Elas reinam absolutas: são as biografias musicais, peças de teatro que o público ama e alguns puristas odeiam. E, afinal, que mal elas fizeram? O que há de errado em contar vidas cantantes sob forma musical? A rigor, elas representam a volta ao palco da filha vadia, a música popular brasileira, que nasceu como espetáculo nas cenas das revistas, operetas e burletas, no final do século XIX início do século XX, fugiu para o radio e para o disco e agora, em nossa época, regressou ao lar. Lá como cá, não há dúvida, fazem sucesso, o povo as adora. Mas, de tanto receber ataques, as biografias estão com vergonha de ser o que são, meros relatos de vida – deram para tentar esconder a sua verdadeira forma sob subterfúgios vários. E nem sempre felizes…
É bem a situação de “Emilinha & Marlene, as Rainhas do Rádio” (Thereza Falcão e Júlio Fischer). A rigor, trata-se de uma biografia harmonizada de duas estrelas do radio, cantoras que produziram um movimento notável de mobilização popular ao seu redor, que as tornou, ao menos aparentemente, rivais. O material é muito extenso, de saída, gerou um espetáculo longo, pois são duas vidas agitadas, ricas em acontecimentos. Mas este não é o problema – o que gera estranheza é a escolha dos autores, para disfarçar a situação biográfica: optaram por um foco interessante, tratar de suas vidas a partir do fenômeno espantoso que as envolveram, a multiplicidade de fãs enlouquecidas.
O desenho, contudo, não tem densidade, não se sustenta com vigor, é vago, apenas uma maquiagem. Nem se consegue explorar mais profundamente o que vem a ser a fã, a macaca de auditório, expressão que as batizou em seu tempo, nem se consegue olhar a vida das rainhas através das pupilas fascinadas de suas seguidoras fiéis. O que está no palco é apenas um relato, um recorte das vidas, pois as fãs, duas irmãs que voltam para a casa da mãe falecida para recolher as relíquias deixadas para trás, desfiam os fatos em seqüência cronológica, como se fossem antigas comères de revista. Quer dizer, o formato acabou por transformar a peça em um documentário, em que os dois universos contrários são tratados sob um tom de neutralidade, com as naturais oscilações de ritmo e alguma monotonia decorrentes do formato descritivo-enumerativo.
Ainda assim, sob a direção de Antonio De Bonis, um experiente condutor de biografias musicais, o espetáculo tem um encanto enorme, acontece em cena – afinal, Emilinha e Marlene eram deusas da canção e por isto se tornaram rainhas. A partir de um dispositivo cenográfico (Sérgio Marimba) que lembra muito a arquitetura da cena de “Somos irmãs”, a direção impôs um movimento, um ritmo e um colorido inebriantes, capazes de neutralizar a falta de beleza do espaço e a hesitação do texto.
As duas irmãs de agora, fãs inimigas, abrem a cena indicando o antagonismo que vai percorrer a noite; Bia (Ângela Rebello), desde cedo adorou Emilinha. É mais conservadora e romântica e aparece em toda a sua inteireza graças ao desempenho mais lírico e natural da atriz, muito envolvente. A outra, Gegê (Rosa Douat), devotou a sua atenção ao culto de Marlene; é mais moderna e mais ousada, e o trabalho da atriz é mais frio e narrativo, menos cativante. Uma fragilidade curiosa do texto já desponta na cena da abertura, para intrigar, sem resposta, a platéia – como fãs tão dedicadas deixaram os tesouros de suas deusas abandonados na casa dos pais?
De qualquer forma, as relíquias e as lembranças disparam a parada de sucessos e de feitos das duas mulheres sensacionais. E elas são sensacionais porque as atrizes que defendem os papéis assinam desempenhos impecáveis: são dois furacões emocionantes, valem a noite, são aqueles desempenhos que não se pode deixar de ver. As duas denunciam a qualidade do trabalho de corpo desenvolvido na montagem (Márcia Rubin), precioso, detalhista, quente, evocativo. Solange Badim incendeia o palco como uma Marlene esfuziante, pródiga em braços e pernas, ácida, elegante, com a excelência vocal de sempre. Em contraponto, Vanessa Gerbelli condensa a aura delicada de romance suave da Rainha da Marinha, surpreende ao cantar e interpretar, impõe uma atmosfera doce, traduz o encanto e o charme de Emilinha. Muito do impacto das cenas, em diversos momentos grandiosas, vem dos figurinos (Rosa Magalhães), inspirados, preciosos, perfeitas recriações de época.
Um outro detalhe curioso que começa a despontar nos musicais recentes, em particular nas biografias musicais, é a opção de expor um painel humano nebuloso ao redor dos ídolos biografados, como se os contemporâneos fossem esquemas ou pretextos para explicar as vidas principais. Assim, o elenco de apoio, de profissionais de experiência variada – Stella Maria Rodrigues e Cristiano Gualda, Luiz Nicolau, Ettore Zuim, Cilene Guedes e Mona Vilardo – se desdobra em seres-acessórios, caricatos, cuja finalidade é mera ambiência para a exposição de um fato ou característica das personalidades centrais. Todo o conjunto se apresenta em harmonia, embalado por sons que fizeram o ritmo da sociedade brasileira há pouco tempo atrás (direção musical de Marcelo Alonso Neves); há uma densidade do espaço nítida, um desenho de volume preciso e uma paleta de emoções hierarquizada com rigor a partir da luz (Jorginho de Carvalho).
Os problemas localizados na fatura do texto não devem servir de pretexto para reduzir a importância da montagem – ela precisa ser vista e discutida, avaliada na lição fundamental que traz, a procura de caminhos para uma dramaturgia da biografia musical capaz de permitir que as canções possam surgir no palco sem gratuidade ou sem distorções absurdas dos fatos. E a importância das duas cantoras para o gênero não pode ser relegada a um plano secundário, pois elas atuaram em musicais, no cassino, no teatro e no cinema. Este, é claro, é o argumento técnico. De resto, corra, vá ver, não perca; dentro de cada um de nós sobrevive feliz uma macaca de auditório, uma fã descabelada, formas existenciais de nossa época. E só indo ao teatro você vai se reconhecer – e vai perceber como, afinal, Emilinha e Marlene sabiam muito bem cativar a macaca que jaz dentro de você.
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