Não corra, não fuja – entregue-se. Experimente um prazer antigo inebriante, o prazer de ver o pensamento se transformar, diante dos seus olhos, em palavra e emoção. Em resumo, o prazer do teatro. Esta experiência preciosa, rara hoje em dia, está em cartaz no Teatro Adolpho Bloch. Atenção: A última sessão de Freud, de Mark St. Germain, é o espetáculo imperdível da temporada. Puro arrebatamento. Se você sente saudade de ser arrebatado pelo teatro, nem cogite deixar de ver.
Por ironia, o autor, à maneira dos dramaturgos gregos, resolveu expor em cena o enfrentamento de dois mitos celebrados do nosso tempo, a psicanálise e a religião. A trama engenhosa supõe um encontro fictício, em 1939, entre Sigmund Freud (1856-1939) e o escritor e teólogo anglicano Clive Staples Lewis (1898-1963), crítico assumido das iconoclastias propostas por Freud, em particular no que se refere ao conceito de Deus.
A situação dramática é adensada com extrema sutileza graças à presença de duas representações ácidas da morte: Freud está no seu último ano de vida, devastado por um câncer agressivo na boca, o mundo está aterrorizado diante de Hitler e do início da segunda guerra. Tais coordenadas sustentam a suposição de que teria sido a última sessão de Freud – se pudermos supor que houve, de alguma forma, uma abordagem terapêutica do escritor. A hipótese sustenta em boa parte o imenso fascínio exercido pela cena – pois, afinal, é a plateia quem se deita no divã, ao se ver ela própria envolvida num embate com seus mitos, os dois mitos estruturantes do ser no nosso tempo.
O encontro, agendado por Freud, acontece no consultório londrino do psicanalista; ele deseja questionar diretamente o escritor a respeito de suas críticas à psicanálise. O espaço cênico surpreende o público de saída, por sua extrema beleza. Em Londres, o psicanalista conseguiu fazer uma réplica do seu consultório na Áustria, povoado por livros e estatuetas preciosas, coroado pelo famoso divã. O cenário minucioso, deslumbrante, assinado por Fábio Namatame, desencadeia o processo de encantamento da plateia. Os figurinos, também de Fabio Namatame, ecoam o acerto da cenografia, fazem o registro perfeito da época e da identidade dos dois personagens.
A condução geral da montagem, sob a direção requintada de Elias Andreato, completa a construção do arrebatamento – a cena se impõe como um ato de realismo meticuloso, pleno de vida e de emoção. Toda a movimentação da cena obedece a um desenho preciso de intenções, atmosfera argumentativa e temperatura emocional. Vale observar, em cada cena, a força expressiva do desenho da luz, de Gabriel Paiva e André Prado, concebida para sublinhar as intensidades do jogo dramático, as interferências externas e a materialidade simbólica do espaço. A fluidez da cena se beneficiou muito da bela tradução do original, assinada por Clarisse Abujamra.
Bom, e há todo o resto… e o resto é o fabuloso trabalho dos atores, uma obra de arte impecável que vale, por si só, a ida ao teatro. Odilon Wagner criou uma figura de Freud dotada de uma força expressiva impressionante. O ponto de partida – ou o ponto de percepção mais imediato do seu trabalho – está na materialidade da velhice, adensada pelo desconforto com a prótese prescrita pelos médicos por causa da destruição irreversível da boca. Segue-se a irradiação límpida de um magnetismo interior de rara intensidade. É um misto de sutileza, elegância e admirável domínio técnico.
Afinal, o desenho físico funciona como pontuação fiel da grandeza do gênio; é esfumado, não atrapalha o fluxo dos argumentos, a presença vigorosa do pensador devotado à criação de uma nova forma de concepção da vida. O debate se instala acima dos limites físicos, com o impacto das ideias que mudam a trajetória humana – aos poucos, o declínio físico se instala e ganha terreno.
A afirmação das ideias do psicanalista enfrenta um adversário à altura. Marcello Airoldi percorre um trajeto assemelhado: ocupa o palco com o físico em estado solar, no pleno vigor da maturidade, pois o escritor antagonista estaria nos seus quarenta e um anos. Traz no corpo a solidez dos que defendem a tradição, a onisciência de Deus e a religião, para oscilar aqui e ali diante da conceituação cerrada de Freud. Contundente, ele investe em pontos fracos do grande mestre, como a relação dele com a filha, e estremece diante da possibilidade de estar à mercê do divã…
Vale frisar: a peça não é hermética, não se destina a um psi-público nem requer conhecimentos especializados. Não é um mero divertimento intelectual. A proposta foi concebida em função da vida cidadã da nossa época. O diálogo ágil tem notas de humor e de acidez crítica de grande felicidade. O foco do autor obedece a um cálculo muito objetivo – como, neste nosso mundo varrido por enxurradas de informação e vendavais de certezas vadias cotidianas, o diálogo, o debate transparente, o confronto amistoso das formas de pensar precisa ser cultuado.
A peça fala deste prazer antigo a nosso dispor desde os gregos, o prazer do pensamento como exercício autêntico decorrente do ato de viver, existir. De certa forma, assim como Freud favoreceu a compreensão maior do ser humano, a peça não toma o seu nome em vão – pretende apenas demonstrar, mais uma vez, como pode ser infinito o prazer de ver teatro, desfrutar a presença do pensamento emocionado no palco. Comemore: o velho e bom teatro está lá ao seu alcance, mais uma vez de volta. Não se limite aos prazeres menores, deixe-se arrebatar… corra para ver!
Ficha técnica
A Última Sessão de Freud
Texto: Mark St. Germain
Tradução: Clarisse Abujamra
Direção: Elias Andreato
Assistente de Direção: Raphael Gama
Idealização: Ronaldo DIAFÉRIA
Elenco: Odilon Wagner e Marcello Airoldi
Cenário e figurino: Fábio Namatame
Assistente de Cenografia: Fernando Passetti
Desenho de Luz: Gabriel Paiva e André Prado
Iluminação: Nádia Hinz
Trilha Sonora: Raphael Gama
Designer de Som: André Omote
Coordenador Geral de Produção: Ronaldo Diaféria
Produtora Executiva: Katia Brito
Direção de Palco / Contra-regragem: Vinicius Henrique, Kauã Nascimento
Produtores Associados: Diaféria Produções e Itaporã Comunicação
Arte Gráfica: Rodolfo Juliani
Fotografia: João Caldas
Mídias Sociais: Felipe Perillo
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Serviço
Local: Teatro Adolpho Bloch
Rua do Russel, 804, Glória, Rio de Janeiro
Telefone: 21 3553-3557
Temporada: 27 de setembro a 20 de outubro de 2024
Dias e horários: Sextas às 20h, sábados às 17h e 20h e domingos às 17h
Valor do ingresso: R$ 120,00 (inteira) e R$ 60,00 (meia)
Vendas online: www.freud.art.br
Formas de pagamentos aceitas na bilheteria: todas
Capacidade de público: 359 pessoas
Classificação indicativa: 14 anos
Duração: 90 minutos
O Teatro Adolpho Bloch possui acessibilidade plena.