Eles passarão, o teatro passarinho…
Tudo passa sobre a terra – a frase famosa de José de Alencar (1829-1877) volta e meia desaba sobre as nossas cabeças, como uma colina tropical encharcada pelas chuvas de verão. Li a afirmação pela primeira vez com imensa dor. Passei todo o romance torcendo por um final feliz – eu era apenas uma adolescente sonhadora – e fiquei tristíssima com o desfecho. O escritor romântico conseguira me tornar uma menina absolutamente fã de Iracema…
Às vezes, diante do palco do Brasil, lembro da frase e penso: o teatro, por aqui, vai acabar. Não dura nem mais um verão. Nem o mais potente ar condicionado o salva. Depois, curiosa, aguço o olhar e vejo que não, nosso teatro não é comparável à virgem dos lábios de mel, de cabelo preto como a asa da graúna. Nosso teatro tem fôlego grego: pode cair, mas fica ecoando, como a velha arte de Atenas fez com o mundo ocidental. Atenas passou, mas o palco aderiu ao sangue do ocidente.
Então, o milagre da arte me surpreende. Fico diante de eventos tão estarrecedores como o festival internacional de teatro de Niterói, o Niterói Em Cena. Gente, vai lá conferir, vai voando na rede, é lindo. E ferve, ainda não acabou, vai até o dia 24. Várias apresentações estão gravadas, podem ser vistas e revistas. Um exemplo? Ver a mesa Artes e Ativismo Cultural, com a excepcional lucidez de Elisa Larkin Nascimento e o brilhantismo de João do Corujão e do professor Rolf Malungo de Souza traz, ao lado da visão cortante do presente, a história densa de Abdias do Nascimento e do TEN.
Pois é – teatro em estado puro. Mas, de repente, tem muito mais. Mal me recuperei da constatação da grandeza teatral de Niterói e… logo em seguida, recebo um convite para conferir as travessuras teatrais de uma garotada dinâmica, febril, na verdade uma amostra do celeiro mineiro de fantásticas ideias cênicas. Não é só o Galpão que Minas Gerais tem para nos surpreender. Há um circuito borbulhante de grupos e de ofertas teatrais varrendo as terras do velho estado, ouro e diamantes teatrais por toda a parte. É só levar a sua bateia.
Neste caso, fui conferir a apresentação do jovem elenco da Afoita Teatro. Eles foram convidados para uma apresentação na 7a. Temporada de Teatro de Sete Lagoas. Em função da pandemia, as peças em cartaz são transmitidas ao vivo, com bela qualidade de captação, no canal do YouTube da Preqaria (youtube/preqariaciadeteatro), de acordo com todas as medidas de segurança sanitária.
Ao passar os olhos pela programação da Temporada, a primeira constatação é muito gratificante: ela reúne grupos de Sete Lagoas, Belo Horizonte e de São João Del Rei. Trata-se de um evento com uma história consolidada e neste ano atípico a edição se tornou viável graças aos recursos da Lei Aldir Blanc do Município de Sete Lagoas, conforme Lei Federal nº 14.017, somados a recursos da mesma Lei aprovados em editais estaduais.
O festival acontece num pequeno teatro local – o Centro Cultural Nacional Teatro Preqaria. A adesão da comunidade explica um bocado o sucesso, pois a Cimento Nacional é mantenedora das atividades, ao lado de diversas empresas locais, amigas do teatro. Há, portanto, ao redor dos fatos, uma trama social diferenciada, a favor da grandeza cidadã traduzida pela cultura.
O espetáculo, Morada, dirigido por Marcos Fonseca, não poderia ser mais contemporâneo. A dramaturgia nasceu de fatura coletiva, ao redor de um dos temas quentes na vida de todos hoje: a estrutura cambiante da família. Em cena, a vida não pára. Várias visões da ordem familiar, múltiplos aspectos da crise da velha família patriarcal, explosivas perguntas sobre afetos e emoções convidam a plateia a situar suas próprias opções e visões de mundo.
A montagem acontece em arena, num espaço quadrado desenhado no chão, sugestão de cômodo, quer dizer, insinuação de morada. Além das cenas devotadas às emoções, aos conflitos, aflora aqui e ali o cotidiano, as ações domésticas corriqueiras, em particular a vida de cozinha, capaz sempre de reunir a todos. O espaço escolhido, circular, se impõe como uma roda de viver, cercado de gente por todos os lados. E, assim, não há fundo, tudo acontece sempre entre a plateia e o elenco, até mesmo com a chance de diálogos diretos com algum espectador – um entre afinal preposição e verbo, pois a estrutura aberta do texto e a interação com o público supõem que a contemplação se dê como forma ativa.
O elenco jovem esbanja engajamento e faz profissão de fé a favor do teatro: além de atuações dignas, empenhadas, eles cantam, tocam instrumentos, fazem com que a música integre a linha de trabalho. Ver em cena a vitalidade e a energia criativa de Roger Xavier, Alessandra Silva, Kaike Barto, Priscila Natany, é uma vacina contra o desânimo, esta doença hoje tão forte na alma nacional.
Destaque-se: o fato em si já seria importante convite para o pensamento a respeito da potência do teatro brasileiro hoje. No entanto, o acontecimento revela uma outra condição digna de destaque. Este festival, cuja história (basta consultar o site) apresenta uma riqueza surpreendente, denuncia a existência de uma rede teatral de consideráveis proporções.
A Temporada é justamente uma iniciativa de uma outra companhia de teatro mineira, de Sete Lagoas – a Preqaria. E, ao redor da atuação da Preqaria, se percebe de imediato uma fieira de coletivos e agentes teatrais inspirados e inspiradores. Minas pulsa teatro em sol maior. Existe diálogo, troca, colaboração, numa sugestão de que o palco precisa ser um ativo social permanente.
No seu nome, a Preqaria homenageia Qorpo Santo (1829-1883), o autor gaúcho do século XIX que escreveu mais no hospício do que no gabinete, ignorado pelo palco do seu tempo. Chegou até a propor uma reforma do idioma – por isto o uso do q no lugar do c, uma de suas escolhas. Um curioso cruzamento histórico, vale destacar. Parece até um bilhete dentro da garrafa, para atrair a atenção dos contemporâneos e agir para que a cena não se torne uma ilha, cercada de esquecimento por toda a parte, como se o teatro se tornasse um louco solitário trancado num hospício.
Muito bem. Recado recebido. Afinal, ainda lemos José de Alencar, nem que seja sob rigorosa exigência escolar. Se tudo passa, de alguma forma, no entanto, ainda que a pulso, Iracema ficou. Em compensação, o teatro de José de Alencar, catito, elegante, prendado mesmo, evaporou como gota de orvalho tímida no verão da floresta. Então, a lição parece nítida. Precisamos criar e manter veículos para a difusão permanente deste teatro do sertão, do interior – na certeza de que este interior, no qual a cena se afirma com um vigor inusitado, é na verdade, a alma do país. Muitos, com certeza, passarão, porém, este teatro, nascido assim da melhor força da terra, aposte, vale a poesia, tal como o dito de Quintana, é passarinho…
SERVIÇO:
7a. TEMPORADA DE TEATRO DE SETE LAGOAS – programação:
18/02 – MORADA – AFO!TA
23/02 – Meu Canto de Graça – Cóccix
25/02 – Descadeirados – Cia El Individuos
02/03 – A Caixinha de Papelão – A Patela Cia.
04/03 – E Ainda Assim Se Levantar – Cia Luna Lunera
Sobre a companhia PREQARIA – https://www.preqaria.com.br/grupo-preqaria/
Sobre a AFO!TA Teatro – afoitateatro.wordpress.com
AGENDA 2021:
• 18/02 – 7º Temporada de Teatro de Sete Lagoas (MG) – transmissão ao vivo
• Março (data a confirmar) – 1º Festival Capivara de Teatro – espetáculo gravado (baixada fluminense/RJ)
PARA LER: