Suzana Faini (1933-2022)
Amor absoluto ao teatro. A expressão pode parecer banal, mas, se olharmos com atenção a vida artística de Suzana Faini, percebemos claramente a densidade da frase. Sim, amor absoluto ao teatro.
Amar uma coisa, amar uma arte? O que isto significa? De imediato constata-se que há nas palavras escolhidas um misto vertiginoso de doação, entrega, transgressão e sincera generosidade. Suzana Faini foi uma revolução cênica completa e permanente, mas uma revolução branca, delicada como um ato de amor.
Talvez este misto arrebatador de sentimentos e atitudes tenha surgido de berço – nascida numa família de artistas, Suzana Faini escolheu como primeira arte o ballet. Neste caso, a família e a vida de bailarina tiveram um papel decisivo em sua formação, fizeram com que a arte fosse para ela sempre uma certeza, uma forma de viver, um compromisso inquestionável.
Ao abandonar a carreira de bailarina para se dedicar ao teatro, a atriz incorporou o doce mistério de transpirar arte cotidianamente, o modo de ser natural para todos aqueles que escolhem fazer arte com o corpo. Para uma bailarina, por mais que o palco exija cuidar de expressar a alma e o espírito, o uso do corpo torna a arte um rito cotidiano incontornável. Os bailarinos precisam ter uma existência estética e Suzana Faini manteve na prática da atriz esta obrigação primeira.
Mas não é só isto, o amor floresceu também graças a um outro caminho: ao escolher o teatro, a candidata a atriz decidiu estudar teatro com Maria Clara Machado, no Tablado, uma escola notável por ser amadora. Quer dizer, amorosa, definição defendida a ferro e fogo por Maria Clara Machado, que insistiu sempre na necessidade de uma relação intensa de amor com o palco para viabilizar a prática da arte em nosso país.
O mais curioso acontece a seguir. Suzana Faini entrou em sintonia com um outro espaço de amor ao teatro muito peculiar: o Teatro Ipanema, de Ivan Albuquerque e Rubens Corrêa, artistas formados por Dulcina de Moraes, uma outra defensora inveterada do amor à arte. Pois Suzana Faini integrou a ficha técnica da revolucionária montagem de Hoje É Dia de Rock, de José Vicente.
A proposta, em especial graças à parceria de Ivan Albuquerque com o cenógrafo Luiz Carlos Ripper, sacudiu a vida cultural carioca ao transformar radicalmente o espaço de representação. Em lugar do jogo tradicional palco-plateia, a montagem trabalhou com uma passagem-passarela na qual a representação acontecia em uma relação nova com o público. Ou seja, transgressão em alto grau. Teatro para renovar, oxigenar, refazer os valores do ato de viver.
São tons originários, de formação, e estes tons marcaram a carreira de Suzana Faini. Uma peculiaridade importante que nasceu daí foi o seu interesse permanente por dramaturgia nacional. Ao contrário da geração anterior de atores, moderna, dedicada ao estudo de textos significativos da dramaturgia universal, Faini não hesitou em seguir uma marca diferenciada, de entrega à dramaturgia local.
Assim, na sua trajetória figuram textos nacionais por vezes muito impactantes. Silêncio, de Renata Mizrahi, montagem de 2014, trouxe para o foco a incômoda história de família das “polacas”, as mulheres judias submetidas no Brasil à prostituição. Uma história secreta, dolorosa e ainda hoje cercada de um esforço para o apagamento. O desempenho de Suzana Faini era de uma contundência memorável, combinava auto-respeito e respeito ao próximo em doses surpreendentes.
Outro texto nacional impactante, de 2012, A Mecânica das Borboletas, de Walter Daguerre, trouxe para a sensibilidade do nosso país nômade, itinerante, um outro assunto familiar rascante. No centro da cena, figurava a saga dos filhos das pequenas cidades do interior, dispostos a partir para ter futuro e dilacerados, ao voltar, diante das dívidas sentimentais insolúveis do passado.
Mas a sua linha de trabalho contundente, corrosiva, inclinada à dedicação a obras significativas para a cena, não contemplou apenas o drama ou a comédia dramática. Algumas montagens permitem analisar a extensa capacidade expressiva da atriz. Apesar de sua notável potência dramática, consagrada também na teledramaturgia e no cinema, sofisticados desempenhos cômicos figuram na sua carreira teatral.
Na linha do humor negro de alta categoria, ela liderou o elenco de Família Lyons, de Nicky Silver, em 2015 – sob a direção de Marcos Caruso. A trama girava ao redor de um axioma surpreendente para o culto da eterna juventude, a indicação de que os jovens ainda têm muito que aprender com os mais velhos.
Já em A Dama do Cerrado, texto e direção de Mauro Rasi, de 1996, Suzana Faini trabalhou, com excelente resultado, a linha da comédia ácida demolidora, de cálculo político. O centro da ação era o desejo desmedido de vingança da amante de um político poderoso, impedida de comparecer à posse do amado. No caso, a atriz defendeu o papel da esposa do senador, disposta a apagar a qualquer preço a fogueira armada pela rival. Ela substituiu Beatriz Lyra, criadora do papel.
Naturalmente, como se pode deduzir, Suzana Faini não recusava desafios artísticos. Trabalhar com jovens era uma opção natural e consequente – a sua curiosidade a respeito dos caminhos da arte era uma constante. Por isto conquistou outro tento ao atuar em Sete, o musical dark de Moeller e Botelho, de 2007, no qual substituiu a veterana atriz Ida Gomes (1923-2009) após a sua morte. Para a atriz, aliás, assumir substituições não era problema – a vida do teatro estava em primeiro lugar, o que tornava o seu profissionalismo impecável.
Além do apoio e da entrega à dramaturgia jovem, ela integrou elencos dirigidos por diretores inquietos, inovadores, tais como Paulo de Moraes, Priscila Vidca, João Fonseca, Paula Sandroni. A opção significava manter atenção plena no movimento mais denso de invenção teatral, um pouco a sua origem.
Em consequência, Suzana Faini integrou como atriz convidada uma das montagens de repertório clássico fundamentais da história da Cia Limite 151 – Teresa Raquin, de Zola, direção de João Fonseca. Trata-se de um texto teatral estratégico de estudo do protagonismo cênico feminino, trabalhado no palco nacional desde o século XIX. A montagem buscou trazer o debate para o nosso tempo, ainda que sob um tom de respeito ao original. E ela participou ainda da transgressora montagem de Édipo Unplugged, da Cia Fodidos Privilegiados.
O tempo histórico não esteve a favor da grandeza de Suzana Faini – a era dos grandes empreendimentos passara, o teatro brasileiro começou a patinar em empreendimentos isolados, à deriva do poder de formulação de indivíduos isolados. A sobrevivência de grupos e equipes se tornou uma dura conquista cotidiana. Diante de instituições de areia, a atriz, batalhadora, nunca vacilou na busca de uma vida de teatro, de mergulho profissional sincero.
De toda forma, provavelmente nada da carreira da atriz contribuirá tanto e de forma tão decisiva para a sua consagração histórica como o seu trabalho, justamente premiado com o 11* Prêmio APTR, em O Como e o Porquê, de Sarah Treem, direção de Paulo de Moraes. Ali, a plenitude da deusa da cena se revelou em seu amor absoluto ao teatro, ao demonstrar, através de nuanças profundas e delicadas, o grande impasse da mulher em nosso tempo.
Suzana Faini, a mãe dedicada de Milenka, que nunca economizou esforços para garantir o bem estar da filha, a amiga amorosa de todos, a mulher-poesia capaz de instaurar uma vida de arte ao seu redor, apresentou em O Como e o Porquê a hipótese da mulher oposta a si – a mulher vencida pela ambição profissional desenfreada, a mulher que renuncia às possibilidades do afeto e do amor para fazer carreira.
Sim, o seu amor desmedido pelo teatro viabilizou a construção de desempenhos magistrais em textos destinados a sacudir a sensibilidade do público, desorientar a visão de mundo acomodada da plateia. Graças à sua força cênica, perguntas dolorosas ou incômodas surgiam tecidas em desempenhos primorosos. Mas, na verdade, bastaria este trabalho em O Como e o Porquê para nos fazer agradecer de joelhos a sua dedicação à arte. Quer dizer, a nós.
A morte da atriz, hoje, nos obriga a todos a um ritual de reconhecimento. Não se trata de formalidade vazia. Não é o caso de celebração leviana. Não – todos nós, brasileiros, e não apenas os amantes ou os devotos do teatro, precisamos expressar a nossa gratidão profunda a ela.
Suzana Faini deu uma forma intensa e dilacerante, em cena, ao ato de ser mulher no nosso tempo. Aqui o reconhecimento do mérito deixa de ser mera formalidade e se torna ato de construção histórica. Descanse em paz – e que a sua memória permaneça para sempre entre nós, como uma lição generosa de amor ao teatro. Quer dizer, na verdade, amor à vida. No fundo, este é o sentido real da expressão. E este foi sempre o sentido profundo de sua arte.