Festival de Curitiba: a matéria profunda de todos nós

Crítica feita durante o Festival

 
Não percebemos, mas a nossa vida se esvai em um fluxo contínuo, infinito, como uma névoa perdida bailando sobre um antigo cais. Acreditamos saber quem somos, confiamos que somos as nossas lembranças, mas a memória se faz por fragmentos irrecuperáveis, um jogo sentimental a um só tempo rude e delicado, um redemoinho doce em que se perde a vida. Um sopro primeiro, antigo, talvez explique quem somos. Mas nós o mantemos soterrado sob pesadas camadas de ilusão. Ou de quinquilharias.

 

Sim, deve ser esta a chave do encanto de Cais – ou da indiferença das embarcações, um trabalho antológico de Kiko Marques. A inspiração clara para a formulação da encenação tem duas origens, dois eixos diferentes nortearam a sua concepção. O primeiro, a peça escrita por Kiko Marques, cuja composição foi iniciada em 2006. O segundo, o espetáculo Les Ephémères, de Ariane Mnouchkine, apresentado em São Paulo em 2007. Portanto, um projeto dotado de maturidade.

 

No primeiro caso, o texto, há uma evocação lírica de extrema beleza, uma trama de vivências pessoais de férias ao longo da vida na mitológica Ilha Grande, em Angra dos Reis, com perguntas corrosivas a respeito do sentido da vida. O impacto é forte, pois, ao longo do tempo, a ilha passou de área selvagem ocupada por presídio e pescadores à devastação do turismo predatório.

 

No segundo caso, há o teatro em fragmentos, em cenas cortadas mas estruturadas, em desfile num palco passarela, forma de cena também adotada no Cais. A cenografia e o figurino de Chris Aizner, aliás, perfeitas visões da vida ribeirinha em diferentes momentos e sob vários enfoques, concebidos a partir de elementos simples, imprimem uma notável força expressiva a esta escolha, dotam o trabalho de extrema contundência.

 

Assim, embalado por excelente trilha musical (Umanto) executada ao vivo com maestria, dividido em duas alas opostas, o público vê passar diante de si, num cais de madeira modesto mas impactante, um oceano de vidas que não se governam, seguem à deriva, como se não se navegassem, mas fossem, antes, navegadas por um mar de sensações. São três gerações de duas famílias interligadas e seus agregados, que vivem do presídio ou do mar, e aos poucos acompanham a dissolução de seus projetos, desejos e até do lugar em que vivem, como se o normal de tudo mimetizasse a oscilação das marés.

 

A direção de Kiko Marques comove e arrebata, concilia a excelência da palavra com a invenção lírica e sentimental da cena. Trata-se de um grande diretor encenador. Em uma primeira camada, o texto é narrativo, desconexo e flutuante: quem conta a história é o barco Sargento Evilázio. A condição de memória de barco induz ao fragmento, à liberdade cronológica e à flutuação. E a teatralidade desta moldura surge amplificada porque o papel cabe ao histórico ator Walter Portella, um dos nomes âncora do CPT e da cena recente paulista. O suporte narrativo se completa com a Poita Rosimeiri (Rose de Oliveira), uma forma de manter o relato preso à terra e ao núcleo da ação.

 

Ao lado e adiante da narração, há uma segunda camada, a dramatização, assinada por um elenco coeso. Trabalho coletivo, cultivado como pesquisa e identidade criativa, Cais se projeta por uma absoluta homogeneidade dos desempenhos, demonstração efetiva de excelente direção de ator. Nas dramatizações, há uma nota irresistível de conciliação entre a forma interpretativa épico-narrativa e a interiorizada, a expressão física ampla dos sentimentos e a contenção do corpo ressentido, reprimido ou militarizado. Em tais condições, destacar atuações pode parecer uma arbitrária interferência nas rotas da cena. Mas não se pode deixar de mencionar algumas centelhas de criação, luzes de sinalização no horizonte de beleza essencial para o teatro.

 

Assim, não dá para esquecer o romantismo refinado de Magnólia (Virginia Bukowski), a vilania subalterna de Waldeci (Kiko Marques), a humanidade grandiosa de Bonifácio (Maurício de Barros), a presença esfuziante de Berenice (Alejandra Sampaio), o espírito altaneiro de Walcimar (Marcelo Laham), as composições filigranadas de Marcelo Diaz.

 

Vale destacar que o jogo da interpretação acontece sublinhado por variações da luz (Alessandra Domingues, Adriana Dham) dotadas de eficiência e beleza. Do foco ao plano aberto, passando por vários efeitos de detalhe, a harmonia se impõe durante todo o tempo. A cena se constrói como um painel e ele é de tal ordem que não é pertinente resumir a trama: de certa maneira, a trama é o fluxo da vida.

 

Trata-se, portanto, de um espetáculo referência, um marco na trajetória da Velha Companhia, um ato de afirmação de um momento teatral novo. Passada a era dos encenadores, estabelecida a volta ao texto e à palavra, eis um trabalho capaz de soar como os sinalizadores no oceano, na noite escura, para indicar um bom caminho. Um privilégio contar com uma cena em que se pode dimensionar, de forma singela, mas contundente, a nossa condição humana tão efêmera, refém do espirito da terra, que sequer conseguimos intuir o que seja hoje, sob o maremoto de consumo e de lixo que afoga tudo e todos. Resta apenas desejar longa vida para o espetáculo, sucesso em São Paulo em 2013 e no Festival de Curitiba de 2014 – se souber onde está em cartaz, nem hesite, corra, vá ver.

 

Crédito das imagens: Ligia Jardim


Ficha Técnica
Texto e Direção: Kiko Marques
Com: Velha Companhia e o ator convidado Walter Portella
Elenco: Alejandra Sampaio, Kiko Marques, Tatiana de Marca, Marcelo Diaz, Marcelo Laham, Marcelo Marotti, Marco Aurélio Campos, Maurício de Barros, Patrícia Gordo, Rose de Oliveira, Virgínia Buckowski
Direção Musical e Trilha Original: UMANTO
Músicos: Tadeu Mallaman – Milena Gasparetti- André Marothy
Cenário e Figurino: Chris Aizner
Iluminação: Alessandra Domingues
Iluminação presencial: Adriana Dham
Fotografia: Ligia Jardim
Direção e confecção de bonecos: Grupo Sobrevento
Assistentes de Direção: Milena Gasparetti, Paula Ravache
Assistente de Produção: Valéria Arbex, Paula Ravache , Vil Companhia, Erica Kou, Pedro Vicente e Carolina Petrucci Rosa