A cena é eloquente, de saída. Há um tapete daqueles que evocam as mais finas artes do Oriente. Quatro tubos de voile bailam do chão ao teto – o céu do teatro. Um músico requintado, Beto Lemos, oferece sonoridades inspiradas. Uma luz expressiva e delicada materializa névoas propícias ao sonho. No fundo, dentro de um dos tubos, uma jovem recita trechos de As mil e uma noites, o livro que encanta o mundo há séculos. A peça é Eu Matei Sherazade, confissões de uma árabe em fúria.
Após uma temporada bem-sucedida no Teatro Poeira, a montagem segue em cartaz, agora por breve tempo, no Teatro Municipal Ziembinski. Vale a pena conferir. Mas, é bom avisar, siga até lá sem ilusão – a essência da cena impregnada de poesia é a denúncia incandescente dos crimes cometidos, historicamente, contra a mulher. Então, por lá, alguma poesia se perde. Portanto, é uma peça-panfleto.
A base do espetáculo é o livro homônimo da ativista libanesa Joumana Haddad, poeta, jornalista, empreendedora cultural. Engajada desde muito jovem na luta contra a opressão masculina e pela libertação plena das mulheres, a jornalista critica neste texto violentamente a visão tradicional de que Sherazade seria insubmissa. A seu ver, a jovem, ao aceitar o casamento com um sultão afeito ao feminicídio e optar por seduzi-lo, através da contação de histórias, teria se rendido ao sexismo. Pior. Teria ido até mais longe, no caminho da derrota das mulheres, pois, com as histórias capazes de ludibriar o sultão, para não ser morta, teria ludibriado também quem olha o sultão, mascarando o fato de ele ser um assassino compulsivo de mulheres.
O brado irado contra a obra clássica, desprezada naquilo que ela tem de época e de temporalidade, se torna em cena um clamor explosivo contra todas as formas atuais de liquidação da mulher. A abordagem do tema se desdobra, é ampliada em larga escala, busca o universal. Segundo a autora, vale perguntar se a situação de opressão da mulher árabe está muito afastada da opressão geral do sexo feminino em todo o mundo, discussão que a atriz traz para o Brasil. Será?
O texto insinua mesmo a possibilidade de que exista uma mulher árabe liberta, emancipada, senhora de plenos direitos – um ser que, no entender da autora, o ocidente desconhece. A partir do texto, dá para pensar que esta mulher árabe em estado de plenitude cidadã seria, na verdade, a própria Joumana Haddad. Quer dizer, seria em certa medida a mulher árabe do Líbano. E que – quem sabe – talvez não existam muitas outras mulheres nas mesmas condições no mundo “árabe“…
Pois é. É admirável a veemência do texto. Incomoda reconhecer que, como quer a fala irada da cena, afinal, aqui, no ocidente, não conhecemos exatamente o que é a mulher árabe. Segundo a retórica da peça, a mulher árabe é concebida por nós sob pesados estereótipos. Contudo, parece difícil vislumbrar a existência da ideia de mulher livre quando uma multidão feminina disforme veste burkas, longos véus e vive sob mutilação clitoriana – para ficar numa lista resumida de castrações.
A própria peça cita várias destas opressões violentíssimas, cotidianas em vários países ou regiões de cultura “árabe“. Contudo, no texto, a citação de tais fatos num rol geral de liquidação da mulher soa estranho, pois não se reconhece o grau de rebaixamento humano absurdo existente aí. Afinal, trata-se da prevalência de um apagamento físico em diferentes graus, uma morte em vida, algo distante daquilo que acontece no resto do mundo, por mais violento que o mundo seja. Descontando-se todo o valor poético que a atriz em cena consegue construir, diante do massacre feminino “árabe“, cotidiano, parece muito dificil não admirar Sherazade…
Se as nossas certezas não são derrubadas pela encenação, vale reconhecer que elas saem do teatro sacudidas: Carolina Chalita é uma atriz excepcional. É comovente ver uma performance de atriz tão radical, tão estruturada poeticamente. Sob a direção artesanal de Miwa Yanagizawa, elas transformam discurso e panfleto em poesia, em arrebatamento, descoberta de dores profundas capazes de desvelar cicatrizes irrecuperáveis na alma ocidental. O texto se transforma em fala de plena voz. As falas ecoam no corpo. O domínio absoluto do jogo corporal eleva a cena a uma voltagem de comunicação teatral impressionante. A plateia se rende.
Dotada de uma requintada capacidade para expressar sentimentos e emoções com muitas nuanças, Carolina Chalita irradia este poder ao corpo, revela-se no palco como presença e potência. Assim, mesmo que as mensagens mais incendiárias pareçam racionalmente frágeis, posto que absolutamente incendiárias, a força interpretativa da atriz impõe a grandeza da luta a todos, até mesmo no espírito mais descrente.
A bem da verdade, reconhecendo-se hoje a grandeza do feminino, a condição da mulher de ser e de existir num lugar antagônico à força bruta, o espetáculo se encerra com uma nota de incomodo. As mil e uma noites são, com certeza, uma das maiores obras-primas da biblioteca mundial. O livro precioso nos leva a vislumbrar a densidade do eterno feminino, a urgência da luta contra a arbitrariedade e contra o poder cego, para ficar na lição maior resumida do texto.
É uma trama concebida sob uma temporalidade objetiva, mas com uma densidade para existir além de todo o tempo. Diante do livro, estamos diante do infinito da poesia. Esbravejar contra uma obra de arte desta envergadura para ver ali uma ambição completamente fora de seu tempo pode causar sensação, como uma notícia de tabloide sangrento. Há, porém, o risco de, para celebrar urgências contemporâneas, demolir obras absolutas.
Eu, mulher, não mataria Sherazade. Não acho que este crime contribuiria para diminuir a patética violência contra a mulher brasileira – ou contra todas as mulheres do mundo. Afinal, a atitude exaltada parece traduzir aquela velha história, de jogar fora a água do banho, junto com a bela criança e a bacia.
Ficha técnica:
“Eu matei Sherazade, confissões de uma árabe em fúria”
Baseado na obra de Joumana Haddad
Dramaturgia e atuação: Carolina Chalita
Direção: Miwa Yanagizawa
Direção musical e trilha original: Beto Lemos
Música ao vivo: Beto Lemos
Cenografia: Constanza de Córdova
Figurino: Tereza Fournier
Fotos: Vinicius Mouchizuki
Produção: Sérgio Saboya e Silvio Batistela
Assessoria de imprensa: Equipe D Comunicação
Serviço:
Local: Teatro Ziembinski – Rua Urbano Duarte. Tijuca. – Rio de Janeiro
Datas: até 15 de dezembro de 2024
Horários: sexta a domingo às 19h
Ingressos: Sympla