Belos ares do Brasil
Escrevo contagiada pela febre da eleição: a coluna sairá no dia seguinte, apenas votei e voltei da rua. Escrevo longe da resposta dos eleitores à gravidade do momento vivido pelo país. Quero guardar a aura deste instante, alheio ao resultado das urnas. As letras pululam leves, à distância das tensões. A razão? Bem simples.
Adoro eleições, especialmente eleições gerais. A minha sensação eterna permanece intacta, desde a primeira vez: parece que estou numa festa e que todos os moradores da cidade decidiram sair de casa. É hora de votar. Fazer ouvir a sua voz. Para os meus olhos, a felicidade passeia estampada nos rostos. Acredito que o povo adora ter um governo para chamar de seu, conquista possível apenas com o voto.
Gosto em especial de ver o desfile da gente mais velha, escovada e empinada, uma gente recolhida de repente de volta ao burburinho da cidade. E as famílias? Prefiro aquelas cheias de filhos, camisetas, bottons e adesivos. Com um leve ar de transgressão, compactuo a alegria secreta das crianças pequenas obrigadas a ir até a urna, mamãe não tem com quem as deixar, e adoro a cara de felicidade única quando voltam. Votaram, claro.
O fato de a população toda ir às ruas quase ao mesmo tempo – não são muitas as horas para votar – é o que mais me encanta. Carnaval cívico. Gente muito gente muita gente, esperanças, emoções, vontades de ter certeza ou, nem que seja, ter um caminho. Ou dizer um sonoro: eu acho isto! E pá – tome o meu voto.
Votamos no domingo, segunda-feira é o dia de pós-festa, ressaca de prazer ou de dor. A cena mudou bastante desde a minha infância: os garis não têm mais montanhas de cartazes, “santinhos” e panfletos para varrer. Agora a guerra dos candidatos se faz pelos ares e, se quisermos, podemos ignorá-la, caso a artilharia ultrapasse o nosso gosto pessoal.
Lembro sempre de minha paixão desenfreada pelo marechal Henrique Teixeira Lott (1894-1984), candidato a presidente em 1960, quando eu começava a olhar o mundo. Não soube qual era o seu programa de governo, quais eram as suas ideias e qual seria o benefício para o país no caso de sua vitória. Mas jamais esquecerei os seus cartazes colados nos muros, a espetacular careca e a lustrosa face raspada, superfícies deslumbrantes para criações variadas com tocos de carvão. Sim, foi uma eleição e tanto, para a minha criatividade infantil.
O marechal era mineiro e defendia um pensamento militar a respeito do Brasil de extrema importância – isto só aprendi adulta, na faculdade de história. Legalista, nacionalista, democrata e humanista ao ponto de defender os militares de esquerda atacados pelas alas extremistas, ele merece ser estudado e debatido, para demonstrar a amplitude de ideias que a caserna brasileira abriga. Não tivemos os tenentes?
O Marechal Henrique Teixeira Lott foi um Ministro da Guerra digamos, modelar – pois, em especial no Brasil, a função do ministério e dos militares é, paradoxalmente, manter a paz. Às vezes eles tomam o poder, talvez num tique nervoso de quartel, afinal eles inventaram a República. Não, não foi o caso do Marechal. Poderíamos embarcar para longe, situar dois tipos de militares nacionais, com espada e sem espada, e… não. Vamos parar por aqui.
O tema se anuncia tão largo quanto as fronteiras nacionais, desafia o texto, traz um debate muito amplo, um descaminho. Aponta também um dado nem sempre debatido quando o foco recai sobre este fenômeno curioso chamado Brasil: os poderes de Minas Gerais. O Marechal nasceu lá, não sei a que ponto absorveu as águas inconfidentes da terra e aprendeu, assim, a olhar os dois lados da moeda. A solução é fácil: basta achar uma boa biografia dele para ler. Deve existir – os mineiros não deixariam na penumbra uma vida tão retumbante, o homem que defendeu JK e foi crucificado por ele….
Sim, os mineiros tiram ouro das pedras, isto não é uma nem uma simples constatação da realidade, nem uma metáfora gratuita. Um fato importante para confirmar a dimensão simbólica do enunciado? Basta estudar o teatro de Minas Gerais. Esclarece muita coisa a respeito do feitio da terra.
Imprensado pelo eixo vital do palco brasileiro (para a oposição, o eixo do mal, imaginem!), a dobradinha Rio-São Paulo, Minas Gerais precisou investir alto na criatividade para conquistar um lugar de destaque na cena do país. Conseguiu. Terra de poetas, escritores requintados senhores absolutos do verbo, o chão de Minas habilitou o poder da palavra em cena a partir da aposta no teatro de grupo.
Efetivamente o teatro de grupo, graças a práticas coletivas de produção e de criação, viabiliza uma eclosão social da poética transversal ao mecanismo convencional de mercado. Quando existem políticas de estado ou institucionais de apoio aos grupos, aí, então, torna-se possível, para os coletivos, ultrapassar a existência amadora e criar uma teia de expressão consolidada. Este patamar histórico foi conquistado em Minas Gerais – e a poética teatral mineira merece um estudo analítico alentado de história do teatro, capaz de expor as peculiaridades do caso.
Nossa, xente, um livro? Mas ninguém precisa esperar tanto. Um capítulo importante desta trajetória de sucesso poderá ser acompanhado ao vivo, de 5 a 11 de novembro: o Festival Internacional de Teatro, Palco e Rua de Belo Horizonte estará em cartaz, na sua 15ª edição. Uma programação rica, variada, antenada com as inquietudes do presente e da arte irá ocupar a cidade.
Afinal, festivais são eventos parecidos com os dias de eleição, são festas da sensibilidade da cidadania. No caso do FIT BH, a comemoração se torna mais arrebatadora, pois tanto o Teatro como o Teatro de Rua de Belo Horizonte foram reconhecidos como patrimônios imateriais da cidade.
A celebração se tornou maior nesta edição por assinalar o reencontro do público com os artistas e grupos, pós-pandemia. A realização do evento revela um colorido de extrema importância política, o festival é uma efeméride oficial e por isto traz na pauta a assinatura da Prefeitura de Belo Horizonte, este ano em parceria com o Instituto Odeon e produção da Rubim Produções.
Assim, as atrações contarão com ingressos a preços populares ou entradas gratuitas. Estarão disponíveis trabalhos artísticos de grupos e coletivos locais, nacionais e internacionais. No total, as montagens serão mais de 30; além dos trabalhos presenciais, pela primeira vez o festival transmitirá espetáculos on-line.
A estrutura da festa, então, vai esbanjar riqueza. Contará com três mostras diferentes: uma dedicada à cena contemporânea, ao lado da mostra cena em tela e, ainda, uma dinâmica mostra cultural. Nesta última, está programado um amplo painel de atividades dedicadas à formação, à pesquisa e à criação, ao lado de exposição, rodas de negócios e networking.
Há um projeto explícito de estímulo à pluralidade, à diversidade e de incentivo à formação e à reflexão. As declarações da Secretária Municipal de Cultura de BH, Eliane Parreiras, e da presidente da Fundação Municipal de Cultura, Luciana Féres, apontam para uma visão requintada da vida em sociedade, que precisa ser movida a partir dos valores humanos mais elevados, para elas reconhecíveis no teatro. Em Minas, é moeda corrente, o teatro é gênero cultural de primeira necessidade, remédio exemplar para lidar com a fome de cidadania.
Na curadoria deste ano, atuaram a atriz, curadora e diretora artística Andreia Duarte; o professor e pesquisador Marcos Alexandre e a atriz, diretora e professora Yara de Novaes. Além da produção mineira, será possível ver trabalhos do Rio, Bahia, Ceará, Rio Grande do Norte, São Paulo e Paraíba. A grade internacional contemplará Argentina, Chile e México.
Para a abertura do Festival, a festa teatral vai ganhar as ruas: um cortejo, um formato de teatro profundamente ligado às raízes históricas do teatro brasileiro, percorrerá a cidade sob o comando dos multiartistas Maurício Tizumba e Marcelo Veronez, da Praça Sete até o baixio do Viaduto Santa Tereza.
Já o norte dos debates lançará mão de três nomes fundamentais para o pensamento da cultura brasileira hoje, que serão homenageados: a escritora Conceição Evaristo, o escritor e líder indígena Ailton Krenak e o diretor e dramaturgo João das Neves (1935-2018). Será possível transitar entre ideias sociais urgentes, ideias teatrais fundantes da cena brasileira contemporânea e ideias seminais para as apostas no futuro.
Não será tarefa fácil escolher um cartaz para ver diante do belo leque de ofertas, um desafio ácido para o coração dos amantes do teatro. Vale mergulhar na planilha on-line e estruturar a agenda.
Algumas indicações rápidas, contudo, podem ajudar a sinalizar o mapa. De saída, um espetáculo carioca com certeza renderá muita prosa: Museu Nacional, a mais nova montagem da Cia Brasileira de Movimento e Som Barca dos Corações Partidos. A produção, apesar do tema tão dolorido, assinala o aniversário de dez anos do coletivo. Escolheram um marco de ouro para a comemoração.
Talvez nenhum outro episódio da história recente do país possa traduzir com tanto impacto o triste quadro de falência nacional. Casa habitação da monarquia, museu precioso maltratado até a autocombustão apesar de administrado por uma potente universidade, o casarão da Quinta da Boa Vista ruiu e os escombros soterraram relíquias históricas e científicas de valor incalculável ao lado de memórias delicadas de muitas gerações. O Museu Nacional persiste em nós como uma dor que não passa.
A programação conta também com a Cia. Mungunzá de Teatro (SP), presente com o seu primeiro espetáculo de rua, AnonimATO, também um cortejo no qual oito personagens falam de figuras anônimas diferenciadas, por serem a alma de uma cidade. Outros grupos estarão em cartaz, para ampliar ainda mais o impacto da edição.
Vale citar o Galpão, Teatro Negro e Atitude, Quatroloscinco, Oficcina Multimédia. Confira, por favor, a grandeza das ofertas. E a cena belorizontina contará muito de si, através de um rol generoso de trabalhos, com destaque para os grupos Toda Deseo, Grupo Oriundo de Teatro e Divinas Tetas.
Enfim, múltiplos formatos da cena estarão congregados na cidade, com sotaques teatrais, regionais e nacionais muito variados. Falas múltiplas ajudarão a iluminar as reviravoltas da aventura humana, para a conquista de uma percepção mais apurada do ato de viver. Uma fala, no entanto, irá se sobrepor a todas, a fala afinada com a alegria de ter um palco vibrante, pródigo em potência criativa.
Ah, as eleições passam – sim, elas são fundamentais, permitem que a voz de cada um ecoe, geram a identidade do coral coletivo que, afinal, querendo ou não, somos. São, porém, um ponto miúdo do calendário, quase a coroação do resto, aquilo que você fez de sua vida para chegar ali.
As eleições deixam marcas, decidem vidas e rumos da sociedade. Mas a festa do teatro é incomparável – no lugar da alegria dos corpos coloridos que desfilam faceiros em direção às urnas, o teatro traz a alegria das almas, entregues, graças ao teatro, à plenitude de ser. Então, vida longa para o FITBH!
SERVIÇO:
15º Festival Internacional de Teatro, Palco e Rua de Belo Horizonte – FIT BH 2022
De 05 a 11 de novembro
Ingressos: Eventim e Sympla
Informações: www.portalbelohorizonte.com.br/fit
Assessoria de Imprensa local FIT BH
Fábio Gomides
Wagner Liberato
Assessoria de Imprensa Nacional FIT BH
Pedro Neves