Quando o teatro se torna absoluto

The Old Woman

 
O mesmo e o infinito: pura poesia. Coisas simples, quase cotidianas, transformadas em arte graças a rápidas pinceladas; coisas de arte, raras criações, transformadas em objetos comuns, graças a leves torções do sentido e flutuações delicadas de sua aparência. Formas rasas, cores simples, linhas diretas, gestos secos, conjugações hábeis de imagens e sons. Em cena, o teatro do nosso tempo em estado bruto, nada de representação, pura apresentação, surpresa sensível, perfeita materialização de um vazio que é humanidade transbordante. Afinal, nunca antes na história do mundo fomos tão humanos: fina ironia, brincadeira, algum deboche. E, no fim, o que se vê é o trabalho da arte, a arte do escritor, o ato de quem materializa percepções da existência a partir de sua mente, sua capacidade de criar. Portanto, uma grande louvação à arte, em especial à arte da cena e do ator. O espetáculo – e este nome banal foi escolhido aqui com muita atenção – é A Velha, assinado por Bob Wilson, artesão do espaço e do tempo. Programa mais do que imperdível: você vai sair do teatro com vontade de dançar e com a leveza de quem contemplou uma obra de arte total, uma visão do absoluto. Não deixe de ver.

 

Nada escapa ao diretor. Se o texto original, de Daniil Kharms (1905-1942), de 1939, foi um grito rebelde de arte no interior de uma sociedade que se desejava nova e libertadora, mas que pretendia construir a liberdade social através da opressão, o texto em cena, adaptado por Darryl Pinckney, é o estopim para uma cena livre, de pura invenção, mas invenção que se faz a partir da história mesma do espaço e de sua arte. Invenção assinada, marcada por um alfabeto e procedimentos caros ao diretor – a repetição, o encanto por uma atuação de forte inclinação à mímica e ao vaudeville, a luz diabólica de efeitos exatos, o antirrealismo total, a regência do espaço a partir da música e do som, os rostos brancos como os dos mímicos e do kabuki, a paleta de cores pensada com rigor, tudo está lá.

 

A estrutura da apresentação foi organizada como um novelo, em que o fim e o principio se encontram, graças à repetição do mesmo texto, com pequenas diferenças, nos dois momentos. Ao entrar no teatro, o excelente palco principal da Cidade das Artes, o espectador se vê diante de um enorme telão, uma composição em preto e branco de inspiração clássica, pontilhada por intervenções surrealistas e discretos tons de cor. No final, a ação é encerrada diante de um novo telão, mas agora colorido, com figuras humanas esquemáticas, geométricas, circenses, uma discreta alusão ao circo humano que roda pelo mundo. Tanto o prólogo como o epílogo, nos quais os atores se apresentam em múltiplas ações, remetem à musicalidade, ao gestual e à composição interpretativa do vaudeville e do cinema mudo.

 

Ao todo, são doze cenas, construídas a partir da obra de Kharms. A trama surrealista narra a trajetória de um escritor, assombrado pela morte inexplicável de uma velha que apareceu em sua casa, sem que se possa saber como os fatos aconteceram objetivamente. Não existe uma narrativa convencional que explique quem é o escritor ou a velha, nem muito menos se consegue esclarecer como o cadáver surgiu. Para alguns estudiosos da obra do autor, a velha representaria a velha Rússia dos czares, uma autocracia difícil de superar, que o fez morrer na prisão pelo simples fato de ser um artista livre.

 

Ao longo da ação, estruturada em cortes rápidos e movimentada como um musical, os dois atores materializam um mundo incontável de sensações e visões da vida. Os figurinos dos dois atores, de Jacques Reynaud, são quase idênticos, representam a roupa de gala teatral, sugestão de smoking de toques humorados discretos, como as calças ligeiramente curtas. Sob forte caracterização, eles representam o escritor e uma variedade de personagens. A sua entrega é total e a direção explorou o melhor e o mais característico de cada um. Baryshnikov dança com as palavras, rodopia com o espaço. Dafoe explora tons largos e contundentes, intensa expressão física, profundidades da fala e larga mímica facial. Fala-se em inglês e em russo – com legendas, claro.

 

As cenas explodem diante do olhar numa sucessão ágil de efeitos – além do jogo impecável dos atores, surgem silhuetas, móveis e adereços flutuantes, ações dos contrarregras, pinturas de luz e penumbras. Tudo se faz numa flutuação de referências em que o pequeno, o humano, desponta trágico, patético, mas risível, num jogo de forças que é impossível compreender – resta, apenas, sentir. Por isto, a mesmice da vida é evocada como um indício, a chance de percepção da grandeza da existência. A função, afinal, da poesia. O mesmo e o infinito nos visitam, nos levam para o mundo de arte dos poetas.


Serviço
Cidade das Artes – Grande Sala (Avenida das Américas, 5300, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, tel. 21 3325-0102).08/08 – Sexta-feira às 21h30
09/08 – Sábado às 16h
09/08 – Sábado às 21h
10/08 – Domingo às 18h
12/08 – Terça-feira às 21h
13/08 – Quarta-feira às 21h

Ficha Técnica
Texto: Daniil Kharms,
 adaptado por Darryl Pinckney
Direção, cenário, luz: Robert Wilson
Com: Mikhail Baryshnikov e Willem Dafoe
Música: Hal Willner
Figurinos:Jacques Reynaud
Desenho de som: Marco Olivieri.
Iluminação: A.J. Weissbard
Colaboração em cenário: Annick Lavalle-Benny
Produção executiva: Change Performing Arts
(diretores Franco Laera / Elisabetta di Mambro),
Baryshnikov Productions e CRT Centro RicercheTeatrali
Projeto de Baryshnikov Productions, Change Performing Arts e The Watermill Center Comissionado, coproduzido por Manchester International Festival, Spoleto Festival dei 2Mondi, Théatre de la Ville-Paris/Festival d’Automne à Paris e DeSingel Antwerp