Excariocas
Estou em choque: acabei de ler um livro contundente, mais cruel do que aquele espelho da madrasta da Branca de Neve. Recomendo que corram para a livraria, comprem um exemplar pessoal e devorem as páginas. Isto, claro, se o leitor for carioca e ou amante de teatro. Depois, guarde numa estante na altura dos olhos, para mantê-lo no coração. Manter o livro e o Theatro Lyrico, para sempre parte da sua alma carioca nostálgica. Para não virar um excarioca, como está acontecendo a todo o vapor.
Faz muito tempo que sei algo da história do Teatro Lyrico. Mas, confesso, o meu saber não ia muito além das notas rápidas – e esforçadas, vamos reconhecer – do nosso grande amigo Galante de Sousa, o livro de cabeceira dos apaixonados por teatro brasileiro.
Em algumas ocasiões, alguém me perguntou alguma coisa sobre a velha casa, mas, mea culpa, respondi apenas com o pouco que sabia, sem prestar atenção no fato gritante da imensidão do que eu não sabia. Hoje, posso reconhecer sem nenhuma vergonha – eu não sabia nada. E não sei, francamente, ainda como devemos, nós, os apaixonados por teatro e pelo Rio, nos posicionarmos diante do teatro desconhecido.
Sim, trata-se de um teatro desconhecido, esquecido, desprezado. Apagado da nossa tela existencial. E nestes sentimentos, há uma evidência corrosiva: somos nós próprios os desconhecidos, os esquecidos, os desprezados, numa espécie de Alzheimer cultural. Gente, que vergonha que dá a história do Teatro Lyrico!
Vamos ao livro. O autor é o historiador Francisco Vieira, que trabalhou a partir de uma pesquisa de Martha Luiza Vieira Lopes. O livro atende por nome sugestivo: Palco e Picadeiro – O Theatro Lyrico, e é velho, é de 2015. A notícia notável salta das páginas – foi uma publicação oficial da Prefeitura, quando a prefeitura e o prefeito ainda se importavam com a cidade. O volume é uma caixinha de surpresas.
A primeira surpresa nasce desta proximidade perdida entre o circo e o teatro, anunciada no título, uma marca histórica intensa apagada pela geração moderna. A proximidade das artes fala de um outro tempo e de uma intensidade de criação distante. Uma outra surpresa bem engraçada é o nascimento do projeto de fazer teatro, pois tudo nasceu de uma forma anedótica, vale a pena ler. Um comerciante do interior, daqueles cândidos amantes da arte, leva um calote do dono do circo que ele estava ajudando. O dono do picadeiro, sem poder pagar a dívida, foge e… deixa o circo de presente para o comerciante!
Lá do interior, o louco aventureiro, um português emigrado muito empreendedor, resolve vir com o seu circo para o Rio de Janeiro. Homem de sorte, abre a lona ali no Centro da cidade, no Largo da Carioca. Acaba tropeçando no imperador e – como sempre acontece no Brasil – é estimulado pelo governante a construir um teatro de verdade. Mas num terreno público – um pouco como aconteceu com o Canecão e o Teatro Casa Grande.
O sonhador Bartholomeu Corrêa da Silva decidiu embarcar no sonho e, com um bocado de madeiras cedidas pelo Império e muita despesa pessoal, construiu um teatro-monumento que logo seria celebrado como o melhor do país. Nascia o Theatro Lyrico, dotado de palco móvel, para que ali, no grande teatro, fosse possível ter… apresentações de circo! Por isto o título – palco e picadeiro. O teatro era enorme. Arrendado a diferentes empresários dedicados aos diversos tipos de artes cênicas, o edifício contava com a vigilância permanente do seu maestro, pois ele sempre morou numa casa integrada ao teatro.
Ópera, balé, teatro dramático, teatro musical, circo, música, cinema… de tudo se podia desfrutar na grande casa. Os grandes nomes da cena internacional e nacional lá estiveram – Sarah Bernhardt, Eleonora Duse, Réjane, Toscanini, Caruso, Carlos Gomes, Mistinguett, Beniamino Gigli, Emma Grammatica, Palmira Bastos, Beatriz Costa, Companhia Velasco, Bidu Sayão, Anna Pawlova, Coquelin, Tina de Lorenzo, Procópio Ferreira… A lista não tem fim.
No entanto, sempre me causou estranheza o fato do Lyrico ter fenecido – quer dizer, desaparecido em silêncio, ao menos relativo. Sentia apenas estranheza: juro que eu acho sempre muito estranho que a classe e a sociedade permitam a demolição e a ruína de seus teatros sem berrar. Esgoelar mesmo.
Pois bem, o atestado de óbito do Lyrico foi a obsessão moderna, a neurose brasileira pelo novo, que nos leva a sermos pobres sim, com muita vergonha, mas muito atualizados. À la mode, como toda e qualquer população que vive numa corte. Antes de sermos cidadãos ou nativos, somos modernos, avançados, portanto, vivemos com a mão na picareta. Botamos tudo abaixo, o passado não nos importa, nos envergonha, até.
Tudo indica que a primeira estocada fatal contra o Lyrico foi a construção do Theatro Municipal – com tanta pompa e circunstância, bem público, luxuoso, o novo palco, ainda que não se equiparasse enquanto acústica e amplidão técnica, roubou o cetro. A velha casa persistiu, o seu fundador faleceu, a velhice tomava algo da força do prédio e a venda em leilão selou a sorte do espaço.
Arrematado pela Caixa Econômica Federal – pasmem – a demolição foi a pedra da vez. Nenhum sentido mais altaneiro de patrimônio, cultura, bem comum, despontou. Em 1932, a queda do Lyrico fecha uma época, de derrocada da velha cidade, não mais para requintes franceses, mas para espigões e colossos de cimento, metal e vidro. No lugar do teatro, ali no Largo da Carioca, rua Treze de Maio, não se ergueu outro teatro, mas um espigão medonho.
O que intriga nesta história é uma nota permanente de alheamento nacional, a distância entre Estado e cultura – no Brasil, lamentavelmente, o Estado tem como projeto cultural a ignorância, sob os mais diferentes matizes. Quando há interesse do Estado pela realidade cultural, o fato é circunstância, iniciativa pessoal de algum estafeta louco, impressionista. Só esta constatação permite entender (ou tentar entender) a derrubada do teatro precioso.
A consequência, para o Rio de Janeiro, é desastrosa: a cidade não conta com edifícios teatrais históricos do século XIX. Do século XVIII, nem se fala. As casas mais velhas da cidade – Carlos Gomes, João Caetano e Dulcina – passaram por reformas absolutamente desfiguradoras. Legítimas obras de lesa-patrimônio.
Portanto, algo parece soar no ar da história do teatro brasileiro: a classe teatral vive sem chão, não tem, na sociedade, as suas tradições assentadas, reconhecidas. Qualquer aragem põe abaixo o castelo de cartas da categoria. A classe teatral precisa lutar por seus meios de produção e pela consolidação dos valores históricos de sua arte. Uma guinada a favor de si seria excelente.
Por exemplo? Um detalhe do presente: vale parar de implicar com o teatro musical biográfico, narrativo, temático. Vale parar de brigar dentro de casa, assumir que não existem aliados ao redor, nem no quintal. A classe precisa se reconhecer como categoria, identificar os seus theatros lyricos do momento e consolidar o seu espaço de produção, coletivo, generoso, social e essencial. E híbrido.
Para começo de conversa, importa reconhecer a beleza da ideia de um espetáculo de teatro em louvor da música popular brasileira. Por que tentar por antolhos e tampões de ouvido para fechar questão contra algo forte, muito nosso, sucesso nas almas? MPB é pulsação brasileira profunda e muito mais. O teatro brasileiro precisa ser isto, esta mistura, algo que o velho Bartholomeu no Lyrico num certo grau intuiu.
Pois eles estão lá, quase perto, no mapa, do velho Lyrico. O espetáculo tem nome simples: Grandes encontros da MPB, novo cartaz do Teatro Riachuelo. A proposta aponta nesta direção, aquele mesmo caminho inquieto que gerou o caleidoscópio que foi o Theatro Lyrico, algo que se aproxima da inventividade capaz de gerar – e gerenciar – o nosso, a nossa cara, o nosso conforto.
Um povo cantante, criador de obras sublimes na música, canções arrebatadoras tais como Se todos fossem iguais a você, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, Beatriz, de Chico Buarque e Edu Lobo, É Proibido Fumar, de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, Sociedade Alternativa, de Raul Seixas e Paulo Coelho, Flutua, de Johnny Hooker e Liniker, merece buscar formas novas próprias para o musical. A oportunidade é a de conciliar as formas atuais da cena com as tradições erigidas pela MPB.
Então, vamos nessa? Leia o livro, vá ao teatro. Já é hora de quebrar o espelho da velha madrasta, esquecer a “frase espelho, espelho meu” e mergulhar na vida coletiva borbulhante da floresta ao redor. Para que tenhamos, quem sabe, uma ideia mais clara e mais firme a respeito das nossas chances no mundo.
Serviço:
Grandes Encontros da MPB | Temporada: 04/10/19 a 10/11/19
Teatro Riachuelo Rio – Rua do Passeio, 40
SERVIÇO:
5ª feira – 19h
6ª feira – 20h
Sábado – 17h e 20h
Domingo – 18h
PREÇOS:
5ª feira – 19h
Plateia VIP – R$ 80,00
Plateia – R$ 60,00
Balcão Nobre – R$ 40,00
Balcão – R$ 40,00
6ª feira – 20h
Plateia VIP – R$ 90,00
Plateia – R$ 70,00
Balcão Nobre – R$ 50,00
Balcão – R$ 50,00
Sábado – 17h e 20h | Domingo – 18h
Plateia VIP – R$ 100,00
Plateia – R$ 80,00
Balcão Nobre – R$ 60,00
Balcão – R$ 60,00
Informações para a imprensa
MNiemeyer Assessoria de Comunicação www.mniemeyer.com.br