Uma onda de renovação irresistível veio de São Paulo para o Rio, para sacudir a praia do musical brasileiro. Portanto, nem sequer pense em deixar de ver Martinho – Coração de Rei, novo cartaz do Teatro Riachuelo. Idealizado por Jô Santana, também realizador do projeto, o musical é assinado por Miguel Falabella, com base em dramaturgia de Helena Teodoro.
A revolução começa a partir de um ponto de vista renovador da linha dos musicais biográficos. Em lugar de tentar contar a história de vida de Martinho da Vila, o Martinho José Ferreira nascido em Duas Barras e aclamado pelo Rio, o espetáculo busca desvelar a natureza profunda do músico, a sua identidade humana, poética e musical. Ou seja, os caminhos que fazem de Martinho da Vila um encantador de todas as gentes e de todo o povo. A peça busca uma forma para fazer um musical encantador.
Naturalmente, para chegar à revelação da alma do excepcional artista negro, a trama envereda pela África, a África profunda dos Griôs e de uma das mais densas mitologias que o nosso mundo até hoje conheceu. Assim, na abertura, já se impõe a majestática figura de Alan Rocha, como o Griô, um anúncio impactante da beleza que será vista em cena.
Muito do impacto da abertura nasce também dos inacreditáveis figurinos de Cláudio Tovar, dotados de uma beleza indescritível, da luz mágica de Felipe Miranda e da cenografia em madeira, a um só tempo abstrata e objetiva, assinada por Zezinho Santos e Turíbio Santos. A cenografia flerta com a madeira, matéria originária, fruto da terra, e, usando pilastras rústicas, sugere as letras iniciais do nome de Martinho e da Vila, como se o nome, a identidade, nascesse da terra.
Com o humor moleque característico de Miguel Falabella e muito próximo de Martinho, o espetáculo assume a liberdade poética de considerar o artista filho de uma saga de entidades africanas, uma boa forma para sugerir tanto o seu vínculo com ritos de origem, quanto os traços de sua genialidade e a sua relação anímica com o universo popular. A mistura arte e povo ocupa a cena todo o tempo.
A partir do uso deste tipo de recurso narrativo e humorado, o texto brinca de renovar um antigo artifício do teatro musical brasileiro, frequente em particular nas revistas musicais, a figura do compadre e da comadre, figuras encarregadas de narrar a trama. Ao longo da ação, vão surgindo diversos tipos de narradores e de formas narrativas: a partir do Griô, até mesmo a dramaturga Helena Teodoro surge no palco. O truque ajuda a romper com a linha cronológica, condição que confere um dinamismo intenso ao fluxo da cena e permite iluminar com muita riqueza a personalidade de Martinho da Vila.
Portanto, sem se impor como relado quadrado, todas as informações essenciais de sua biografia e de sua fortuna musical povoam a trama, expostas sob subterfúgios inteligentes de narração. A influência da Folia de Reis da infância viabiliza uma sequência emocionante. A força do amor sempre presente em sua vida aparece sob intenso colorido romântico na contracena entre Alan Rocha e Fernanda Godoy, encarregada de representar Cleo Ferreira, a esposa atual. O dueto dos dois em Recriando a Criação é um dos vários pontos fortes da noite.
A irresistível magia que consagrou Vila Isabel como bairro poético em tom maior, lar de uma das mais imponentes escolas de samba do Rio, paixão e sobrenome do artista, é desvendada com humor boêmio graças a um anjo-Noel, desempenho inspirado de Dante Paccola. Assim, Noel Rosa também se torna narrador da trama, com a liberdade natural desfrutada pelas figuras celestes. A mesma chave narrativa explica a existência de quatro Martinhos. Além de Alan Rocha, desfilam no papel Fernando Leite, um sargento-Martinho exemplar, ao lado dos corretos Celso Luz e Renée Natan.
Importa destacar, contudo, que a estrutura do espetáculo obedece a uma dinâmica criativa original impressionante – apesar da existência de papéis diferenciados, o elenco existe o tempo todo como conjunto. Quer dizer, ao lado dos momentos de protagonismo, domina uma prática de materialização de grandes fluxos expressivos, coletivos, aliás a corrente de criação característica da arte popular brasileira, a forma de autoria dominante nas escolas de samba.
Assim, se Dandara Ventapane representa com brio a sua avó Anália ou a porta-bandeira esfuziante da escola, ela é todo o tempo, como o próprio Alan Rocha, um corpo dançante e cantante do ensemble. A ideia de ensemble – de certa forma uma visão do povo – é vital para o espetáculo, em especial para honrar a condição de Martinho como uma entidade profundamente popular.
Esta qualidade, que se pode definir como uma força telúrica, coletiva, eletriza a cena do espetáculo de forma inebriante. Além da condução genial de Miguel Falabella, outros quatro vetores contribuem de forma decisiva para que esta alta voltagem expressiva se instale no teatro.
De saída, há a coreografia de Rafael Machado, inventiva, original, propensa a combinar africanidade e brasilidade em doses surpreendentes; ela instaura uma corrente de expressão humana dotada de profunda comunicabilidade. Ao seu lado, há a qualidade da direção musical, de Josimar Carneiro, e da execução musical, com a uma combinação profundamente sedutora de melodia e percussão. Há ainda a paleta de cores escolhida para a cena: nos figurinos preciosos, na luz artesanal e na cenografia inteligente, a paleta é responsável por uma atmosfera pulsante, de temperatura elevada, propícia a fazer toda e qualquer alma dançar de alegria em homenagem à vida.
Nesta sequência, a decorrência lógica – e natural – é a transformação da cena, no segundo ato, em terreiro de samba. Trata-se ainda aqui de uma solução de linguagem valiosa para o musical brasileiro. Também neste caso Miguel Falabella recorre às referências históricas básicas e explora a proximidade entre os terreiros de samba e os terreiros de santo. Cantos, coreografias e quadros vivos apresentam temas caros à história da umbanda – ou, para enveredar por velhos vocábulos, da macumba. Gira e terreiro se misturam e por fim cedem espaço para o fervilhar das quadras.
Consequentemente, a partir deste momento, a adesão da plateia é total. A montagem trabalha com esta identidade de forma intensa; o público se encanta e canta desde o início, mas, no fechamento deste encontro teatral curioso, a comunhão palco plateia alcança um grau muito forte, de identificação completa. A bem da verdade, o espetáculo busca este encontro por vários caminhos.
No fundo, no entanto, talvez o caminho mais decisivo para se chegar a este desenlace seja a presença emblemática de Alan Rocha. Trata-se de uma cena coletiva, ao gosto do povo, na qual a plateia se reconhece; mas o palco, na verdade, é dele. Dotado de imenso carisma, finalmente, aqui, ele acontece.
E como é bom assistir à afirmação estrelar de um grande ator negro, agora abençoado como galã absoluto. Seja na realeza do Griô, seja no romantismo malandro e doce de Martinho da Vila, seja na rabugice elegante de Jamelão, o mais gratificante de tudo é exatamente ver a sua incomensurável grandeza como ator reconhecida em cena.
Sem dúvida, num espetáculo pródigo em cenas apaixonantes, o ponto de maior emoção é exatamente Alan Rocha cantando Disritmia. Não dá para explicar o que acontece nesta hora: é como se a onda do mar viesse, resoluta e macia, nos abraçasse e nos levasse a intuir o oceano, nosso lugar primeiro. É como o melhor efeito dos musicais: aquecer de forma surpreendente os nossos corações.
Portanto, corra para ver – a revolução musical proposta é histórica e traz um comandante inquestionável para reger a nova cena teatral do gênero mais amado do país: a do teatro que se faz música e leva as almas a flutuar. Em uma palavra: inesquecível.
Ficha técnica:
Martinho Coração de Rei – O Musical
Um espetáculo de Miguel Falabella
Idealização e Realização – Jô Santana
Dramaturgia – Helena Theodoro
Diretora Assistente – Iléa Ferraz
Direção Musical – Josimar Carneiro
Coreografias – Rafael Machado
Cenografia – Zezinho Santos e Turíbio Santos
Figurinos – Cláudio Tovar
Visagismo – Everton Soares
Designer de Luz – Felipe Miranda
Designer de Som – Bruno Pinho
Programação Visual – Dorotéia Design
Fotos de cena – Erik Almeida
Elenco em ordem alfabética:
Alan Rocha
Anastácia Lia
Celso Luz
Dandara Ventapane
Daniela Dejesus
Dante Paccola
Felipe Miranda
Fernanda Godoy
Fernando Leite
Grazzi Brasil
João Cortins
Ley Oliveira
Maria Antônia Ibraim
Matheus Oliveira
Matheus Paiva
Milena Mendonça
Negravat
Renée Natan
Roberta Gomes
Suéllen Sanches
Banda:
Percussão: Denis Lisboa e Guido Ventapane
Baixo elétrico: Nino Nascimento
Bateria: Andre Boxexa
Cavaquinho: Jayme Vignoli
Violão 7 cordas: Josimar Carneiro
Piano e sanfona: Kiko Horta
Flauta, clarinete e saxofone: Joana Saraiva
Pianista ensaio: Marcio Guimarães
Percussão Ensaio: Denis Lisboa
Informações para a imprensa: MNiemeyer Assessoria de Comunicação
Assessoria de imprensa “Martinho Coração de Rei – O Musical”: Amigos Assessoria de Comunicação
Serviço:
Temporada: 10 de janeiro a 23 de fevereiro
Dias e horários:
Quinta a sábado – 20h
Domingo – 19h
Vendas: https://www.ingresso.com/espetaculos/martinho-coracao-de-rei
Classificação: 16 anos
Duração: 80 minutos
Valores:
Tom Maior (Plateia VIP) – R$200,00
Casa de Bamba (Plateia) – R$150,00
Vila Isabel (Balcão Nobre) – R$100,00
Canta Canta Minha Gente (Balcão Superior) – R$39,00