Todo o amor deste mundo
Alguém lhe ama perdidamente. Por você, este amor sem freio é capaz de revirar o tempo, devassar velhos espaços, tentar se inscrever nas paredes da cidade ao redor. Por ironia da História, este amor tão notável, quase tão velho como o nosso mundo, sempre andou desprezado, como se fosse coisa menor.
Sabe você o que é este amor? É o amor do ator de teatro. Em último grau, é o próprio teatro, pois o teatro de verdade só acontece através do ator… E a questão está aí, a razão de ser da vida dos atores é esta: o amor ao mundo, o ato de amar os contemporâneos, a escolha de irradiar amor para o povo ao redor.
Este é o motor dos atores, a razão de ser da vida deles. Eles podem fingir vaidades de autopromoção, mesquinharias cotidianas, devaneios fúteis, amores banais de ocasião, mas, lá no fundo, o desejo deles é só este – amar os contemporâneos, mostrando para cada um qual é o sentido da vida.
Pois então, não foi um ator célebre, um caso raro de ator, um ator que foi assassinado pelas letras e se tornou mais popular como escritor, não foi ele quem definiu a vida assim? Para ele, “a vida é uma sombra errante; um pobre comediante que se pavoneia no breve instante que lhe reserva a cena, para depois não ser mais ouvido…”?
Leia bem a frase, pese bem o seu cálculo, a sua vontade de dizer a sentença definitiva sobre o ato de viver. Se a vida é o ato do ator ínfimo na cena, só resta aos comuns dos mortais o caminho de abraçar o teatro, não? Restaria aí a última esperança para entender o sentido da vida… A garra vislumbrada na sombra errante, o que é, se não o amor?
Vivemos hoje, no nosso tempo, uma revolução na forma de pensar os atores e no estudo de sua arte. Não dá mais, agora, para afirmar o ator como um “pobre comediante”. Até o século passado, os estudos de história do teatro tinham como centro de reflexão os textos das peças de teatro, consequentemente, sempre, mesmo Sarah Bernhardt era apenas pobre comediante. Coisa que passa, feito catapora.
Por isto o Shakespeare-ator foi devorado pelo Shakespeare-dramaturgo. Os atores, vistos como artistas menores, eram considerados “meios”, instrumentos descartáveis para levar a palavra dos autores, estes sim os verdadeiros poetas, para o coração do público.
A visão, hoje, parece um descalabro, inteiramente arbitrária – pois, até mesmo ao longo da História, são muitos os casos de formas teatrais sem autores (e até sem texto!), mas não há qualquer chance de se conjeturar a possibilidade de um teatro sem ator. Ou tem ator, ou não é teatro, simples assim.
Para estas formas antigas do estudo histórico, o ator era transitório, incapaz de deixar uma marca no seu tempo. Hoje, contudo, a cena mudou de figura: considera-se que o ator tanto lê o corpo do seu tempo, como é lido por seus contemporâneos. Por isto se pode assumir esta ousadia, falar no ato permanente de amor. Amor profundo. Outrora, ele era pura latência não nomeada…
Além disto, cada ator traz a história dos atores de sua terra impressa na sua carne, nos seus gestos, queira ou não, saiba disto ou não. Isto significa dizer que existem lições de Itália Fausta, Glauce Rocha, Lucília Perez, Marília Pêra, Fernanda Montenegro, no corpo de Sara Antunes, por exemplo. Nenhum ator atravessa a sua vida como tabula rasa ou lousa branca. O desafio, hoje, dos estudos de ator é ler estas camadas e saber pensar os seus significados. Dimensionar o seu alcance no jogo histórico e social.
O complicador, um dispositivo bom para acelerar a voltagem do pensamento, nasce da constatação obrigatória de que a sociedade ao redor também está ali, no corpo e na expressão do artista. Ver velhas fotos de atores em revistas antigas prósperas em imagens da época ajuda muito a fazer este exercício – o olhar acaba por situar um diálogo social intenso entre o palco e a plateia, corpos cênicos e corpos sociais.
Um caso bom para estudar? A situação aparece lírica e contundente no vídeo assinado pela excelente atriz Theresa Amayo – Relato de 70 anos de Peregrinação Artística, disponível no YouTube. Aviso aos navegantes: se a sua alma é sensível, prepare um lenço. Você vai chorar.
Uma única expressão define de forma contundente o vídeo. É imperdível. O pequeno documentário apresenta de forma saborosa uma trama eloquente, na qual se misturam a trajetória da artista, a história da cidade e a história do teatro, em especial a história de lindíssimos teatros do Rio. Demolidos, a maioria, claro. Um caso de amor incandescente.
Theresa Amayo aponta diretamente para este diálogo, esta relação amorosa intensa que une o ator aos contemporâneos. A grandeza e a doação da atriz, a sua vida artística intensa, acabam por revelar a dura trajetória de decadência da cidade do Rio de Janeiro.
Há uma geografia amorosa encantadora no relato. Emociona ver a descrição das regiões teatrais da cidade, os palcos devotados ao encanto popular, a tradição histriônica da Praça Tiradentes, a elegância da Cinelândia, o charme boêmio da Zona Sul.
Theresa Amayo viveu o que se deveria passar a chamar de época de ouro do teatro carioca, páginas ainda por escrever na nossa História do Teatro. Não é verdade – precisamos trabalhar com isto – que o nascimento do teatro moderno, enquanto acontecia em São Paulo, projetou um deserto de teatro no Rio. A partir do vídeo, uma inebriante aula de amor, dá para constatar esta verdade.
O resultado? O exemplo da atriz precisa ser seguido: precisamos declarar e assumir o nosso amor. A cada ator, cabe o desafio de responder com a sua melhor réplica, explicar a presença da cidade e dos concidadãos na sua pele, na sua alma, no seu coração. A intensa teatralidade do Rio precisa ser enunciada, restaurada.
Há um caso vizinho em São Paulo, vale muito a pena considerá-lo. Estreia no dia 30 de outubro próximo, na rede, um trabalho bem curioso, impregnado de afeto, memória e cortejo amoroso ao turbilhão urbano da pauliceia: Olhos de Recomeço, um cine teatro documental assinado pela notável artista Sandra Corveloni.
As imagens escolhidas aqui são da periferia de São Paulo, mais exatamente o terreno de uma antiga fábrica de cimento do bairro de Perus. Lá, a atriz percorre as ruínas de uma casa abandonada, uma casa operária em que viveu boa parte da infância e da juventude.
O presente de ruína surge misturado ao fluxo da memória – a cena acontece como vivência, quer dizer, como recordação, retalhos da história de um lugar capaz de abrigar trabalhadores de várias partes do mundo, em busca de uma vida melhor, e vidas familiares intensas, tocadas pelo poder do cimento, que transformava a cidade.
Cenas de palco se alternam com as imagens da casa em escombros: no teatro, a mesa festiva de um 1 de janeiro materializa um eixo sentimental importante, cita o recomeço rotineiro de cada ano, para lançar perguntas sobre o recomeço de si. A escolha não poderia ser mais delicada, agora que vivemos, juntos, todos, um intenso recomeço.
Bela palavra: recomeço. Seria um brado de união em tom maior muito adequado para a cena cutural carioca. A expectativa é grande – afinal, tudo indica que a última carta possível para restaurar a força da cidade é a cultura. Sim, um investimento maciço na cultura, investimento muito mais de iniciativa e de ação, de inteligência, não apenas de capital, esta matéria rarefeita por aqui.
Muitos exemplos neste campo podem ser sugeridos e implementados. Um deles, fundamental para a grandeza cultural da cidade e o poder do teatro, é o do CEDOC da FUNARTE. A Prefeitura, tanto o Prefeito Eduardo Paes como a sua equipe, Marcelo Calero, Marcus Faustini, Washington Fajardo, precisam se dar conta como seria revolucionário ter este centro de documentação, agora fechado, em atividade, em condições ideais. E por um custo muito baixo.
Várias outras ideias podem ser adotadas – seguiriam um traçado objetivo, de entender a cidade como lugar maravilhoso mesmo, portanto dotado de imensa fortuna cultural. Abrir espaço, reconhecer talentos, simplificar a vida dos produtores culturais empreendedores custa pouco e rende muito.
Vale destacar, aliás, neste cenário, um ato exemplar – o reconhecimento do Armazém da Utopia como Patrimônio Imaterial do Rio de Janeiro. O título, concedido pela Alerj, abrange tanto o imóvel como as atividades exercidas no armazém 6 e áreas anexas. A vitória surgiu graças à aprovação unânime de projeto de lei do deputado André Ceciliano.
A atividade teatral e cultural do espaço é intensa, sob a liderança do diretor Luiz Fernando Lobo e da atriz Tuca Moraes, fundadores da Companhia Ensaio Aberto. As atividades da equipe no local foram iniciadas em 2010, sempre sob um ritmo acelerado.
Além da montagem de peças, o grupo oferece atividades de capacitação e de formação, com oficinas, cursos, palestras. E mantém também um acervo de figurinos, objetos e adereços, ligado às 27 montagens assinadas pela equipe. Há muita história concentrada no armazém.
No próximo ano, a companhia completará 30 anos de existência: com certeza a festa será marcada por esta ideia de “porto” como patrimônio, abrigo, recepção. Afinal, se a ideia de porto é tão central para a cidade do Rio, nada mais lógico do que estimular a celebração de sua potência cultural e falar da energia da cidade.
Sim, não há como negar, existe um novo formato forte de fazer teatro, um teatro-registro, ainda mais abraçado aos contemporâneos, se pode deduzir da leitura das notícias acima. Nelas, fica bem evidente a proposição de trabalhos preocupados em se conectar de estalo com o espaço ao redor. O foco é a busca de uma sintonia fina, direta.
Quer dizer – o amor do teatro pelos seres contemporâneos, no nosso tempo, se tornou mais íntimo… Olhos nos olhos, o teatro deseja saber das necessidades, dos processos, das inquietudes. Nestes casos, não se embarca mais numa viagem simbólica, abstrata, alusiva. Nem há necessidade absoluta de autor, dramaturgo. O ator pode ser o mágico total da cena…
Assim, lá no Rio Grande do Sul, graças às benesses do teatron, se poderá acompanhar uma peça de fatura bem atual. A partir de entrevistas de pessoas comuns, não-artistas, a equipe trabalhou com improvisações e chegou ao roteiro de A Mãe da Mãe da Menina.
Em cena, três gerações dialogam e revelam as suas visões diferentes do mundo e da vida. Sob a direção de Camila Bauer, as atrizes Sandra Dani, Liane Venturella e Laura Hickmann olham diretamente para a câmera e buscam a cumplicidade do espectador para os seus desejos e frustrações. Os temas são universais e giram ao redor das necessidades geradas… pelo amor, claro!
Quem sabe estejamos numa hora de amor mais do que total? Fragilizados, ainda surpresos diante da sacudidela da vida, talvez seja a hora de arregaçar as mangas e seguir o lindíssimo exemplo de Theresa Amayo. Ao redor do teatro, em devoção ao Rio, num abraço apertado nos cariocas, poderíamos decretar um estado de amor total. Amor puro amor. Expor relatos que nos revelem, mostrar os nossos caminhos, externar nosso jeito de ser, pode ser uma revolução.
Sim, uma revolução branca, teatral, sem tiro nem vela, nem mesmo faixa amarela. Parece ingênuo? Ah, não se iluda. É histórico. Algo bem na linha do Teatro de Brinquedo, de Álvaro Moreyra. Brincar de inventar. Para honrar a cidade mulher em que vivemos. Para louvar o teatro. Para celebrar este imenso amor que, vindo da cena, apesar de todas as ruínas, persiste em nós.
Theresa Amayo
Relato de 70 anos de peregrinação artística.
Olhos de Recomeço
Ficha técnica
Idealização: Sandra Corveloni
Produção: Companhia D’Alma
Direção: Sandra Corveloni
Direção de fotografia: André Grynwask
Montagem e edição: André Grynwask e Pri Argoud (Um Cafofo)
Dramaturgia: Bárbara Queiroz
Roteiro adaptado: André Grynwask
Atuação: Sandra Corveloni
Direção de produção: Bruna Lemela
Direção de arte: Felipe Samorano
Música: Marcelo Pellegrini
Coordenação de administração: Maurizio De Simone
Produtor assistente: Lucas Mello
Contra-regra: Gustavo Brandão
Técnico de luz: Vinicius Andrade
Estagiário de produção: Orlando Corveloni
Foto: Ronaldo Gutierrez
Serviço
30 de outubro até 19 de dezembro
Sábados às 21h30 e domingos às 17h30
Pelo Youtube / Retirada de ingressos gratuitos pelo Sympla https://www.sympla.com.br/produtor/companhiadalma
R$: Gratuito
Duração: 20 minutos
Classificação indicativa: Livre
SOBRE O ARMAZEM DA UTOPIA:
http://www.armazemdautopia.com.br/
A Mãe da Mãe da Menina
FICHA TÉCNICA:
Direção: Camila Bauer
Elenco: Sandra Dani, Liane Venturella e Laura Hickmann
Roteiro: Camila Bauer, Clóvis Massa e Liane VenturellaProvocações Dramatúrgicas: Lígia Souza
Roteiro: criado a partir de improvisações das atrizes Sandra Dani, Liane Venturella e Laura Hickmann
Produção Artística: Letícia Vieira e Camila Bauer; Coordenação de Produção: Letícia Vieira
Iluminação e Instalação Visual: Ricardo Vivian
Orientação de Figurino: Fabiane Severo
Trilha Sonora Original: Álvaro RosaCosta e Simone Rasslan
Técnica de Som Direto: Mina Serviços de Audiovisual/Raysa Fisch
Desenho de Som e Finalização de Som: BlacknoAr
Tradução e Interpretação em Libras: Celina Xavier Neta
Produção de Acessibilidade: OVNI Acessibilidade Universal
Colaboração Artística e Direção de Fotografia: Lucas Tergolina
Assistência de Direção Audiovisual: Henrique SchaeferProdução Executiva: Isadora Pillar
Operador de Câmera: Mateus Ramos e Lucas TergolinaAssistente de Câmera: Eduarda Alves
Montagem: Mateus Ramos
Finalização de Vídeo: Humberto Ferreira
Design Gráfico: Jéssica Barbosa; Assessoria de Imprensa: Léo Sant´Anna
Mídias Sociais: Pedro Bertoldi
Apoio: Casa na Chácara, Cia. Stravaganza, Fermentô, Locall e Magazzino di Carol
Produção: Primeira Fila Produções
Coprodução: Azeitona Filmes
Realização: Projeto GOMPA
Financiamento: Secretaria da Cultura do Estado do Rio Grande do Sul – Projeto ‘A Avó da Chapeuzinho, selecionado no Edital SEDAC nº 12/2019 FAC Movimento/ Pró-Cultura RS/ SEDAC RS.
Agradecimentos especiais às mulheres entrevistadas para este projeto: Alice Urbim, Ana da Silva Saldanha, Ana Maria Butelli, Célia Ferraz da Rosa, Edla Elane Bauer, Ester Golandinski, Fátima Cesarini, Gisele Hiltl, Isolina Oliveira de Souza, Juliana Sibemberg Nedir, Lia Venturella, Maria da Glória dos Santos, Priester, Marilene Caselani Roos, Monica Blaya de Azevedo, Pedrolina Dutra da Silva, Venina Carneiro e Vera Santos.
Assessor de Imprensa: Léo Sant´Anna
Serviço:
Temporada: de 27/10 a 07/11, de quarta-feira a domingo, às 20h.
Preço do Ingresso: R$ 10,00
Compra: www.entreatosdivulga.com.br/amaedamaedamenina
Em formato virtual, obra terá intérprete de libras.
Duração: 71 minutos
Classificação etária: livre
SESSÕES GRATUITAS PARA IDOSOS:
Com o objetivo de ampliar o acesso à cultura, serão realizadas quatro exibições gratuitas para instituições de longa permanência para idosos. Interessados devem fazer as solicitações por e-mail (leticia@primeirafilaproducoes.com.br).