
Invocar o latim, aqui, é fundamental: nomeia um milagre, uma peça de teatro, no sentido pleno do conceito, em cartaz no Rio de Janeiro. Corra para ver a santidade teatral de O dia em que raptaram o Papa, de João Bethencourt, no Teatro Fashion Mall, Sala Rosa Maria Murtinho. Só assim você será perdoado de todos os pecados contra o palco que tem cometido na vida – ou que tem sido levado a cometer. Afinal, está se tornando raro contar com uma peça, na pura acepção do termo, nos palcos cariocas…
O perdão começa a acontecer graças à qualidade essencial da alma do texto: além de ser exatamente uma peça, está em cena a abençoada tradição cômica brasileira. Escrita em 1971, esta é uma das melhores obras de João Bethencourt (1924-2006), um devoto estudioso da arte do riso e do cômico. E atenção, não se trata de elogio vazio, não é reza ociosa para saudar um desvalido. O reconhecimento é ecumênico, pois esta é a peça brasileira mais encenada no exterior. João Bethencourt deveria ser cultuado por nós com fervor, permanecer sempre ao vivo nos altares teatrais do país.
E qual o segredo sagrado de tamanho sucesso? De saída, é preciso reconhecer que a trama da peça é genial, um achado, inspiração divina. A seguir, importa destacar que ela segue uma estrutura lógica rigorosa, com um encadeamento perfeito dos fatos. Ao mesmo tempo, a concepção geral se reveste de um discreto tom absurdo, muito bem dosado, um pouco semelhante às velhas parábolas dos padres antigos, preocupados em contar histórias surpreendentes para disseminar o medo do inferno. A combinação dos dois coloridos contrapostos, rigor lógico sedutor e ligeiro absurdo distanciador, conduz a plateia a um fluxo de sentimentos muito peculiar, uma delicada mistura de afeto e riso, até a comunhão final – um intenso desejo sentimental de paz no mundo, como o autor desejava sugerir…

No palco, um taxista judeu sonhador, sinceramente preocupado com a marcha destrutiva do mundo, aproveita a sorte de uma oportunidade inesperada e decide sequestrar o Papa para exigir em troca um resgate muito cristão: um dia de paz na terra entre os homens de todas as vontades… A situação bem armada arrebata e diverte a plateia num ritmo crescente, pois o taxista, afinal, tem um curioso perfil guerreiro.
A direção da montagem tem a assinatura de Cristina Bethencourt, filha do dramaturgo. O seu olhar para o texto, muito afetuoso, é de extrema sutileza, busca sobretudo assegurar o andamento eficiente da ação; para tanto, houve uma discreta condensação do original, gerada por uma preocupação, talvez desnecessária, com a sensibilidade atual. A prova da cena com certeza dissipa qualquer temor: a peça é um sucesso.
A partir da adesão da diretora à arquitetura dramática, os atores são exigidos no rigor da letra e respondem com maestria às propostas do dramaturgo. O conjunto da encenação se move de acordo com o desejo do criador, sem invenciones ou transgressões, e o ritmo de comédia sentimental flui com extrema agilidade. Dá para rir muito e, ao mesmo tempo, sentir uma emoção singela, um misto de cidadania e pertencimento.

O Papa de Giuseppe Oristanio é etéreo, consegue materializar uma imagem perfeita do representante de Deus, da voz aos gestos – irradia calma, benevolência e, por isto, encanta com impacto na sua reviravolta final. Claudio Mendes, o motorista sonhador, consegue se afirmar como herói às avessas e torna arrebatadores até mesmo os seus ensaios para explodir as resistências do mundo. Elisa Pinheiro, na esposa Sara, dosa com desenvoltura tons de irritabilidade doméstica feminina, de amor ao marido e de uma inteligência típica de ídiche mama.
A jovem atriz Beatriz Linhales (Miriam), uma grata revelação, e o ator Samuel Valladares (Irving), encarregados dos filhos do taxista, traduzem bem a impaciência juvenil, sustentam com brio diálogos coloridos de irreverência inclinados à criação de um clima de iconoclastia saudável. Nando Cunha, responsável pelo Cardeal O’Hara, e Gustavo Ottoni, no Rabino Meyer, desenham a contento as forças de oposição.

O cenário despojado, assinado por José Dias, serve bem à ação e traduz o interior de uma casa judaica de classe média simples nos arredores de Nova Iorque. A luz de Rogério Wiltgen é funcional. A cena e os figurinos (de Ronald Teixeira e Pedro stanford) buscam uma discreta sugestão dos modismos dos anos 1970, data da ação, mas sem enveredar por uma reconstrução de época minuciosa. Ao abolir a sensação exata de época, a opção funciona bem para sublinhar a continuidade da miséria humana na face do globo, com tantas guerras e mortandades do Vietnã até hoje.
Portanto, se o seu amor em arte desposa o teatro em perfeito sacramento, louve glórias aos deuses da cena e aproveite para romper o jejum – dii sunt apud te, quer dizer, os deuses estão contigo. No caso desta peça, contudo, o voto com a expressão pagã pode soar inadequado. Melhor dizer como o Papa diria: Dominus vobiscum.
Para saber o significado da expressão, se não há nos seus dias a rotina da igreja, basta olhar num tradutor online. Ou melhor, não, faça algo muito mais simples – corra para o teatro para ver a peça. Assim, em lugar de meras palavras ligeiras, você receberá em você, bem em você, em plenitude, a comunhão cênica total, puro teatro em forma de oração…

Ficha Técnica
Texto: João Bethencourt
Direção: Cristina Bethencourt
Diretora Assist. Renata Paschoal
Elenco: Giuseppe Oristanio, Claudio Mendes, Elisa Pinheiro, Beatriz Linhales, Samuel Valladares, Gustavo Ottoni
Participação especial: Nando Cunha
Cenário: José Dias
Figurinos: Ronald Teixeira e Pedro Stanford
Luz: Rogério Wiltgen
Trilha Sonora: Chico Beltrão
Voz of Locutores: Duaia Assumpção, Lucas Barbosa e José Beltrão
Voz of Xerife: André Dale
Direção de Movimento: Toni Rodrigues
Assistente de direção: Lucas Barbosa
Assistente de produção: Jovi Gonçalves
Cenotécnico: Guilherme Tommasi
Assessoria de imprensa: Daniela Cavalcanti
Fotos: Guga Melgar
Produção: Forte Filmes
Realização: Dino Produções
Serviço
O dia em que raptaram o Papa
Estreia: 9 de maio (sexta-feira), às 20h
Local: Teatro Fashion Mall – Sala Rosa Maria Murtinho (Estrada da Gávea, 899 – São Conrado)
Informações: (21) 99857-8677
Horários: Sexta e Domingo, às 20h | Sábado, às 21h
Capacidade: 400 lugares
Duração: 70 minutos
Classificação: 12 anos
Ingressos: R$120,00 (inteira) | R$60,00 (meia)
Vendas: Sympla
Fotos Guga Melgar: em estúdio
Temporada: 9 de maio a 22 de junho