A viver, só se aprende na escola
Não tem mistério. O Brasil conta com dois partidos antagônicos. O partido devotado à vida e o seu oposto, engajado com a morte. O partido da vida defende a escola como a grande ferramenta capaz de mudar o país. O partido da morte não dá qualquer importância ao problema – quando muito, faz acertos aqui e ali e deixa correr. Ou melhor, morrer. Pois a escola brasileira liquida a vida.
O problema é grave. E é antigo. Poderia reunir aqui listas e listas de argumentos em defesa da vida e da escola. Poderia não só demonstrar como a falta de escola e a falta de escolaridade foram decisivas para a manutenção da escravidão no país, como poderia trazer o precioso Gregório de Matos Guerra (1636-1696), o Boca do Inferno, para denunciar a espessura histórica do debate.
Quer dizer, a ignorância sempre foi a pedra de arrimo de nossa sociedade, pródiga em miséria humana. E sem escolas de qualidade, não conseguiremos caminhar em direção a uma sociedade mais democrática e mais justa. Pois a urgência reside neste ponto: transformar o humano. E é na escola que este milagre acontece.
Logicamente o teatro lida diretamente com este território. Mas, como a arte da cena tende cada vez mais a se tornar uma ilha paradisíaca com escassos habitantes, o seu poder se torna cada vez mais reduzido, o palco caminha cada vez mais para ficar pregando para antigos fiéis. Ou para o vazio.
Uma pesquisa de mestrado recente, assinada por Antonio Gilberto Porto Ferreira, dedicada a um estudo muito detalhado da encenação de 1967 de Rasto Atrás, de Jorge Andrade, assinada por Gianni Ratto, produção do TNC, revelou um dado curioso.
A montagem aconteceu num momento privilegiado da cultura brasileira. Além da expansão da escola pública em geral, a década conheceu uma grande transformação (e ampliação) do estudo universitário. Apesar da instauração da ditadura militar a partir de 1964, ainda ecoava no país muito do espírito desenvolvimentista da década anterior. Bom, o tema é longo, o ponto a tratar é outro.
O fato a ressaltar é bem objetivo. A política cultural formulada pelo Teatro Nacional de Comédia (TNC, produtor da montagem), tentativa frustrada (mais uma) de estruturar uma companhia teatral oficial, alcançava um impacto positivo. Ele aparece evidente na montagem do sensacional texto de Andrade. E o acerto podia ser mensurado com a presença expressiva, no teatro, de estudantes.
Na época, havia uma plateia estudantil ávida por grandes momentos de poesia em cena. E o diálogo palco-escola ocorria naturalmente. Talvez estes estudantes, filhos de uma escola que procurava se pensar como qualidade de ensino e de um teatro ávido por repercussão social, constituam o público teatral cabeça-branca de hoje. A conclusão é do pesquisador.
Este tema se impõe como um dos debates atuais urgentes – o teatro tem consciência da existência e das necessidades destes antigos seguidores? O teatro sabe da importância dos cabeças-brancas? O teatro percebe a necessidade de instaurar um diálogo com os jovens de hoje, intenso o bastante para que eles se tornem os cabeças-brancas teatrais do futuro?
Sim, a escola de hoje é bem outra. E não parece fácil mudar a escola brasileira, apesar do aparecimento recente de escolas de elite, ao que tudo indica devotadas à transformação profunda do ensino. Claro, todos sabemos, a escola brasileira é muito ruim, basta ver os desempenhos dela em escalas de aferição internacionais.
Existem aqui e ali focos de qualidade e de excelência, existem flutuações episódicas resultantes de genialidades pontuais, mas a escola em seu todo, enquanto instituição, é ruim, precisa ser transformada. A mudança importa para a cultura, o teatro, as artes em geral.
Mas importa também para a humanidade de todos, para a felicidade social. Esta semana, duas peças sintonizadas com este abismo social profundo estão em cartaz, precisam ser vistas e debatidas.
A primeira, Cascavel, de Catrina McHugh, direção de Sérgio Ferrara, trata de um tema do mundo no qual o Brasil se projeta com revoltante notoriedade: a violência contra a mulher. Os nossos números são vergonhosos. A autora, inglesa, especializou-se no estudo teatral da situação feminina e assina, neste caso, uma obra de particular importância para a vida brasileira.
Na plataforma Sympla, a peça poderá ser vista a partir do dia 29 e a pergunta inevitável surge de estalo: como ampliar a repercussão da obra na sociedade brasileira? Seria importante a incorporação da proposta à programação da Rede Estadual de Ensino, para difusão junto aos estudantes de nível médio, para diagnóstico e prevenção.
A cena atende a um desenho didático claro. A partir da relação de duas mulheres com um violento feminicida, esboça-se um quadro eloquente dos padrões e dos comportamentos implicados na prática da liquidação da mulher.
O texto foi construído a partir dos relatos das mulheres e funciona como demonstração – e alerta – de como o processo de violência se estrutura. A malignidade dos procedimentos, como se fosse um veneno de cobra, imobiliza a vítima com o objetivo de liquidá-la – seja concretamente, seja simbolicamente.
No palco, as atrizes Carol Cezar e Fernanda Heras desenham um jogo teatral moderno, marcado por relatos e contracenas. Tanto representam as duas mulheres, como o agressor. Na concepção da cena, o traço sofisticado de Nello Marrese recorreu ao desenho do labirinto, do Minotauro, e aos blocos rudes de cimento associáveis ao Holocausto, dois dispositivos eficientes para gerar desorientação nas vítimas.
Vale frisar que, em sua origem, o texto nasceu como parte de um treinamento para conscientizar policiais, no nordeste da Inglaterra, a favor da valorização e da proteção das mulheres. Não seria nada mau se os movimentos feministas aqui encampassem a proposta para estruturar uma escola de mulheres – se não fosse para atingir a sociedade, ao menos para ensinar as mulheres a reconhecer a violência e os caminhos de libertação.
Infelizmente, talvez a grande escola brasileira – pública e universal – não tenha grandeza para incorporar uma contribuição desta voltagem. Afinal, está de volta à cena Conselho de Classe, de Jô Bilac. A peça de enorme sucesso volta ao cartaz e a escola que está ao seu redor é a mesma ruína da época da montagem original, 2013.
A constatação se torna necessária para apontar a estagnação – de novo, importa sublinhar que a peça precisa ser vista, para que se contemple uma radiografia muito objetiva da miséria escolar brasileira. A montagem assinada por Fabio Fortes alcançou um efeito extraordinário ao se propor como conselho de classe virtual – quer dizer, a trama foi atualizada para a realidade imposta pela pandemia.
A cena surge espantosa: se as condições materiais mudaram, com os professores reunidos via internet, a situação patética da escola brasileira resiste, fiel à sua indigência, e se impõe bravamente inalterada. A direção resolveu bem o desafio de abordar uma reunião de escola on-line. Na verdade, trata-se não de uma reunião, mas de uma crise profunda da escola retratada, fiel espelho da área da educação.
Muito da resolução obtida pelo diretor nasceu da qualidade dos desempenhos. A professora Célia, de Jacqueline Lobo, transpira o desânimo dos mestres arrasados pela falta de perspectiva. A partir de pequenos gestos, de inflexões descrentes e de um ar de desencanto, a atriz configura muito do impasse escolar atual.
Vivian Sobrino impressiona ao tentar impor um protagonismo positivo controvertido, Carmen Frenzel arrasa no desenho da professora “tia” completamente derrotada pela profissão, Dárdana Rangel colore a progressista com investidas autoritárias que polemizam a atribuição de efeito positivo simples às aulas de artes. Fabio Enriquez traduz com precisão o jovem diretor tomado por perplexidade diante do caos que ainda não dimensionara.
Todos os atores, afinal, estão afinados na mesma linha. Delicadamente, tecem uma singela forma expressiva, mas sempre muito tensa, marcada pela sintonia com a tela, com pequenos afazeres ao seu redor e as contradições dolorosas dos seus perfis. Os desempenhos se tornam corrosivos.
Lá estão os professores com pouquíssimos recursos para o trabalho, salários vergonhosos, diante de escolas de precária materialidade e de alunos desmotivados, sem lastro cultural social, entregues ao seu universo imediato. A escola não se vê como instituição, aceita ser um depósito ordinário de gente, no qual cada um busca “se virar” ou “dar seu jeito”, quer dizer, soluções pessoais mesquinhas e rasteiras.
Em lugar de se configurar como um coletivo, a escola se projeta como uma enorme solidão compartilhada. No fim das contas, não consegue ser trágica, não é uma tragédia, pois é uma construção politicamente definida, cruel por deliberação.
Tudo indica que no Brasil não há tragédia, a tragédia é impossível. Inventamos um novo gênero: a pagédia, uma forma de ser socialmente patéticos. E patetas.
Ainda vivemos sob um tempo em que não causa espanto nem dá cadeia desviar dinheiro da educação, roubar a verba da merenda, submeter as classes, sempre numerosas, a aulas festivais de cuspe-e-giz. Conseguimos ter escolas sem bibliotecas, alunos sem livros e sem qualquer interesse naquilo que se ensina nas escolas.
A conclusão é óbvia, Conselho de Classe devia ser apresentada em todas as escolas, debatida por pais e professores, devia despertar um sentimento de incomodo intenso. Afinal, o resultado da pagédia é real, trata-se de infanticídio. Sem formação da infância, a função essencial para a sobrevivência da espécie, não há vida.
Diante da realidade nacional, parece ser bem urgente impor aos brasileiros uma eleição – a definição objetiva do partido a que pertencem, com a percepção clara do significado da escolha. Ser contra ou a favor da escola, afinal, significa, hoje, ser a favor ou contra a demolição do país. Sem escola, não iremos a lugar nenhum.
CASCAVEL
Ficha Técnica:
Texto: Catrina McHugh
Tradução: Diego Teza
Direção: Sérgio Ferrara
Elenco: Carol Cezar e Fernanda Heras
Cenografia: Nello Marrese
Figurinos: Kleber Montanheiro
Iluminação: Adriana Ortiz
Programação Visual e Mídias Sociais: Maurício Tavares – Inova Brand
Assessoria de Imprensa: Rachel Almeida – Racca Comunicação
Produção: Letícia Napole e Júlio Luz
Fotografia e Assistente de direção: Enrique Espinosa
Cenotécnico: André Salles
Assistente de cenografia: Maria Estefânia
Gravação e edição: Zoe Filmes
Realização: Moira Produções Artísticas
Patrocinadores: Carelink, Bedois Consultoria e Corretora de Seguros, Norte a Sul, MXM Sistemas e Serviços de Informática e Top Down
Serviço:
Cascavel
Temporada: 29 de julho a 22 de agosto
Dias e horários: Quinta a domingo, a qualquer horário
Ingressos: Gratuito, com possibilidade de contribuição solidária a partir de R$ 10
Link: https://www.sympla.com.br/produtor/cascavel
Tempo de duração: 50 minutos
Classificação etária: 14 anos
Assessoria de imprensa: Racca Comunicação, Rachel Almeida
CONSELHO DE CLASSE
Ficha Técnica:
Texto: Jô Bilac
Direção e adaptação: Fabio Fortes
Participação Especial (voz em off): Teuda Bara
Elenco e adaptação: Carmen Frenzel, Dárdana Rangel, Fábio Enriquez, Jacqueline Lobo e Vivian Sobrino.
Direção de Arte: Renata Egger
Iluminação: Bruno Henrique Caverninha
Programação Visual: Marcos Ácher
Edição Audiovisual: Tairone Vale.
Produção Executiva e Operação da Plataforma Digital: Rodrigo Sundin
Produção Executiva: Moreno Almeida
Assistente de Produção: Anna Clara Almeida
Assessoria de Imprensa: Rachel Almeida (Racca Comunicação)
Direção de Produção: Fabio Fortes
Produção: F2 Produções Artísticas
Serviço:
Conselho de Classe
Temporada: de 23 de julho a 1º de agosto
Dias e horários: 6ª a dom., às 20h.
Onde assistir: Canal do Youtube do Niterói em Cena
(https://www.youtube.com/channel/UCDogXa3n4rtuBVg23M5CEhg)
Ingressos: Gratuitos, com opção de contribuição voluntária
Tempo de duração: 45 minutos
Classificação etária: 12 anos
Assessoria de imprensa Racca Comunicação Rachel Almeida