A história é verdadeira, juro. Ou talvez não. Confesso, reconheço: uma história fica muito mais divertida quando a leitura insinua a possibilidade de ser real. Nada supera a aura de espanto sempre oferecida quando há a suposição de fato verídico.
Vamos aos fatos. A coisa toda aconteceu faz tempo, lá pelas bandas do cemitério do Iguassu Velho. Sim, ali perto de Nova Iguaçu. Mas o local é tão velho que a grafia ainda era com dois “S”. Seria o Iguassu verdadeiro, original.
O cemitério abandonado fora abrigo de escravos velhos, na maior parte de sua história. Os brancos e ricos ainda eram enterrados nas igrejas. Cemitério era chão de pobre. Este reuniu uma constelação compacta de almas sofredoras.
Por isto, nasceu uma superstição forte. O cemitério se tornou um ponto fervilhante para despachos e macumbas. Para o povo, o caminho era direto. Arriou por lá, acertou no milhar, o desejo estava feito. Não tinha erro não.
Pois aconteceu, por acaso, uma forte conjunção. Várias pessoas da mesma família decidiram ir ao cemitério. Precisavam muito de favores do além túmulo. Não tinham a quem mais recorrer.
A matriarca, D. Lola, precisava fazer um despacho para ver se aquietava o marido. Já entravam na alta maturidade e o homem prosseguia de facho acesso, sobrecarregando a mulher cansada e perseguindo todas as saias acessíveis ao redor. Precisava mudar de rumo.
Uma chatice, ela pensava. Ele podia se ocupar com algo mais tranquilo, como deviam fazer os velhos. Certamente ainda não estava tão velho, porém, se ficasse umas boas horas jogando buraco, poderia preparar a aposentadoria. O conselho foi para fazer um despacho usando cartas de baralho, sem incluir as cartas de copas. Os coraçõezinhos não seriam uma energia boa para o caso.
O pai dele, um senhor sossegado, patriarca solene convicto da família, tinha também um enguiço por resolver. Vendera uns lotes avantajados lá na terrinha, recebidos de surpresa com a morte de seu pai. Foi um imprevisto, o velho portuga era um homem tido e havido por todos como imortal. Mas, afinal, morrera.
Ele desejava usar a bolada para comprar um sítio, ali pelos lado mesmo de Iguaçu. Pretendia repousar o esqueleto na contemplação de galinhas e hortaliças. Todavia, morria de medo de fazer um negócio ruim. Queria proteção contra terras podres e larápios.
Dudu, o jovem neto endiabrado, para surpresa geral passara no vestibular, para uma universidade qualquer, um curso avançado de não se sabe o quê. O feito só poderia ser obra das santas almas. A mãe dele decidiu convencê-lo a fazer um despacho, pretextou a favor de um agradecimento solene, até para assegurar que ele seguiria a carreira.
Dona Valdívia, mãe de D. Lola, viúva eterna, conseguira um par constante na domingueira dançante da terceira idade. Garantia, muito séria, a ausência de compromisso com o novo parceiro. Marido bom, era marido morto, gostava de repetir, bastara um.
No entanto, uma vizinha fofoqueira surpreendeu-a com olhos cumpridos diante de uma vitrine de alianças. Fosse para casar ou não, ela queria acender uma vela para as almas mais sofridas em louvor ao fato. Dançar era um gosto só, queria morrer dançando.
Mais dois ou três vizinhos aderiram ao projeto de celebrar as santas almas dos escravos desvalidos, mas desconversavam sobre os seus interesses. D. Lola, a organizadora, não insistia. Ela própria oferecia um voto qualquer para cada um, interessada na seguranca do passeio, mais garantida se acontecesse com um grupo grande.
Bom, estes eram os votos declarados, públicos, os assuntos passíveis de anúncio. Alguns só podiam ser comentados em pequenos grupos. D. Lola, por exemplo, não podia falar nada para o marido a respeito do seu desejo de apagar-lhe o fogo, acabar com o desassossego do macho.
Falava, então, na frente dele, da necessidade de ir ao cemitério para agradecer a sorte de sua saúde. Se era sorte, era um jogo, por isto levaria o baralho. Era a versão mais pública. Já o seu sogro, esbanjava evassivas. O patriarca não assumia, mas pretendia levar todo o dinheiro recebido para benzer. Uma temeridade… E por aí vai a maré de dissimulação.
Escolheram a data com muito cuidado – uma sexta-feira enluarada e quente viu a turma se espremer na Kombi de Valdir, o marido de D. Lola. O motorista não fazia a menor ideia nem da metade dos votos a bordo. Fingia ser descrente daquilo tudo, interessado apenas no passeio.
Na verdade, decidiu também aproveitar a chance para fazer uma reza, inconfessável. Talvez conquistasse a graça da nova secretária da repartição. Quem podia saber? A moreninha era linda e nem olhava para ele. Quando erguia os olhos na sua direção, ela parecia dizer: “olá, vovô”.
Confiantes, ganharam a estrada. Chegaram ao destino com a noite adiantada, quase na hora grande. Uma nuvem nada amistosa escondeu a lua justo quando entravam no cemitério. O cenário ficou um breu. O campo santo não era usado há uma eternidade, vivia abandonado. A sua serventia maior seria mesmo para despachos e rezas vadias.
Assim, o portão estava escancarado, meio caído, à vontade. O conjunto, aliás, estava todo em ruínas. Apenas uma pequena lanterna viera com o Dudu. Esqueceram, todos, de pensar neste detalhe.
Logo à esquerda da entrada, D. Lola começou a baixar o seu despacho. Nas imediações, bem por perto, os outros personagens trataram de cuidar dos seus serviços. Os olhos estavam na terra, nas cruzes, desviando matinhos, conferindo velas e fósforos.
Concentrados, pouca atenção deram a um primeiro lamento. A voz fina, lamuriosa, cortara a escuridão, mas ninguém se deu conta. Poderia passar como se fosse uma lufada extemporânea do vento. Logo um grito rouco, feroz, ecoou. O ar tremeu. Foi o sinal para um coro espantoso de vozes, engajadas do lamento ao furor, ecoar violentamente. Uma cantoria assustadora de gemidos ganhou o espaço.
Todos ergueram as cabeças dos ofícios do chão e olharam para o fundo do cemitério, justo no instante em que a nuvem abria caminho para a lua. A luz branca, súbita, sublinhava tudo. Encarapitados sobre o muro em ruínas, envoltos em roupas brancas como se fossem mortalhas, uma procissão de seres indecifráveis cantava a sua desventura em sons retorcidos.
A turma dos despachos contemplou pasma a cena, um pouco sem entender ou acreditar no que via. Ficaram cristalizados. O menino Carlos, muito enxerido, que se metera na excursão por falta do que fazer, foi o primeiro a correr. Gritou: “gente, é alma do outro mundo!…” e disparou.
A turma de fiéis esqueceu achaques cotidianos, alegados para mancar ou lamentar, e zarpou atrás dele, como se formassem um enxame de abelhas furiosas. Ninguém ficou para trás. Arfando, se meteram de qualquer jeito na Kombi e o motorista nem conferiu a lotação, engrenou a toda pela estrada esburacada e de novo escura.
A hospedagem de abrigo dos peregrinos era um sítio por perto, não demoraram a chegar. No meio dos comentários aflitos, desencontrados, a voz grave do velho patriarca impôs silêncio:
– “Vamos voltar lá, agora, imediatamente, perdi a minha carteira com todo o meu dinheiro!”
– “O senhor levou todo o dinheiro…?, não acredito”, protestou D. Lola. “Ah, às vezes o senhor me surpreende. Bastava levar umas notas e…”
– “A senhora me disse, mas este não é o meu feitio. Tinha que benzer, era muito dinheiro, levei tudo. Vamos voltar lá.”
Um silêncio digno do mais abandonado dos cemitérios se fez. Solidário com o pai e com a herança, que, afinal, um dia seria sua, seu Valdir tentou tranquilizar o velho. Garantiu, sério, iria no dia seguinte cedo até lá com ele. De noite, nem pensar, preferia ficar bem pobre.
Não houve jeito. O velho aceitou as ponderações – ninguém estava disposto a encarar as almas do outro mundo, ou fosse o que fosse, de novo e, sozinho, ele não teria como ir até lá. Conformado, foi dormir, com a certeza de que talvez as almas quisessem o seu dinheiro e nada, então, poderia fazer. Adeus, galinhas, adeus hortinha.
Mal o sol nasceu, a dupla pegou a Kombi e ganhou a estrada – ninguém se candidatou a acompanhá-los, apesar do sol radioso. Chegaram ao cemitério. Olharam a planície enorme ao redor, um grande vazio. Nada, ninguém perturbava aquela paz eterna. Quem sabe até mesmo as macumbas estariam em desuso por ali, estiveram todos enganados.
Com uma pressa surpreendente para a idade, o velho patriarca, de um pulo, estava dentro do campo santo. Um pouco adiante do portão, gorda, recheada, estava a carteira de dinheiro. Tudo certinho.
As almas deixaram a grana toda para o vovô. Não quiseram virar milionárias – pois as notas reunidas ali fariam de qualquer pé rapado um senhor abastado, naqueles recantos sombrios.
De volta ao sítio, a turma riu a valer – alguém sugeriu que a herança benzida pelas almas penadas devia ser vendida como talismã, nota a nota. Daria um dinheirão.
Logo um outro, espírito de porco em grande estilo, perguntou: – “…mas… como vai ser provado o feito das almas, alguém vai lá convidar alguma para testemunhar?…”
O idoso ignorou as insinuações. Estava satisfeito. Ia comprar o seu sítio, celebrar a sorte grande, esquecer as almas. Afinal, não conseguira fazer o despacho, as almas não deixaram. Não acendeu nem uma vela! Então, definitivamente, no seu entender, as almas demonstraram que não queriam saber disto. Dinheiro, não.
O raciocínio era providencial. Com ele, não tinha dívidas com as tais almas. Estava livre, conta zerada. E, assim, acabou a história: ninguém da turma nunca mais teve coragem para voltar a visitar o velho cemitério. Afinal, concluíram, despacho não faz ninguém ficar rico…
Tagged: História do Rio de Janeiro, Iguassu Velho