
Coragem e ousadia: duas qualidades fundamentais na juventude. Elas pulsam com uma força irresistível no espetáculo concebido por Lucas Popeta, Quebrando Paradigmas, novo cartaz do Teatro Correios Léa Garcia.
O espetáculo é um acontecimento no sentido mais forte da palavra. Encenado no início do ano, a reestreia foi programada para comemorar os 80 anos de fundação do TEN – o revolucionário Teatro Experimental do Negro, de Abdias do Nascimento (1914-2011). Portanto, nem hesite, é programa obrigatório, vá ver. Sempre é emocionante participar de grandes acontecimentos históricos. No caso, há ainda algo a mais: a trajetória de nascimento de um grande ator. Lucas Popeta é uma seríssima promessa de astro.
Em cena, o ator surge envolto por um cenário-cápsula impactante, uma lona vermelha pontilhada de símbolos afro-brasileiros vitais, criação de Fael di Roca. A luz hábil, que oscila entre a técnica e a poesia, de Rommel Equer e Maurício Fuziyama, desenha a área de interpretação com sutileza, funciona para sublinhar uma performance épica inesquecível.

O ponto de partida da cena é a constatação do vazio humano e cultural imposto aos jovens negros brasileiros, impedidos de conhecer histórias de vida revolucionárias, como a trajetória de Abdias do Nascimento e dos gloriosos integrantes do TEN. Existe um roubo escolar lamentável, inclinado a submeter a população negra a uma nefasta minoridade social.
Lucas Popeta simplesmente abraça o desafio de materializar em cena essa contradição. A trama é simples, apesar do desenho sinuoso da ação. De um lado, um jovem negro em busca de oportunidade, enrijecido pela aridez da vida negra contemporânea, sobretudo a da juventude negra, sufocada por preconceitos, falta de oportunidades e de valores nobres para cultuar, condenada à desvalorização humana. Do outro lado, na História, nomes heróicos obstinados, grandes líderes, combatentes a favor da potência negra, capazes de lutar e, se fossem populares, aptos para criar um outro presente. Mas esses grandes mitos são desconhecidos, inacessíveis.
Uma pergunta incômoda, latente, não enunciada, paira na sala de espetáculo – por que tantas vitórias históricas não se transformaram ainda em realidade objetiva? Por que essas histórias de vida, alentadoras e fundamentais para a grandeza social do país, não são estudadas nas escolas? Por que cada jovem negro deixa de receber a lição existencial profunda que varreu o Brasil entre 1944 e o fim dos anos 1950, fase áurea do Teatro Experimental do Negro? E as tantas outras histórias fulgurantes de lideranças negras, o que faz com que vivam fora dos livros das escolas e das vidas dos brasileiros?
A ideia de que existe uma realidade intransponível cai por terra sacudida pelos feitos do TEN – num tempo em que se considerava normal pintar atores de preto para o desempenho de primeiros papéis, Abdias organizou um elenco de atores negros. E conseguiu a noite de estreia no Theatro Municipal, no dia 8 de maio de 1945. São oitenta anos.
Mas ele não ficou por aí. Criou cursos de alfabetização, de formação cultural e conquistou convênios para bolsas de estudo. Estimulou a criação de textos teatrais voltados para valores da cultura e da vida afro-brasileira. Criou associações marcadas por intenso ativismo e o jornal Quilombo, iniciativas de grande efeito para o movimento negro.

Portanto, a forma do texto – ou roteiro dramatúrgico, assinado por Lucas Popeta, é de extrema agilidade. A narrativa fragmentada, oscilando entre o presente do rapaz inseguro e desinformado e a história pródiga, combina com muito equilíbrio o jogo da cena, dividido entre a sedução da plateia através da força do ator e o fluxo de informações históricas. Destaque-se em particular a grande expressividade física de Lucas Popeta, qualidade que lhe permite construir quadros físicos de extrema força poética. De certa forma, ele dança teatro.
Naturalmente, um grande panteão de maravilhas humanas surge no espaço, evocadas pelo texto. Traços fortes da vida de Abdias do Nascimento se combinam com as imagens icônicas de Aguinaldo Camargo (?1981-1952), Ironildes Rodrigues, Lea Garcia (1913-2023), Ruth de Souza (1921-2019), Mercedes Baptista !1921-2014)…
O desafio enfrentado pelo ator, portanto, é imenso. Ele conta com a ajuda imediata do figurino de Carla Costa, uma veste atemporal, capaz de fazer com que ele se afirme de saída como um ator-performático. A direção segura de Gizelly de Paula permite que ele transite com desenvoltura por várias modulações interpretativas. Ele é o garoto apavorado diante do mundo hostil, é o protótipo dos jovens batalhadores de hoje com frequência humilhados – ou mortos – pela polícia, é o perfil decidido de Abdias do Nascimento, ou, ainda, a exibição divertida dos maneirismos das grandes damas Léa Garcia e Ruth de Souza.

Consequentemente, a peça tem feitiço: arrebata a sensibilidade da plateia. E, misturado ao sentido de alegria pela celebração tão feliz dos 80 anos do TEN, surge um pensamento forte. E urgente. O que seria hoje do Brasil se essas lições tão modelares tivessem sido ensinadas nas escolas? Será que elas teriam contribuído para mudar a dinâmica social brasileira, tão injusta e crivada de preconceitos?
Não temos como responder – mas podemos desejar que os profissionais que ocupam as Secretárias de Educação, do Estado e do Município, corram para ver a peça. E levem os professores das redes… Com certeza a peça irá levá-los a um novo pensamento a respeito da educação. Quem sabe se possa sonhar com um novo Brasil, uma terra entregue a uma humanidade renovada, em que a coragem e a ousadia juvenil alimentem o teatro e a cultura. Não precisem ser testadas em humilhantes desafios de esquina.

Espetáculo “Quebrando Paradigmas” estreia em homenagem aos 80 anos do teatro experimental negro
SERVIÇO
Local: Teatro Correios Léa Garcia
Endereço: Rua Visconde de Itaboraí, 20 – Centro, Rio de Janeiro
Datas e horário: de 8 a 31 de Maio (sexta à sábado)
Horário: 19h
Ingressos: Rio Cultura
Valor: R$20 (inteira) e R$10 (meia)
Duração: 60 min
Classificação: Livre
FICHA TÉCNICA
Realização: Confraria do Impossível
Idealização, Dramaturgia e Atuação: Lucas Popeta
Direção: Gizelly de Paula
Produtor Associado: André Lemos
Direção de Produção: Wayne Marinho
Direção Musical: Beà Ayòóla
Direção de Movimento: Marili Stefany
Figurino: Carla Costa
Iluminação: Rommel Equer e Maurício Fuziyama
Cenário: Fael di Roca
Preparação Vocal: Adriana Micarelli
Identidade Visual: Giulia Santos
Redes Sociais: Giulia Santos e Jennifer Oliveira
Assessoria de Imprensa: Monteiro Assessoria
Registros de fotos e vídeos: Jennifer Oliveira
Edição vídeos: Giulia Santos e Jennifer Oliveira
Assistência Dramatúrgica: Gabriela Nascimento e Patrícia Regina
Fotografia e Filmagem: Bia Mercês
Produção Executiva: Camila Mendonça e Fernanda Oliveira
Cenotécnico: Tarso Gentil
Operador de luz: Domingos
Operador de áudio: Fernanda Oliveira
Assessoria Jurídica: Bruno Sankofa
Parceria: Teatro Chica Xavier e Terreiro Contemporâneo
Realização: Governo Federal, Ministério da Cultura, Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro, através da Política Nacional Aldir Blanc