No coração do teatro
Se você deseja passar uma agradável noite de diversão no teatro, não hesite – vá correndo ver a deliciosa montagem de A Atriz, de Peter Quilter, cartaz do Teatro Leblon, Sala Marília Pêra. Trata-se de um programa para sensibilidades requintadas, interessadas em contar com momentos de descontração inteligente diante da marcha do mundo. É para rir sim, mas um riso dotado de espírito. A peça honra uma grata tradição do mundo ocidental, o teatro de diversão elegante, essencial para a saúde da vida em sociedade. E é um prazer enorme contar aqui no Rio com este tipo de luxo, indício expressivo de civilização.
O texto traz a assinatura do dramaturgo inglês Peter Quilter, um autor notável por sua habilidade para desenhar papéis femininos de impacto, interessado em explorar em cena as peculiaridades do mundo do teatro. Dois dos seus textos de maior sucesso, nesta linha, foram encenados no Rio – Gloriosa e Judy Garland – o fim do arco-íris.
No novo texto, o foco recai sobre um tema ácido, a fugacidade da fama e do poder, a fragilidade da consagração mundana construída por uma celebridade ao seu redor. Uma atriz aclamada, sem identificação precisa com as estrelas históricas do mundo teatral, atravessa, quase sempre no seu camarim, a sua última jornada estelar, pois pretende largar a carreira e morar com um novo amor à beira de um lago suíço. Ao longo da noite, diferentes personalidades aparecem para revelar facetas da artista poderosa: a camareira sonsa, fiel e mordaz, o jovem diretor presunçoso, o filho sempre negligenciado, o ex-marido bandido, o empresário carente e um tanto incompetente, o noivo rico gagá.
Na versão brasileira, a partir de tradução inspirada de Bemvindo Sequeira, a diretora Bibi Ferreira escolheu ambientar a trama nos anos 1920. Mas a opção não mudou a natureza do texto original – a proposta não é a de fazer um documentário, não existe a pretensão de enveredar por um estudo de época ou sequer brincar com um momento da história do teatro.
Em lugar de falar das grandes primeiras atrizes da época, a peça deseja focalizar a solidão do poder, o deserto existencial que envolve os aclamados pela fama, para levar cada um, em sua poltrona, a questionar os impasses de seu pequeno mundo. A ação projetada para os anos 1920 garantiu um certo distanciamento, para a percepção a um só tempo racional e emocionada do tema. O tom é sofisticado: entre risos, sugere-se em linhas tênues um inventário discreto da dor de viver, afinal de contas, em último grau, a dor de viver comum a todos.
Na condução do elenco, um conjunto de alto padrão profissional, a direção buscou a afinação – todos os atores demonstram um domínio cristalino das coordenadas da ação e da função dramática de seus papéis. O foco é a dinâmica do texto, qualidade acentuada por uma leitura densa das partituras individuais, uma marca das direções de Bibi Ferreira. Há um desenho de gestos preciso e uma movimentação límpida, resultados da direção de movimento de José Possi Neto.
No palco, dois grandes atores lideram o elenco, instauram uma magia teatral requintada, um sucesso que acontece como forte teatralidade, pois os líderes são muito beneficiados pelo sentido de coesão do conjunto. O maior destaque é Betty Faria, uma atriz intensa e generosa, requintada no trato das emoções, notável por sua inteligência cênica. A sua Lydia Martin, delicada, insinuante, divertida, humana, é uma celebração da arte do ator: a atriz transforma o papel em homenagem límpida ao ato de representar.
O colorido de cada contracena, o emaranhado de emoções e de intenções revelado pela atriz traduz um generoso panorama da alma humana em sociedade. O espetáculo de despedida apresentado, a peça dentro da peça, é O Jardim das Cerejeiras, de Tchecov. A sequência da peça russa incluída é uma cena materializada por Betty Faria sob um rigor sentimental tão absolutamente singelo, tão arrebatador, que a emoção varre a plateia e a atriz é aplaudida em cena aberta.
O outro líder no tablado é Bemvindo Sequeira, responsável por uma atuação de forte ressonância histórica. Ator conhecido por sua verve, por seu temperamento cômico histriônico, transgressivo, Bemvindo Sequeira se reinventa e ilumina o palco num ato de doação total ao teatro. Contido, elegante, requintado, inteligente, o seu desempenho esgota o vocabulário de adjetivos possíveis para definir um trabalho de grandeza teatral rara.
O milionário senil que ele materializa, corroído pela certeza do poder e pelo tempo, insinua a descrença a respeito de tudo o que possa desviar uma pessoa do seu prazer mais profundo na vida – como a estrela poderia se encantar por tão triste figura? São pequenos gestos, trejeitos, insinuações, sempre exemplares. Nesta chave, a sedução que exerce sobre a grande atriz resulta compreensível, mas hilária, duvidosa, passível de questionamento por todos ao redor.
E assim, a partir daí, a roda da vida se materializa como ciranda de afetos problemáticos, eficientes para desequilibrar um indivíduo. Há a figura oportunista, mas sedutora, do ex-marido malandro, golpista, talvez ainda amado, recorte de um passado retumbante, excelente trabalho de Giuseppe Oristanio.
E há também a autoridade inútil do diretor cheio de si, mas vazio de poder efetivo para mover a rotina da cena, desenho preciso assinado por Gabriel Gracindo. A dificuldade para abraçar a vida cotidiana e os amores convencionais desponta nos encontros com o filho, o frágil maior abandonado sustentado por Pedro Gracindo.
O perfil do gênio forte da atriz se revela ainda nas hesitações do empresário inseguro, incapaz de grandes feitos e de efetivamente dominar a contratada, personalidade nervosa à beira da explosão criada por Cacau Hygino. A cena da sua explosão, aliás,é um dos momentos fortes da encenação. Mas não existe só o trato instável com as autoridades e com as relações obrigatórias de afeto, os conflitos prosperam ainda na convivência com os subordinados, transparecem no jogo de amor e desconfiança mantido com a camareira, uma criatura servil, mas conspiradora, a dissimulada figura proposta por Stella Freitas.O temperamento da estrela transparece, então, por completo, como resultado do seu poder.
Contudo, nem só de atores diligentes e de sábia direção se faz a cena. A beleza da noite teatral é amplificada em larga escala graças ao magistral cenário de José Dias. A ambientação nos anos 1920 permitiu ao cenógrafo assinar uma composição art-decô de extremo bom gosto, um espaço de luxo para retratar não o realismo banal de um camarim, mas a poesia de um lugar da fama, um espaço de realização grandiloquente de uma personalidade de exceção. A engenhosidade de concepção do camarim ganha destaque graças à luz, uma teia de efeitos sugestivos, de Paulo Cesar Medeiros. Nos dois momentos em que o camarim se abre para exibir o palco da última sessão da estrela, o papel da iluminação é decisivo para a sugestão do teatro no teatro e para fixar as dimensões da sensibilidade da intérprete.
Assim, há um jogo curioso na cena: primeiro, existe uma proposta de humanização, de interpretação despojada, que aproxima os diferentes papéis, em especial a estrela, da vivência comum, da gente normal, os anônimos das ruas, por vezes marcados por uma ânsia sufocante por fama, dinheiro e poder. Em segundo plano, ao redor deste fluxo humano, surge uma grandiloquência, uma sugestão do amplo e do desmedido, perceptível no cenário deslumbrante, na luz elaborada com espessura e profundidade e em particular nos preciosos figurinos de Sônia Soares.
Além de definir a condição social de cada um, o figurino aposta com êxito na função teatral dos personagens. As roupas da atriz, em particular, de grande beleza e fina execução, expressam com rigor o mundo da fama como um lugar de sonho.
E este é o saldo encantador do espetáculo: no interior do confronto entre a humanidade singela e o ápice da consagração, o desejo de renúncia proferido pela grande dama, a favor de uma vida sem glória, ao lado de um ser decadente, nos leva a pensar a nossa própria exaustão frente ao cotidiano. E nos leva a aceitar, com certeza, a nossa humanidade reles de todo o dia, a nossa escassa grandeza. Um teatro requintado e inteligente favorável ao conformismo? Escapista? Pode ser – mas nenhuma revolução acontece na hora do jantar, depois de um dia de efervescente rotina e duras batalhas para sobreviver.Urge pensar o teatrão de outra forma.
Afinal, é muito provável que uma pequena revolução aconteça sim sempre que conseguimos perceber a nossa dimensão exata no mundo, sempre que conquistamos uma inteligência maior a respeito de nossas vidas. E esta chave para nos pensar e pensar o mundo, é o bom teatro quem nos fornece. Este é o sentido do teatro comercial nosso de cada dia, a sua função social consiste em ajudar a mover a engrenagem da existência, a delicada máquina do dia-a-dia. Por isto saímos tão felizes do teatro, depois de contemplar a beleza de peça que é A Atriz. Ela nos humaniza e nos insufla vontade de viver.
O maior mérito de A Atriz é este: mostrar no palco em grande estilo a maturidade do teatro carioca, um teatro que nos diverte e nos leva a olhar a vida de frente. Um status conquistado com muito trabalho, que nenhum percalço da vida teatral carioca, por vezes uma arena mambembe, consegue abalar. Uma grande vitória. Uma cena de comovente profissionalismo, apesar de todo o sobressalto chamado Brasil. Salve, Betty Faria, parabéns: você é a atriz, esta bela cena é sua. Obrigada. A plateia de teatro agradece.
Autor: Peter Quilter
Elenco: Betty Faria, Giuseppe Oristanio, Bemvindo Sequeira, Stela Freitas, Gabriel Gracindo, Cacau Hygino, Pedro Gracindo
Produtora Executiva: Claudia Goldstein
Assistente de Direção: Paula Leal
Cenário: Jose Dias
Figurino: Sonia Soares
Visagismo: Melissa Paladino
Iluminação: Paulo Cesar Medeiros
Som: André Garrido
Trilha: Paulo Francisco
Programação visual: Roberta de Freitas
Fotógrafo: Rodrigo Lopes
Tradução: Bemvindo Sequeira
Teatro Leblon
Estreia 7 de maio.
De quinta à sábado: 21h / R$ 100,00
Domingo: 20h / R$ 100,00
Classificação indicativa – 14 anos
Duração: 80 minutos