Sentimentos comuns, teatro de exceção
Evoé, São Paulo – e eis que uma brisa bandeirante vem da montanha decidida a varrer a nossa praia e demonstrar a superficialidade de nossa existência litorânea. O teatro paulista (ou paulistano?) pede passagem e não deixa pedra sobre pedra onde passa. Muito bom: uma das coisas boas da vida é o teatro denso, bom de ver. Em especial este teatro cotidiano, dialógico, de fino acabamento e excelente composição, que vem até nós para falar de coisas simples, a nossa condição rotineira, os desafios dos nossos pequenos dramas. Em resumo, o teatrão comercial demonizado pelos jovens e experimentais, que não está inventando a essência da vida, apenas deseja lidar com o valor imediato da arte na ciranda de todo dia.
Ele é dialógico por ser da nossa estatura, pequeno e delicado como o homem comum, por não ter uma verdade transcendental a nosso respeito e por balançar a cabeça e dizer: é difícil. Trata-se de um palco disposto a conversar com a nossa alma com elegância, apto a jogar o nosso jogo de pequenas emoções, grandes dores, angústias opressoras, mas passageiras como a vida. E, no final, este pequeno deus vai nos sussurrar: vá para casa, quem sabe amanhã vai ser outro dia? Quem sabe algum labirinto nos rodeie e nos permita viver uma outra dimensão de nós mesmos, mais libertos, mais felizes, aqui e agora?
O fluxo de sensações nasce exuberante da cena de A toca do coelho, de David Lindsay Abaire, uma direção artesanal de Dan Stulbach, diretor estreante. Ator de múltiplos recursos, navegador de longo curso da alma sentimental, Dan erigiu uma obra de ourivesaria em que filigranas de emoção, das mais variadas tonalidades, despontam em uma cena de traços sensíveis, onde não existe gratuidade qualquer, mas um desenho único, harmônico, um painel humano que identifica os grandes encenadores.
A cenografia de André Cortez lida com a ideia de estrutura da casa, da família, exposta como fato real e simbólico. Em uma casa aberta, devassada, a cena concilia temas estratégicos: a mesmice cotidiana, em contraponto com o mundo exterior, o aconchego e a dispersão, a agitação familiar e o vazio da morte. Para atingir tal resultado, foi necessária uma sintonia forte com o desenho da luz (Marisa Bentivegna), que constrói espaços e sublinha intenções, e com os figurinos (Adriana Hitomi), objetivos na caracterização de personagens e situações, das cores ao desenho.
A trama parte de uma situação de nosso tempo, urbana, de forte ressonância no modo de vida brasileiro atual. Um jovem casal é retratado às voltas com o desafio de superar a dor de ter perdido o filho pequeno, atropelado na porta de casa, em um brutal acidente de automóvel. Enquanto o pai consegue se reestruturar mais rapidamente, a mãe tem dificuldade extrema para se libertar da dor e se desdobra em diversas imagens de dilaceramento, na convivência com a mãe e a irmã. Através da aproximação com o assassino involuntário do filho, ela inicia o processo de volta à vida. A encenação, portanto, parte da palavra direta e pura, é desafio para o trabalho de ator. É uma ode à palavra.
O elenco assumiu a proposta e construiu um fluxo narrativo de comédia dramática sentimental bastante requintado. A cena impõe uma constatação: Reynaldo Gianecchini é o novo galã do Brasil, irresistível. Ator disciplinado e estudioso, ele tem carisma e presença cênica, densidade e variedade de expressão, embora ainda hesite nas cenas mais profundas – nada que não possa superar com dedicação e trabalho.
Contudo, a importância da afirmação do galã não ofusca o excelente trabalho de elenco. Maria Fernanda Cândido revela notável delicadeza de sentimentos, impressionante habilidade para o desenho facial de emoções e absoluta limpeza de gestos. Selma Egrei, consagrada atriz infelizmente pouco presente nos palcos cariocas, é um turbilhão de sentimentos, um ato de teatro puro, responsável por uma figura de mãe antológica, dividida entre a alienação, a superficialidade e a dor antiga que carrega em segredo: deslumbrante. Simone Zucato impressiona ao definir de maneira precisa a irmã doidinha, mas companheira, comentarista irreverente dos jogos afetivos. Felipe Hitze compõe um adolescente entre o sensível e o desajustado, uma máscara patética em sintonia com um gestual de extrema tensão humana.
Enfim, um espetáculo obrigatório por sua qualidade de trabalho teatral, uma abordagem que celebra o padrão de dramaturgia do texto, premiado com o Pulitzer. Uma cena para quem adora teatro em estado de combustão de almas, a partir da palavra, sem invencionices cênicas – enfim, uma produção de arte que faz a honra do teatro paulista, em que o fantasma da bilheteria não obriga os artistas a malbaratar o ofício e a sensibilidade do público. É o velho teatrão de sempre, renovado profundamente, apto para consagrar galãs e divas. Enfim, um velho amigo preocupado com as cicatrizes das nossas lutas sentimentais. Não perca!
Autor: David Lindsay Abaire
Tradução Brasileira e Adaptação: Simone Zucato e Alessandra Pinho
Direção Geral: Dan Stulbach
Elenco: Maria Fernanda Cândido, Reynaldo Gianecchini, Selma Egrei, Simone Zucato, e Felipe Hintze
Cenários: André Cortez
Iluminação: Marisa Bentivegna
Figurinos: Adriana Hitomi
Trilha sonora Original e Composta: Daniel Maia
Preparador Corporal: Leandro Oliva
Design Gráfico: Alessandro Romio
Assistentes de Direção: André Acioli e Otavio Dantas
Assistente de Produção: Elis Braga e Mag Flausino
Direção de Produção: Valdir Archanjo e Bira Saide
Produtores Associados: Simone Zucato, Valdir Archanjo e Bira Saide
Realização: Asa Produções Culturais, SPZ Produções Culturais, e Nero Produções Culturais
Teatro Leblon – Sala Fernanda Montenegro
Rua Conde Bernadotte, 26, Leblon
Temporada: De 07/03 a 08/06
Dias e horários: Sexta e sábado, às 21h, e domingo, às 18h
Valor: Sexta e Domingo – R$80,00; Sábado – R$90,00
Duração: 110 minutos
Lotação: 413 lugares
Classificação: 12 anos
Gênero: Drama