Para os amantes dos musicais, existe um grande desafio: ver a transformação de qualquer tema em musical. A bem da verdade, a virada temática começou no teatro em geral, especialmente no século XIX, quando o foco do palco pulou dos grandes heróis e mitos para o homem comum. A empreitada tem produzido obras impressionantes – uma simples olhada nos títulos musicais da Broadway comprova o fato.
Pois a ousadia inventiva acaba de ganhar espaço no musical brasileiro. Entrou em cartaz na Sala Principal da Cidade das Artes o mega espetáculo Rock in Rio 40 Anos – O Musical. É um feito tão inacreditável quanto a própria criação do Rock in Rio em 1985, milagre de produção que desafiou lodaçais de descrença, má vontade e mania de pequenez. Aliás, um milagre até por representar, em princípio, um sonho totalmente absurdo diante da realidade brasileira.
A proposta é exatamente o que o título descreve: pretende-se mostrar, com os recursos próprios do teatro musical, como surgiu e aconteceu o festival de rock carioca que completa 40 anos de existência e se transformou em celebridade mundial. Claro, um desafio potente. Para tentar chegar lá, Charles Moeller criou um autêntico libreto, quer dizer, um texto de musical, uma estrutura dramática integrada em profundidade com a linha musical.
Apesar de não contar com músicas originais criadas para a cena, opção que seria descabida diante do colosso musical que é o Rock in Rio, a montagem deslumbra o público a partir da mistura poderosa realizada. A partir de trilha sonora assinada por Zé Ricardo, diretor musical do Rock in Rio, foi criada uma teia preciosa de falas, cenas e formas musicais, acontecimentos cênicos entrelaçados, com a inclusão de um volume descomunal de canções, associáveis ou não ao evento. A criação é de tal ordem que é bem difícil escrever com objetividade um roteiro das canções inseridas na montagem…
Portanto, a primeira observação importante a fazer a respeito do espetáculo é o registro de sua densidade artística elevada, excepcional. Foi alcançado um resultado excelente no tratamento de um tema difícil. E assim ele deve ser inserido no rol dos espetáculos musicais brasileiros de grande envergadura histórica por seu refinamento de linguagem. Contudo, se o destaque tem como ponto de partida a qualidade do libreto e da fortuna musical, a grandeza poética não se limita aos papéis e às partituras. No palco, sob a direção artística de Claudio Botelho, um novo encantamento se impõe: as cenas volteiam diante da plateia como se concebidas pela materialidade dos sonhos.
Sim, a ideia de sonho funciona como a mola mestra do projeto e surge logo de saída no roteiro. Uma jovem candidata a estagiária, a eletrizante Malu Rodrigues, vem do interior para tentar carreira na agência de publicidade ArtPlan. A saga da menina sonhadora é narrada por ela própria, adulta, graças à assertividade tranquila de Bel Kutner, que será eficiente indicadora do processo de realização dos sonhos – o da jovem e o do Rock in Rio.
No comando da agência, a jovem vai encontrar um grande sonhador, Roberto Medina, o criador do Rock in Rio. Ele se impõe no palco efusivamente, como um defensor desmedido de sua adesão ao sonho, graças ao carisma e à notável potência expressiva de Rodrigo Pandolfo. A conexão com a realidade e as rotinas objetivas do trabalho, eixos essenciais para materializar um chão para os sonhadores reunidos, são administradas com um brilhantismo impressionante por Gottsha, no papel da secretária Dora, papel que imprime um colorido novo na carreira da atriz.
A secretária aterrada é presença fundamental, pois, convenhamos – sob o teto que criou um evento de tal dimensão, os sonhadores pululam por todos os lados. Há por lá desde o estagiário João, obcecado por se afirmar como galã, traduzido por Beto Sargentelli em galanteios e flertes com a paisagem carioca, até o majestoso Oscar Ornstein, o homem que sonhou e lutou para que a noite do Rio se tornasse um evento tropical inebriante. André Dias, sem recursos fáceis e sem caricatura, imprime uma beleza ao perfil do velho Oscar suficiente para que a plateia sonhe em ver, um dia, um musical dedicado a ele…
A extensa ficha técnica reúne atores-cantores-dançarinos decididamente profissionais – a situação é importante, pois o lugar do sonho, no caso, exige a transformação do sonho em projeto coletivo. Assim, pequenas cenas ou falas rápidas podem ser transformadas em quadros musicais marcados a um só tempo pela beleza e pela impressionante qualidade técnica. As vozes e os corpos emprestam ímpeto particular para a tradução do desejo coletivo que se instalou a partir de iniciativas pessoais. A garra é patrimônio de todos.
O desenho do jogo entre o protagonismo e o grupo é favorecido também por algumas das forças criativas reunidas. A coreografia de Mariana Barros leva os corpos a formas de dança de época, passeia por ritmos e gêneros e dialoga com ações coerentes com a situação dramática; consegue sugerir contracenas de dança e movimento particularmente impactantes. O corpo, enfim, sonha.
Os figurinos de Fabio Namatame compõem corretamente as exigências dramáticas e em vários momentos se beneficiam da luz, de Vinicius Zampieri, uma ferramenta de extrema agilidade para o desenho das situações dramáticas. A luz dialoga com maestria com a cenografia de Ana Biavaschi, uma aventura criativa de grandes proporções, pois cria ambientes interiores de diferentes qualidades e lugares externos que vão da reprodução de paisagens do Rio à indicação sonhadora do dourado de Los Angeles.
E há toda a criação musical, sob a direção de Marcelo Castro. A voz de Malu Rodrigues doa à plateia o direito de sonhar com a vida em transformação poética permanente nas inúmeras inserções musicais que assina. Logo ao entrar em cena, ela instaura a inefável densidade do sonho com Rita Lee, em Ambição e Coisas da Vida.
Gottsha desconcerta os que acreditam num escritório morno ao soltar o vozeirão em Live and Let Die, sucesso de Paul McCartney. A trama romântica, afinal malsucedida, entre os estagiários Malu e João surge como promessa no dueto Vou Deixar, do Skank. Momentos de forte emoção coletiva não faltam, capazes de envolver a plateia numa nuvem poética de extrema delicadeza. A presença de Michel Legrand, ainda que um pouco inexplicável no contexto do Rock in Rio, revela a força de um nome novo para o musical, a atriz Yara Charry – um dueto de extrema beleza, Les Parapluies de Cherbourg, reúne a jovem cantando em francês com Malu Rodrigues, em inglês.
A temperatura emocional sobe ainda mais na necessária homenagem a Freddie Mercury: é a lembrança da noite memorável de 1985. Cabe a Malu Rodrigues a condução do número, a sempre popular Love of My Life. No final – talvez aqui com uma inclinação melodramática um pouco acentuada demais – a ação se fecha ao redor de D. Quixote. André Dias, num golpe teatral, surge montado a cavalo e canta Sonho Impossível, a canção símbolo do musical O Homem de La Mancha, sucesso musical dirigido por Flavio Rangel (1972).
O resultado da encenação é particularmente forte graças à grandiosidade da proposta e, convenhamos, ao reconhecimento da obra de Roberto Medina. Afinal, a sua capacidade de lutar por seu sonho, um sonho livre de fronteiras, parece ser uma necessidade existencial básica no Brasil, ainda tão carente de espíritos empreendedores arrojados. Poderia ser um musical enfadonho, dedicado a um episódio histórico entre tantos… Mas, a equipe, tão sonhadora quanto Roberto Medina, embarcou na viagem musical com resolução bastante para assinar uma obra de extremo valor. Então, é isto – temos um musical para a História reconhecer. Vá conferir, vale a pena, a História é uma bela companheira.
FICHA TÉCNICA:
ROCK IN RIO – 40 anos O MUSICAL
Texto e Direção geral: Charles Möeller
Direção artística: Claudio Botelho
Trilha sonora e Supervisão musical: Zé Ricardo
Direção musical: Marcelo Castro
ELENCO
Rodrigo Pandolfo (Roberto Medina), Malu Rodrigues (Beth), Bel Kutner (Elizabeth), Gottsha (Dora), Beto Sargentelli (João), André Dias (D. Quixote / Oscar), Bruno Narchi (Luiz), Yara Charry, Cezar Rocafi, Leonam Moraes, Mariana Grandi, Marianna Alexandre, Murilo Armacollo, Vinicius Cafe, Yas Fiorelo, Amaury Soares, Andreina Szoboszlai, Andressa Secchin, Caio Nery, Cesar Viggiani, Cristiano Prado, Felipe Souza, Gabi Monte, Gabriel Querino, Henrique Reinesch, Karine Bonifácio, Mavi Carpin, Roberto Justino e Vinicius Cosant.
Cenografia:
Ana Biavaschi
Coreografia: Mariana Barros
Figurinos: Fabio Namatame
Design de cabelo e maquiagem: Feliciano San Roman
Design de som: André Breda
Iluminação: Vinicius Zampieri
Casting: Marcela Altberg
Coordenadora do Projeto: Sheila Aragão
Direção
de produção: Carla Reis
Coordenação Artística: Tina Salles
Um espetáculo de Charles Möeller & Claudio Botelho
Realização:
Dom Cultural, Moeller & Botelho
Agradecimentos especiais: Roberto Medina e equipe Rock in Rio
Divulgação: PedroNeves / Clímax Comunicação e Conteúdo
SERVIÇO
Estreia: 11 de janeiro na Cidade das Artes
Temporada:
11 janeiro a 23 fevereiro 2025
Dias e horários: Quintas e Sextas, às 20h. Sábados e domingos, às 15h e 19h.
Duração: 120 minutos
Classificação indicativa: livre
Ingressos https://bileto.sympla.com.br/event/100618