerosa. Pode ser, no entanto, que a proposta possa se tornar um caminho, a porta de entrada para a estruturação de um projeto cultural por parte do governo, uma atitude histórica marcante, em particular por sua formulação a partir do diálogo.
Este debate está na ordem do dia, por causa da importância da cultura na dinâmica econômica dos países. Na verdade, a economia criativa e a economia da cultura ainda são áreas jovens de estudo. Se considerarmos o peso da atividade produtiva da cultura no conjunto da economia dos países, ela ficará em torno de 3 a 4%, não mais do que isto.
No entanto, seria preciso um outro tipo de mensuração para dimensionar o valor da produção cultural. Um exemplo clássico remete à história da pintura – não se pode entender muito da estamparia industrial de tecido do nosso tempo sem considerar a técnica dos impressionistas, de unir áreas de cor sem nuances ou desenhos.
Também nos estudos de imagem, fotos, se pode perceber a força da arte no cotidiano humano. É possível situar formas, jeitos e trejeitos sociais, padrões de relacionamento social em público, determinados por formas ditadas pela arte. As imagens da arte circulam na sociedade e permitem a criação de um alfabeto, ou melhor, uma espécie de imageto, alfabeto de imagens, propício para o cidadão dialogar com o mundo.
A arte permite ainda – além de alimentar a construção da identidade de um povo – a construção do poder de um país no conjunto das nações. Sem que se fale do caso mais consistente, a França, que fez uma Revolução Industrial Cultural enquanto a Inglaterra fazia a Revolução Industrial fundada na máquina a vapor, basta que se olhe para o Brasil.
Muito da imagem internacional do país, da identidade internacional ligada ao brasileiro e do interesse que despertamos nasceu do vigor da arte de Carmem Miranda. E mais: além de construir muito da nossa imagem e marcar a cultura do mundo na sua época, a sua baiana, o seu colorido, o seu encanto, os seus trejeitos brejeiros foram predecessores importantes da pop-art e do tropicalismo.
Em artigo recente, La pyramide inversée pour relancer l’économie de la culture, a economista da cultura e professora francesa Françoise Benhamou dimensiona o ineditismo da crise atual frente à história. Ela observa uma condição fundamental a considerar – esta crise não será superada simplesmente a partir da retomada do consumo.
A seu ver, na França, não existe uma sinalização clara de retorno do consumidor de cultura a curto prazo, situação que impõe o investimento no produtor e na produção, portanto, para assegurar a retomada da cadeia de produção cultural. Importa, no seu parecer, seguir uma lógica de New Deal, de preservar o emprego e construir o futuro através de investimentos. Seria o caso de atender, de saída, o primeiro escalão da produção – autores, artistas, criadores.
Nos comentários ao texto, a professora brasileira Deolinda Vilhena, especialista em economia da cultura, insiste na diferença enorme que separa a França do Brasil. Sem um projeto cultural de Estado e sem um Ministério da Cultura, ela observa que os debates acontecem aqui de forma muito localizada e demandam uma capacidade de ação e de pressão do setor cultural para que algo efetivo aconteça.
De certa forma, entregue à própria sorte, a classe teatral precisa encontrar caminhos para manter a sua arte em cena com a vitalidade necessária. Neste sentido, vale destacar as ações de dois grandes grupos de teatro brasileiros – dentre os mais importantes do país.
Sediada no Rio, a Armazém Companhia de Teatro oferece ao público uma gama notável de atividades para enfrentar o recesso. Às segundas, o conjunto tem oferecido uma série de lives preciosas no Instagram, a respeito do seu fazer teatral e de sua estética. Eles destrincham os processos de montagem dos espetáculos da companhia, uma casa dotada de uma história monumental.
O diretor Paulo de Moraes conduz o bate-papo, muito adequadamente chamado de Conversa de Palco. A cada semana o evento reúne artistas diferentes e aborda um novo espetáculo da série histórica. Nesta semana, Simone Mazzer e Marcos Martins comentaram a montagem de Pessoas Invisíveis. De quebra, o apreciador de teatro pode ver o espetáculo. No caso de Pessoas Invisíveis, uma das mais belas encenações da História do Teatro Brasileiro, a gravação está disponível até o final de maio.
Destaque-se: a situação da companhia é grave – a equipe sobrevive de teatro. Em busca do futuro e da manutenção de sua grandeza de trabalho, admirável, a Armazém organizou uma campanha de arrecadação de fundos, uma vaquinha online. A contribuição dos admiradores será fundamental para que o grupo atravesse a intempérie.
Sediado em São Paulo, o Grupo Tapa também se notabilizou por ser uma usina de trabalho de teatro de alta voltagem. Nascido no Rio, decidido a viver do palco, o grupo se transferiu para a capital paulista para conquistar este objetivo e obteve sucesso. Mas, depois de tanto tempo e de tantas realizações, com o isolamento social, a cena mudou.
Para estruturar a sobrevivênciado grupo, normalmente garantida pela bilheteria, cursos, aulas e teatro-escola, a equipe criou um movimento SOS online. Aos espectadores e aos amantes de teatro são oferecidas duas modalidades de ajuda.
Uma é a compra de ingressos antecipados para três espetáculos diferentes – o Tapa é um grupo de repertório. A outra modalidade é a doação, o mecenato direto. São várias categorias de doadores, com bônus diferentes para cada uma e a certeza de ver, quando a pandemia passar, espetáculos do mais elevado padrão poético.
Também no Rio, os teatros que têm lutado para desenhar uma política de repertório começam a formular campanhas de vendas de ingressos antecipados. O Teatro PetraGold, cuja política de ocupação inovadora e dinâmica começava a se afirmar como um grande sucesso, aderiu à prática. O projeto prevê o apoio às produções que ocupariam a casa e ficaram sem recursos e aos profissionais em situação de crise social.
Nesta arena, portanto, talvez um tanto árida, dá para perceber que a luta não é pouca. Duas frentes trabalhosas se delineiam – a batalha política direta, devotada à demonstração da importância da cultura para a sociedade brasileira, e a batalha de superação da crise do retorno, na qual o restabelecimento do consumo será um grande desafio. Diante do quadro, não há dúvida. À pergunta sobre o que será o amanhã, o teatro pode responder com uma palavra apenas: trabalho. É isto, a classe teatral tem pela frente muito trabalho.
Serviço:
Foto: Grupo Tapa, O Jardim das Cerejeiras, dir Eduardo Tolentino de Araújo, ator Guilherme Sant’Anna, foto de divulgação.
PL 1075 E APENSADOS: AÇÕES EMERGENCIAIS PARA O SETOR CULTURAL.
Para maiores informações, seguir o link:
https://drive.google.com/file/d/1PSQbG38lyAc-BV02bdmlDPliC5H36nPN/view?usp=sharing
Artigo
Françoise Benhamou.
Terra-Nova_Cycle-Covid19_La-pyramide-invers_e-pour-relancer-l_conomie-de-la-culture_050520
Armazém Cia de Teatro
“Pessoas Invisíveis” – gravação do espetáculo disponível até o final de maio: https://vimeo.com/421522875
Vakinha: http://vaka.me/1045086
Outros contatos: #armazémnaquarentena #armazemciadeteatro #vakinhaarmazém #teatropossível
Grupo Tapa
Ingresso Antecipado. Não tem taxa de conveniência
Espetáculos: Um Picasso, de Jeffrey Hatcher, Papa Highirte, de Oduvaldo Viana Filho (próximas estreias do grupo) e reestreia de De Todas as Maneiras que Há de Amar, de Edward Albee.
Teatro PetraGold – ingresso solidário – https://www.teatropetragold.com.br/ingresso-solidario