Um teatro se inventa: qual o sentido da palavra vida?
Alama podre da vida. Almas de lama, gente-dejeto, formas arcaicas de poder: uma vertigem de brasilidade varre a cena de Caranguejo Overdrive, cartaz do Mezanino do Espaço Sesc. Um jogo teatral inventivo, de grande impacto para qualquer sensibilidade antenada com a vida, traz à tona perguntas transgressoras, dolorosas. Sem as respostas: o choque é deparar com o ato de perguntar, para dimensionar o abismo abissal histórico definidor da pátria deseducadora.
Que espécie de sub-gente somos nós, que aceitamos e bancamos a humilhação humana mais radical, corrente nestas terras tropicais? Por que as elites nacionais, aferradas ao poder como caranguejos vorazes, vendidas e cínicas, se alternam, se reinventam, se refastelam, sem ousar praticar iniciativas básicas que trariam saúde social, renovação política no sentido mais amplo da gerência da vida, a favor do coletivo? Por quê motivo insistimos em degradar pessoas à condição de objetos abjetos, para arrebanhar riquezas imorais, pois criminosas diante do bem comum e do equilíbrio da sociedade?
Por que ainda temos escravos no Brasil e nenhum governo de nenhum partido jamais deu fim a este descalabro aviltante, esta negação radical da condição humana? Por que o trabalho persiste como prática degradante e barata por aqui, em lugar de ser a arte cotidiana de todos os homens? Por que insistimos em construir uma pátria sem dignidade, em que é impossível cogitar emprego decente para a totalidade da população ativa do país? Por que mantemos tanta gente na marginalidade e na economia informal, com a exclusão sistemática de um grosso contingente de uma vida positiva em sociedade? Por que insistimos em ser párias morais?
Ficou sem ar? A ideia é esta – a peça assinada por Aquela Companhia, coletivo dedicado ao teatro de pesquisa que comemora dez anos de existência, pretende levar o teatro político numa nova direção. Não se trata mais do populismo velho de outrora, a candura de mostrar a pobreza e denunciar a exploração da miséria. Afinal, está mais do que na hora de reconhecer que a velha proposta acabava por adquirir um colorido cínico, quando o público era a classe média, uma gente cansada de saber do problema, ou um colorido sádico vizinho do ofensivo, já que dizer para o pobre que ele é pobre no mínimo fere a inteligência e o sentimento.
O foco agora é outro. Em cena está o homem caranguejo dos mangues brasileiros, figuras miseráveis cotidianas, ainda hoje parte da paisagem do fundo da Baía de Guanabara. E de todos os mangues brasis. São caçadores que se confundem com a sua presa, em toda a extensão do verbo. E foram uma multidão crescente no Rio, a partir do século XVIII, composta por brancos, mestiços, índios ou pretos livres pobres confinados aos inúmeros manguezais que rodeavam as montanhas da cidade. Eram desclassificados, nem eram escravos, nem senhores de terras ou de ofícios rentáveis. E ainda são esta região de sombra humana e social, ferramenta hábil para pensar e questionar a forma de ser do país. Produto direto de uma elite obtusa, interessada não em sua função social, mas no seu prazer imediato mais psicopata.
Portanto, vale frisar, uma forma teatral nova se impõe, uma nova forma de atacar velhos problemas de sempre, mas de uma maneira tal que se possa promover uma mudança de consciência, um outro estado de reflexão. Por isto, a vertigem, o teatro em vertigem, uma circularidade voluptuosa de falas, cenas, músicas, dramatizações, repetições, jogos expressivos e dor, histórica dor. Impossível descrever ou analisar este trabalho através de ferramentas críticas arcaicas. Há um cálculo pós-dramático e hiper-dramático que se instala desde o início da representação. Mas não é mais a representação cartesiana, do século XIX, de Brecht. Transversalidades pontilham a cena.
A representação é teoria – é Josué de Castro, o geógrafo exemplar da fome – e é deboche da teoria, com a professora que descreve cientificamente o caranguejo com todos os tiques da mais diáfana vida acadêmica, notável desempenho de Carolina Virguez. É história – pois Cosme, assombroso homem caranguejo, corporificado e incorporado por Mateus Macena, homem do mangue do centro do Rio, vai para a Guerra do Paraguai para retornar a uma cidade irreconhecível, sob o ritmo de obras radicais de revitalização. E é explosão da história, com cenas em fragmentos e temporalidades descontínuas.
Mas a representação é música – o Manguebeat de Chico Science revisitado – apresentado ao vivo pelos músicos (Felipe Storino, Mauricio Chiari e Pedro Kosowski) e pelos atores. Assim, num espaço de quase arena em que o teatro abarca a plateia de forma fraturada, transversal, e sob múltiplas rupturas, não há uma trama contínua, uma moral apaziguadora, uma conclusão capaz de fechar um circuito catártico simples, nem uma mensagem, mas um fluxo inteligente de percepção do Brasil raro de se ver em nosso teatro.
Para lidar com o espetáculo – e a palavra espetáculo aqui importa, pois existe um todo, um conjunto poético expressivo – se impõe justamente o reconhecimento desta condição especial, de totalidade de arte. Nela, cada parte conta por si e integra profundamente o todo, amálgama o todo. Tanto o texto de Pedro Kosowski, dramático, narrativo e performático, revela marcas de que se configurou na sala de ensaio, como a direção de Marco André Nunes, estendida na instalação cênica, ecoa a densidade poética do elenco e de toda a equipe. A ideia de coletivo de arte parece obrigatória para dimensionar o que se vê: impossível isolar a concepção da luz, por exemplo, do fluxo criativo geral. Há um magma poético arrebatando tudo, um pouco como a lava de um vulcão, capaz de transformar num bloco de matéria pulsante única a cidade que estava no seu caminho.
O elenco revela tanto o engajamento de cada um, como o raro perfil do diretor Marco André Nunes, um competente diretor de cena e, ao mesmo tempo, um denso diretor de atores. Em geral, a direção tende a se inclinar para uma ou outra qualidade de ação. Ainda que Matheus Macena percorra a cena sempre no papel de Cosme, a tônica dos desempenhos é a multiplicidade de papéis. E o desafio não é pequeno. A voltagem atinge uma altura capaz de ofuscar o inventário e a análise do jogo criativo, pois, como já se observou, não há como seguir a receita de bolo da velha crítica, sempre voltada a enxergar a cena em camadas.
Carolina Virguez leva a plateia ao delírio ao ilustrar algo do escabroso crime histórico cometido por nós contra a humanidade na Guerra do Paraguai. Matheus Macena surpreende por sua entrega e por sua ousadia – a expressividade do corpo, a tradução do homem reduzido ao estado bestial, o desenho dos sentimentos e a desenvoltura narrativa são alguns dos aspectos emocionantes do seu trabalho. Fellipe Marques, responsável por um caranguejo de lama icônico, monumental, e Eduardo Speroni, surpreendente no caranguejo grafitado no corpo, vez por outra traem alguma fragilidade no trato dramático mais acelerado, nas contracenas, mas a possibilidade tênue de hesitação sucumbe diante da força narrativa que são capazes de sustentar.
Trata-se de um teatro intimista, para público pequeno, iniciado, letrado em teatro e em Brasil, viciado em Humanidade, não dá para negar. Em tais condições, a cena engajada, política, acontece contra o seu próprio desejo fundador, o velho delírio de sacudir a sociedade, mudar a Terra, arrastando as multidões como se o teatro fosse um comício. Não está mais em pauta esta ambição desgastada. O vértice está orientado apenas para a tal da vanguarda, as almas críticas ácidas eternas, aquelas capazes de atravessar as fogueiras de intolerância de todos os tempos – para acreditar que um dia, quem sabe, num outro tempo, afinal uma esperança velha se realize enfim e os homens de lama, os pobres caranguejos ou os poderosos podres, desapareçam da face do mundo. Do velho teatro político, restou apenas alguma confiança no além, sob a certeza de que nós, cada um de nós, é que precisamos com urgência nos transformar. Para que a vida seja isto que ela em seu nome diz: vida, apenas vida.
Texto: Pedro Kosovski
Direção: Marco André Nunes
Com: Carolina Virguez, Alex Nader, Eduardo Speroni,
Fellipe Marques, Matheus Macena
Músicos em cena: Felipe Storino, Maurício Chiari e Pedro Kosovski
Direção Musical:Felipe Storino
Iluminação: Renato Machado
Instalação cênica: Marco André Nunes Ideia Original: Maurício Chiari
Patrocínio e produção: Quintal Produções
Espaço Sesc Mezanino
Capacidade: 50 lugares
Rua Domingos Ferreira, 160 – Copacabana
Tel.: 2547-0156
Classificação: 16 anos
Terças e quartas, às 21h | Sábados, às 17h
Ingressos: R$ 20 (inteira); R$ 5 (associados do Sesc) e R$ 10 (jovens de até 21 anos, maiores de 60 anos, estudantes e classe artística).
Funcionamento da bilheteria: de terça a domingo, das 15h às 21h. Pagamento em dinheiro. Ingressos antecipados somente no local.