Atores: a inteligência e a emoção do tempo
Qual o poder do tempo? Transformar os seres? Ou ativar a estagnação? Para quê serve o tempo? Quem nos guia neste labirinto? O pensamento curioso relampejou de repente na minha cabeça. Vibrou como um chicote ágil manejado para a tortura. Sim, continuo lendo século XIX. E apesar da minha pesquisa focalizar o caminho sinuoso do pensamento teatral, ela flerta com os atores e, indefesa, se rende, aqui e ali, aos espantosos percursos da escravidão.
Não sou dispersiva, mas passear os olhos pelos jornais oitocentistas é uma tarefa árdua. A cada página surgem textos com retratos humanos surpreendentes. Um grande espanto nasce de uma constatação crua: acreditava-se que seria possível tornar as pessoas melhores através da pancada, da dor física, da tortura. Acreditava-se que o massacre do outro obteria algo de positivo dele, e não apenas o ódio, o único resultado natural da violência
Afirmar sob um tom de extrema candura que fulano ou sicrano precisa de correção significa, neste idioma social, defender a aplicação de consistentes bordoadas na criatura. Como se pau torto pudesse ser aprumado com um bom martelo. A madeira esfarela, mas o desvio some…
Entende-se. Não estivemos sozinhos na boleia. A crença e a prática da violência – física, moral, psicológica – vigorou por toda a parte e, o que é espantoso, até um tempo bem recente. Lembro de uma amiga, uma pedagoga exemplar, que descobriu aterrada, na França pós-68, que ainda existia palmatória na escola em que matriculou o filho pequeno. E constatou o pior: nada poderia fazer se o garoto não andasse “na linha”.
Não vai longe o tempo no qual educar significava pancadaria, brutalidade, abusos de todos os tipos contra as vítimas indefesas. O arsenal de artefatos inventados para quebrar o corpo humano não se sustenta como obra da inteligência. A estupidez também conhece requintes. Inacreditáveis requintes.
Parece um uso estranho do corpo, não? Torturar, maltratar, massacrar a carne para refinar o espírito, como se o espírito ainda sintonizasse com a razão medieval ou acatasse a Inquisição. Pois bem, obras do passado. Não existe mais palmatória na França faz tempo. E lá em geral vigora um mundo social gentil.
Mas será este um valor universal? Como andamos por aqui? Talvez não se possa dizer o mesmo da vida nacional. Sim, por aqui, parece que algumas seitas e igrejas ainda professam este terrorismo da alma. Acreditam no barbarismo como via de acesso aos bens da civilização. E então elas se esforçam na arte do massacre humano.
Bom, logo se chega ao pior: apesar de ser um terreno de notáveis excomungados, por séculos incapazes de obter acesso pleno às graças das igrejas, existe no teatro daqui e até no cinema quem ainda reze por estes manuais de liquidação humana. Sim, existem entes das trevas, tão obscuros como certas autoridades inquisitoriais, capazes de defender o abuso físico generalizado como forma de treino ou de formação de atores.
A existência ainda hoje deste tipo de criatura em atividade só demonstra como o campo brasileiro das artes cênicas ainda acontece sob uma aura de precariedade. Não dá para acreditar que artistas de densidade possam aceitar tais rituais; ou melhor, se eles existem, não dá para calar e justificar atrocidades deste quilate. Chega, não? É hora de chegar no século XXI. Claro, Denise Weinberg tem razão total no seu clamor por inteligência na arte da preparação de atores.
Afinal, o teatro não precisa de domadores. Este tipo de gente não pratica arte: são crias das piores formas estruturais de violência da sociedade brasileira. Quem os defende, para ser coerente, deve usar a chibata nos filhos, acatar a tortura como arma de contenção social e proclamar o uso do chicote para o adestramento coletivo geral.
Importa saber o terreno histórico e social das ideias defendidas. Quando elas são muito radicais, devem ter as suas filiações claramente expostas. Portanto, logicamente, o adepto do terrorismo educacional forma nas fileiras de defesa da ditadura militar e da escravidão – pois afinal até hoje existe escravidão no Brasil, bem sabemos. Parte da sociedade brasileira ainda é tratada como objeto, coisa desimportante, corpos massacráveis. É neste lugar que esta concepção circula.
Os mais estudados tentam justificar a boçalidade e argumentar em defesa da prática com a estranha hipótese de que o seu fundamento está em Stanislavski, no controvertido tema da memória afetiva. Pois já existem obras e leituras alentadas ao redor do velho russo até mesmo em português, hábeis o bastante para dar conta do equívoco. A estante vai de Eugênio Kusnet, nosso patrono, até Henrique Gusmão, nosso requintado contemporâneo. E temos textos russos em português, tanto a obra completa, como os estudos de Elena Vássina. Não perca: está tudo lá, é só ler.
Estudei em duas escolas de teatro – Tablado e FEFIERJ. No Tablado, frequentei aulas muito bem estruturadas de improvisação, ministradas por Louise Cardoso. Na FEFIERJ, trabalhei Kusnet e Stanislavski com Orlando Macedo e Roberto de Cleto. Portanto, gente saudável, não cheguei a enfrentar nenhuma insanidade do gênero. Mas ouvi histórias desanimadoras e elas continuaram a grassar ao meu redor depois que me tornei professora.
Sim, ao longo da minha vida de magistério, nas escolas de teatro, soube de histórias nauseantes de abusos de professores contra estudantes candidatos a atores. Muitos, massacrados, desistiram. Difícil dimensionar a extensão do mal provocado por esta gente. A única arma coletiva? Exigir profissionalismo, preparação de plano de curso e de aulas, bibliografia e, ao deparar com o método da violência, denunciar.
O panorama fica ainda mais turvo se o olhar passa para o palco. Existem relatos revoltantes a respeito de práticas hediondas contra os atores, rotinas de alguns dos primeiros diretores brasileiros modernos, em particular. Além do fato evidente de que são psicopatas, tudo indica que a vontade de poder diante dos atores, até então (e talvez, no Brasil, para sempre) senhores absolutos da arte, atiçou o ímpeto de destruição da fina matéria humana de que os verdadeiros atores são feitos.
Claro, atores são feitos de uma delicada cera existencial. Nascem assim ou aprendem a desenvolver este poder, para que possam imprimir e expressar, em si, a arte do seu tempo. Atores de verdade não precisam de tortura ou de pancada, nem de massacre físico ou constrangimento, para doar ao mundo o tesouro de percepção sensível que encerram em si. Afinal, o teatro existe há mais de 2500 anos, sempre com atores no palco.
Apesar das idas e vindas, crises e apogeus, ele não precisou de adestradores para acontecer. Neste longo tempo, ele se tornou necessário, arrebatou as almas, apenas enveredando profundamente pelo poder cortante das palavras. Só isto? Parece que não. Há algo mais, algo um tanto além, atores não são simples declamadores.
Os atores sabem um velho segredo, são os seus guardiões: como fazer com que o verbo, volátil, se apresente na carne e contagie tudo ao redor. O acesso a este segredo não acontece através da tortura, do medo, da opressão. Ele é fruto dileto de uma mistura potente, um coquetel de sensibilidade e inteligência. Só quem não sabe a fórmula do coquetel precisa da violência, para acreditar que chegou a algum resultado… Ou para fingir que sabe algo da arte.
A lição dos fatos parece muito clara. Chegou o tempo da maturidade para o teatro brasileiro. Se hoje o país, estranhamente, conta com muito mais escolas e cursos de teatro do que com teatros – chegamos ao ponto de termos faculdade de teatro até mesmo em lugares em que não existe qualquer mercado de teatro – vale incorporar o ensinamento. Aprender teatro na escola significa saber que a arte é inimiga histórica do chicote, amante devotada da liberdade. A arte do teatro é o lugar do absoluto homem livre.
No fundo, andar pelo século XIX faz com que os olhos percebam com mais nitidez os absurdos do nosso próprio tempo, as formas de viver de hoje que ainda estão impregnadas do pior do passado. Curiosamente, o ator do século XIX era mais livre, afinal… Imagine se um domador fosse tentar enquadrar um Vasques, uma Rose Villiot?
Nos tempos atuais, não sei se os domadores conseguiram ter chão nos musicais. Não tenho qualquer notícia. Não estou falando do rigor das professoras de balé. Estou falando de massacres de corpo, torturar o ator até ultrapassar os seus limites humanos, até chegar ao insuportável. Dor, sofrimento, assédio moral. Massacrar o corpo de um ator de musical? Lá no musical, onde a liberdade do humano acontece a pleno vapor, detonar o corpo e a voz do elenco é crime de guerra. Sim, musicais.
Então, surgem naturais os sons do grito de Cazuza, dá para pedir, cantando versos impactantes do poeta: Brasil, mostre a tua cara. Confiar na potência das pessoas é largar o chicote, claro, defender a livre expressão sem coação. Jogar o lixo no centro da sala, em vez de engolir. Sim, temos um musical dedicado ao músico em curta temporada, uma boa hora para ouvir Cazuza.
Cazas de Cazuza, opera rock de Rodrigo Pitta, depois da estreia de sucesso, retorna ao palco carioca. Vale lembrar que a encenação já se tornou referência histórica, pois está comemorando 21 anos da primeira montagem. O retorno acontece com um novo elenco, mas ainda desta vez sob a direção do autor.
A trama simples adquiriu uma contundência nova diante da crise geral do país. O presente figura como um panorama forte para a montagem, em virtude do ácido quadro social, humano, econômico, financeiro e político. No saldo geral, a cena social de agora amplia o vigor das músicas de Cazuza, 31 anos após a sua morte. Assim, em lugar de simples culto estético ou poético, o musical envolve por sua atualidade cortante.
Na cena, em dois atos, o público acompanha a história de oito personagens. Mia, Enrico, Justo, Bete, Deco, Vera, Ernesto e Dornelles são jovens que vivem no Rio de Janeiro, no Baixo Leblon. As suas vivências percorrem os temas abordados nas vinte canções de Cazuza incluídas na trilha – estão lá o amor, o preconceito, o sexo, as drogas, a indigência política, o desemprego, o clamor profundo por mudança.
Poeta intenso, senhor de uma hábil interlocução com a sua época, Cazuza percebeu com muita clareza os abismos existenciais do país e assinou obras de sintonia requintada com as nossas vertigens. Clássicos nacionais irresistíveis integram a trilha: O Tempo não para, Pro Dia nascer Feliz, Um Trem para as Estrelas, Codinome Beija-Flor, Ideologia, Bete Balanço e Brasil. São canções nobres, pois a sua estatura rompe os limites do tempo, instaura a plena capacidade de sentir.
É preciso então reconhecer neste jogo uma beleza peculiar, a beleza do tempo. Ela precisa ser exaltada. Quando contemplamos os muitos tempos a que temos acesso, naturalmente nos tornamos objetos de transformação, incorporamos a trajetória. A nossa grande chance nasce da oportunidade de adquirirmos uma sutil espessura existencial. Nos tornarmos o presente do futuro – portanto seres nos quais sensibilidade e inteligência se tornaram matéria essencial.
No fundo, um pouco como os atores, ainda que, seres comuns, não tenhamos a graça de irradiar a sabedoria do tempo para o nosso tempo. Isto é com eles, com os atores, eles são os nossos mestres, não domadores, adestradores no melhor sentido. Neste caso, estamos em excelente companhia e o único chicote necessário é o mergulho puro e simples na arte.
PARA LER:
Fotos: Ricardo Nunes
FICHA TÉCNICA:
CAZAS DE CAZUZA
Texto e direção: Rodrigo Pitta
Direção musical: Jay Vaquer
Elenco: participação especial de Paulinho Serra (Dornelles), Fernando Prata (Enrico), Yann Dufau (Deco), Jade Baraldo (Bete Balanço), Leandro Buenno (Justo), Julianne Trevisol (Mia), Janamo (Vera), Alexandre Damascena (Ernesto).
Fotos: Ricardo Nunes
SERVIÇO:
Apresentação carioca: 4 de dezembro de 2021, VIVO RIO.
Ingressos à venda em vivorio.com.br/.
Av.
Infante Dom Henrique, 85
Parque do Flamengo. Rio de Janeiro-RJ
20021-140 Telefone – 21 2272 2901
Valores: R$40 (meia) e R$ 80 (inteira)
Classificação etária: 18 anos
Programação do festival itinerante “Rock Brasil – 40 anos”/ CCBB: dias 16 e 17 de fevereiro de 2022 (CCBB BH); 31 de março e 1º de abril (CCBB SP) e 26 e 27 de maio (CCBB Brasília).