Biografias e crimes históricos: a dimensão da arte e do artista
Tania Brandão
Posted on 17 de outubro de 2013
Parte I
Faça do seu sonho a minha realidade. A legenda é o clamor do artista popular do nosso tempo, o motor de sua carreira, o combustível de sua arte, a oferta capaz de provocar a identidade da plateia e a fidelidade dos fãs. O artista precisa catalisar o impulso coletivo de sonhar, o gosto por alguma transcendência, a energia inefável latente em todas as pessoas, capaz de fazer com que o ser humano mova montanhas, ainda que imaginárias. Sem dúvida foi com esta energia que a Humanidade fez as pirâmides, as cruzadas, as grandes navegações. Foram episódios de ação real, concreta e objetiva em que multidões, ainda que obrigadas, acreditaram em atos grandiosos capazes de gerar mais poder para todo o poder.
Hoje, o convite é para a construção sedentária de edifícios etéreos, o máximo de empenho físico a fazer é o arrebatamento sentimental, o canto e a dança. A transferência desta enorme força coletiva para determinadas pessoas e não mais exclusivamente para cegos poderes do além ou para o puro poder objetivo é um dos grandes feitos novos de nosso tempo. Nunca antes na história do mundo homens de arte desfrutaram de tanto poder – e o exemplo claro que deve ser invocado é a declaração-blasfêmia de John Lennon, quando ele ousou supor a existência de uma notoriedade dos Beatles mais forte do que… a de Cristo.
Trata-se de uma via de mão dupla, logo se vê: construída pelo artista como condição para a sua arte, construída pelo fã como possibilidade de libertação pelo sonho, ela magnetiza o fã e escraviza o artista. Uma imagem pública minuciosa é erigida em palavras de pedra para sustentar este edifício; uma história de vida preciosa é lapidada para iluminar a imagem. Logo, assim, surge uma terceira pessoa, o artista, um ser em arte, que não se confunde com as gentes comuns, por ser o suporte de um sonho coletivo construído em dialógica. O desfecho é cristalino: se instala no processo de comunicação um sonho coletivo, o sonho que se quer sonhar. Qual o significado último desta situação histórica nova, original, é a grande pergunta a fazer, já que uma elaboração coletiva da sensibilidade acontece nesta engrenagem delicada. Não se pode mais falar aqui, hoje, em alienação e ópio do povo, as coisas não são mais tão simples, uma forma coletiva de civilidade coletiva está em processo de instauração no mundo, nos séculos XX e XXI.
No interior deste jogo, compreende-se a necessidade de tecer uma fina teia de ourivesaria, de extrema delicadeza, para desvendar a trama deste tecido tênue, explicar o que é o artista ou uma vida de artista – perguntas exaustivas precisam ser respondidas: como ele – o jogo e o artista, cada qual a seu tempo – se constrói, como ele nos fascina, quais os riscos apresentados de esmaecimento ou ruptura, para onde ele nos leva?
A empresa não apresenta facilidade, o risco de não perceber o desenho da trama é enorme. Uma necessidade absoluta para o pensamento desta condição do presente é o estudo e a pesquisa, a elaboração de biografias de artistas de destaque. Mas a constatação impõe limites teóricos e metodológicos graves. Escrever biografias de artistas dignas deste nome é um ato longe de qualquer banalidade. O ponto de partida essencial é a entrega a este equilíbrio ousado entre razão, sensibilidade, sedução, devoção e sentido crítico.
Este primeiro limite leva a uma constatação fundamental para os estudos da arte em nosso tempo: não existe biografia de artista séria, digna deste nome, que não seja chapa branca, oficial, em que pese o alcance melancólico destes termos. Isto significa reconhecer uma verdade primeira: no estudo do artista, o que importa não é a sua vida pessoal, o seu perfil de pessoa banal ou comum, as vicissitudes ou esquisitices vulgares por acaso apresentadas em seu cotidiano, os seus mistérios menores. Isto, aliás, todos temos – não é a banalidade, os pecados mesquinhos, os tropeços ou os mistérios privados que explicam o artista. A banalidade nossa de cada dia não faz a arte, não gera a vertigem de carisma e empatia que estrutura o núcleo do ser em arte. E também não funcionam para este fim as transgressões ou repressões – até a igreja, outrora zeladora totalitária das virtudes, abriu mão de nossas intimidades e enveredou pela confissão sigilosa…
Se o interesse do historiador ou do biógrafo é este, o potencial de escândalo latente em cada pessoa, ele faria melhor se optasse por se debruçar sobre o vasto universo dos anônimos, dos vagantes das ruas, com seu inacreditável rol de bizarrices e pecados inconfessáveis, os tais absurdos capazes de fazer corar monges de pedra… Na verdade, a opção por esta linha de abordagem tem o efeito contrário da inteligência dos mecanismos do ser em arte. O seu mote é o sensacionalismo, o escândalo, o choque e a corte aos pruridos do cidadão comum, exatamente a matéria capaz de corroer os sonhos, portanto uma forma eficiente de não entender os mecanismos contemporâneos da arte em coletividade.
A rigor, o que nos deve interessar nos artistas, a nós que somos biógrafos, pesquisadores e historiadores, é exatamente tentar analisar e perceber como estas construções humanas de arte, que nos empolgam tanto, estas mesmas as quais damos o nome de “artistas”, “fazedores de arte”, são ou foram erigidas. Como se dá a gênese do artista? O que ele planejou fazer e como conseguiu propor suas criações de uma forma especiíica, sob uma forma humana passível de ser aclamada pelo público? Quais as forças e as energias que deve por em ação e lapidar para que chegue a se erigir em receptáculo dos sonhos dos indivíduos, receptor da capacidade contemporânea de sonhar? A urgência é a de dimensionar o que é o artista, um lugar social de arte – ou da arte – que é sangue e osso como todos, mas que foge de si.
Vale dizer, então, que o biógrafo precisa ser, antes de tudo, um fã. Um fã dedicado muito especial, que reconhece o encantador que se oferece ao sonho coletivo, acredita na obra que contempla e pensa que ela tem credibilidade enquanto tal, se justifica e nos justifica. A condição permitirá que o biógrafo, teórico, reflita sobre a estrutura de fascinação acionada, assim como os velhos cientistas se inocularam com desconhecidos micróbios para dimensionar a estatura das doenças.
A rigor, a biografia não poderá apontar o essencial, o artista como lugar de arte, criador de arte, se o biógrafo é um fã ressentido, banhado em mágoas e despeitos, decidido a procurar pés de barro sob o mármore, ou um autor pleno de certezas dogmáticas. Se o biógrafo não envereda pela magia que precisa estudar, não há como dizer desta magia, dimensionar as suas últimas articulações, descobrir e expor a sua densidade. O ponto de partida de recusa e negação dirige o olhar e o pensamento para fora da obra e do jogo. Afinal, pés de barro é a nossa fortuna comum. Ninguém precisa de biógrafo para constatar que o artista é apenas gente, uma pessoa comum que aciona uma névoa espessa de sedução. O verdadeiro desafio consiste em buscar o desvendamento desta arte – sinalizar ponto a ponto como o criador, entregue à sua intuição e ao seu talento, erigiu uma imagem identificada com a sua produção, consequente com as inquietações, desejos e ansiedades de seu tempo. Em resumo, urge dimensionar a arte que se apossou da alma comum, como a alma comum instaurou um novo momento de arte.
Há portanto um conceito sensível a formular – pois nem sempre o artista dispõe de lucidez racional a respeito de sua trajetória ou de seus trabalhos e por isto, só por isto, são necessários os historiadores e biógrafos. O projeto da biografia, assim, tem um patamar sensível, mas obedece a um desdobramento racional muito objetivo. O percurso realizado pelo artista, de sua formação às diferentes formulações poéticas alcançadas, é uma referencia primordial para o projeto. A inserção na orquestra de artistas de seu tempo e de sua especialidade, os diálogos, confrontos e derivações constituem uma outra linha elucidativa prioritária. O painel histórico ao redor será desenhado em função destas coordenadas específicas – apesar do artista interessar a História, não é toda a História que interessa ao artista, à transparência de sua arte.
Tagged: Biografias, Cultura, Reflexão