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Assassinos da vida

 
Um grito lancinante corta a noite densa. Não tem eco, mas acorda as almas sensíveis errantes, perdidas na escuridão, prepara o amanhecer. Tomara. BR-TRANS, escrito assim em letras garrafais como se fosse um letreiro de convocação geral, em cartaz no Teatro III do CCBB, é este gesto de impacto, de alerta contra as nossas trevas históricas.

 

Matamos diariamente a liberdade, o direito básico de escolha do cidadão, a integridade da vida, como se tivéssemos o direito de impor ao próximo um padrão para seguir e obedecer, uma forma para viver. Linchamos o diferente, como se houvesse uma fórmula da felicidade. Contrariados, não hesitamos: matamos quem, na nossa visão estreita, nos desafia, como se o poder de moldar as pessoas estivesse em nossas mãos. Erramos, o ser humano é livre. Corra para ver: a temporada é curtíssima, o espetáculo é imperdível.

 

Não se trata exatamente de uma peça de teatro no sentido convencional, não há submissão à antiga tradição cênica: o presente fornece as estruturas formais e temáticas do território traçado. De saída, a proposta pretende exercitar o diálogo com o nosso tempo, o que significa optar por uma encenação-performance, uma forma de apresentação dialógica, em que o desempenho do ator se constrói com base numa troca direta com a plateia. Acontece no teatro, em síntese, uma vivência teatral coletiva regida por Silvero Pereira, ainda que a participação do público na cena esteja reduzida ao gesto de resposta e adesão, distante da intervenção ativa.

 

Silvero Pereira, na verdade, é mais do que um ator, é um performator, digamos. Um performator notável, um grande artista. A concepção do seu trabalho, uma partitura de amplo espectro autoral, nasceu de três eixos diferentes – em primeiro lugar, houve uma deliberação temática, política, de caráter urgente, aliada a uma estética tão atual e contundente quanto o tema eleito, regidas, as duas, por um perfil artístico pessoal, originado na linha de trabalho dos travestis e transformistas, marcado, contudo, por uma profunda originalidade e uma preocupação intensa com o estudo e a pesquisa.

 

Em cena, Silvero Pereira – ou melhor, Gisele – recebe o público em um traje de gala simples, mas de impacto, um vestido melindrosa vermelho capaz de combinar franjas e paetês. A música do teclado do competente Rodrigo Apolinário favorece um discreto movimento dançante do corpo, pulsante e divertido. A empatia se instala.

 

O sentimento de aproximação humana desenvolvido na abertura permite ao artista um fluxo criativo impressionante – ao longo da apresentação, ele fala de si e de Gisele, a personagem viva que construiu, conta a sua vida dupla desde a infância, um inventário pungente de dor e de procura, busca de si. Mas o repertório se amplia. Foi realizada uma extensa pesquisa a propósito do universo trans para a elaboração do trabalho e várias histórias de travestis, transexuais e transformistas, de várias partes do país, são entremeadas ao relato do performator, ao lado de projeções e inserções musicais, bem como apresentações da arte transformista.

 

Os diferentes relatos afloram sob um tom de absoluta humanidade, com a indicação dos nomes de guerra das personalidades focalizadas, pessoas reais, plenas, humanizadas. Há mesmo a sugestão de um aprendizado de humanidade, com o uso de giz e caneta hidrocor para várias ações. Uma espiral acelerada de sensações vai surgindo, envolvendo tudo; se torna muito pesada quando traz à baila o nefasto clima de intolerância e desrespeito que impregna, aqui, a questão trans.

 

A busca da auto realização, uma trajetória difícil, desde as primeiras dúvidas acerca da identidade pessoal, na infância, se projeta como divisão interior, dilaceração, dor, sofrimento, humilhação, uma atmosfera sombria agravada pela violência tosca que caracteriza a sociedade brasileira. Relatos de incompreensão, preconceito, agressão, tortura e morte turvam a cena. Mas tudo acontece como fluxo de arte, contundente fio criativo, formas entrecortadas, direção hábil desenhada por Jezebel de Carli. A finalidade não é o choque, apesar de toda a violência de nossa sociedade, mas a percepção ontológica do tema. As formas sociais de opressão não mutilam apenas alguns, sufocam, antes, todos os contemporâneos, envenenados pelo desrespeito à vida.

 

A maestria de Silvero Pereira na arte e em cena determina a profunda unidade estética da obra – além da performance, a sua assinatura está na pesquisa, na dramaturgia, no cenário, na maquiagem, no figurino e nos adereços, bem como na operação do som e da luz, durante a apresentação. Assim, os elementos reunidos no palco, soltos no espaço negro e nu, mesmo quando insinuam um certo barroquismo, se tornam essenciais. Lá estão expostos pequenos objetos sentimentais, decorativos ou devocionais típicos do universo trans, ao lado do aparato técnico. A penteadeira, o altar, o biombo falam da intimidade e da alma.

 

Esta maestria na arte percorre uma variada gama de habilidades. Silvero Pereira sustenta fortes cenas dramáticas e narrativas, num estilo de interpretação distanciado, porém denso. Explora a plasticidade de seu corpo, recorre a recursos atléticos de expansão da força do ser, sugere algum humor, brinca com o drama, insinua formas de dança espontânea, canta e faz mímica, revela um estágio requintado da arte transformista. As grandes referências para a música são o próprio Rodrigo Apolinário, autor de músicas originais muito identificadas com a proposta, e Caetano Veloso e Maria Bethânia.

 

Em resumo, há um espetáculo em carne viva, puro nervo pulsante exposto, irradiação de revolta diante da qual não se pode calar. A estreita via social traçada em nossa terra para o universo trans aflora, afinal. Escorraçados desde as primeiras manifestações da sua maneira de ser “diferente”, segregados nas escolas, no trabalho, nas ruas, cerceados nos seus direitos civis, empurrados para a prostituição muitas vezes em condições vis, os transgressores são vítimas de atrocidades inaceitáveis.

 

Generoso, o trabalho se impõe como percepção sensível compartilhada.É mágico, por sua clareza objetiva diante de fatos-tabu, e, em decorrência do interdito social, é estarrecedor, corajoso. Diante da miséria humana brasileira, capaz de massacrar de múltiplas formas os diferentes, os críticos do padrão imposto, se projeta alguém disposto a bradar contra a corrente, contra a atitude mesquinha “de nada fazer.” Sim, temos todos as mãos sujas de sangue, quando calamos diante da barbárie. Como alguém pode ser julgado e justiçado no cotidiano por escolher realizar o próprio desejo em seu corpo, assumir o abismo de sua maneira pessoal de ser?

 

O universo chora, clama o artista, pois a vida precisa ser o nosso valor mais sagrado. O seu grito varre o ar em busca do infinito. Diante da noite mais negra do que a asa da graúna, importa ouvir este grito, torná-lo capaz de ecoar nas ruas, fiapo de um sonho de liberdade que se estende e que não deve soar em vão. Se somos humanos, se prezamos a vida, somos todos trans – transumanos, mais do que humanos, obrigados a aceitar a diferença como única forma de harmonia, para que a vida aconteça como realidade plena.


Ficha Técnica
 
Direção: Jezebel De Carli
Dramaturgia: Silvero Pereira
Elenco: Silvero Pereira
Músico: Rodrigo Apolinário
Cenário: Rodrigo Shalako
Iluminação: Lucca Simas
Design: Sandro Ka
Produção do Grupo: Ana Luiza Bergman
Administração e Produção no Rio de Janeiro: Quintal Produções
Direção Geral: Verônica Prates
Gestora de Projetos:: Maitê Medeiros
Produtor Executivo:: Iuri Wander

Serviço
Temporada: de 06 de agosto a 06 de setembro
Horário: de quarta a segunda, às 19h30
Local: Teatro III do Centro Cultural Banco do Brasil (Rua Primeiro de Março, 66 – Centro)
Informações: (21) 3808-2020
Ingresso: R$10,00
Horário da bilheteria: de quarta a segunda, das 9h às 21h
Gênero: Drama Cômico
Duração: 70 minutos
Capacidade: 86 lugares
Classificação indicativa: Não recomendado para menores de 16 anos
http://www.projetobrtrans.com