High-res version

Acredite, se quiser

Aqui e ali, volta a lenda. As pessoas gostam de dizer que o teatro brasileiro é um matriarcado. Acho a afirmação estranhíssima, já escrevi a respeito mais de uma vez. Mas volto ao tema, pois ele insiste em bailar pelo ar das salas de espetáculo. Não se trata de lavar roupa suja em público. O caso é de autêntica urgência social.

Afinal, quando se fala em matriarcado teatral, enuncia-se um sofisma. Ou uma visão superficial dos fatos. E parece bem curiosa a sobrevivência do raciocínio, tão fácil, num país feminicida, misógino e persistente na baixa oferta de oportunidades para as mulheres. O teatro seria um oásis no meio de um deserto hostil chamado Brasil? Desde o século XVI as mulheres aqui são massacradas.

Para desmontar a visão edulcorada dos palcos, não se precisa de muito esforço – alguns argumentos são, de saída, bem fortes. O primeiro é a simples avaliação do teatro hoje – quantas diretoras atuam no palco brasileiro? Quantas se projetam, com inequívoca liderança?

É verdade que existe, na produção, uma concentração interessante de mulheres, um tema que exigiria uma reflexão específica. Além deste nicho, olhe com atenção, observe as posições de comando artístico e executivo: a presença feminina tende a ser minoritária. Está aquém da potência feminina.

Um outro dado gritante do presente aparece nas funções técnicas – com exceção do figurino e da maquiagem, territórios femininos por tradição, as mulheres não são numerosas nas funções voltadas para o funcionamento do palco.

Gosto sempre de lembrar  que, em meados da década de 1970, na Escola de Teatro da então FEFIERJ, as mulheres não podiam fazer as aulas práticas de iluminação. A pequena cabine de luz, quase toda ocupada pela resistência de sal, exigia a nudez quase total do operador e uma enorme força muscular para as manobras. Uma echarpe ou um cabelão, e tudo iria pelos ares.

A história também traz casos impactantes. A historiografia tradicional cismou de fixar que a primeira direção moderna no país foi assinada por Ziembinski. Na verdade, o troféu deveria ser atribuído a Itália Fausta, atriz de imensa cultura e total inquietude – ela aceitou o convite de Paschoal Carlos Magno para dirigir o espetáculo inaugural do Teatro do Estudante do Brasil, Romeu e Julieta, de Shakespeare, em 1938. Ela estava formando uma nova geração de atores. E que atores.

Mas, devemos reconhecer, a sua direção não poderia ser vista como um ato de corte, abrupto, violento, como a sensibilidade brasileira adora. A linha seguida foi bem ao contrário. Num tom de conciliação com as práticas do mercado e da tradição, Itália Fausta fez uma direção de passagem, agregadora – aliás, um modelo que persistirá em prática nas cenas do Rio até a década de 1960.

O que significa esta prática conciliadora? Significa ter uma leitura poética do texto acima das vaidades e das atribuições, uma visão de afirmação do texto, uma submissão dos temperamentos dos atores a esta concepção, combinando esta ideia moderna de encenação com uma técnica de cena ditada pela tradição, com algarismos de colocação e tratamento do espaço segundo as convenções.

Vale, contudo, frisar: não foi apenas a primeira diretora brasileira que foi apagada das páginas da nossa história do teatro. A lista das injustiças é enorme. A força de Lúcia Benedetti para a afirmação do teatro infantil também não é lembrada. E, justiça das injustiças, a imensa riqueza poética doada ao país por inúmeras dramaturgas, desde o século XIX, não conta. Sequer sabemos os seus nomes.

Se o Rio de Janeiro é a terra da Garota de Ipanema, por quê a cidade ainda não tem, como acontece em todos os grandes centros culturais e teatrais, um teatro das mulheres para chamar de seu? Sim, um teatro feminista e feminino. Não precisaria ser do tipo “homem não entra” – ao contrário, até.

Porém, deveria ser um espaço de teatro bem peculiar – poderia ser batizado como Teatro Bibi Ferreira, já que o antigo portador do nome desapareceu – um teatro pensado, gerido e ocupado por mulheres. Ou, quem sabe, poderia ser ali no Teatro Ipanema, para homenagear Leyla Ribeiro?

Falta ao país – e grandes empresas de beleza, como Natura, Boticário, Avon, Granado/Phebo, por exemplo, deveriam pensar nisto – um teatro-mulher intenso, de qualidade feminina vibrante. Além do edifício, importaria ter editais, concursos, projetos de estímulo, enfim iniciativas voltadas à expansão da produção feminina no campo.

Seria uma forma hábil para articular e unir as mulheres atuantes no teatro, sem que elas recorressem ao apoio masculino para fundamentar a sua projeção. Afinal, muitas das mulheres notáveis da cena brasileira, sem que o fato possa diminuir os seus talentos, puderam se projetar graças à ação de maridos ou amantes empresários, patronos, mecenas, amorosos e abnegados.

A rigor, existem hoje na cena carioca mulheres de teatro notáveis. Batalhadoras, fortes, dedicadas, produtivas, elas lideram projetos de qualidade e respondem por uma parcela respeitosa da oferta de arte. Não são cerceadas na sua prática, até onde se sabe. Mas, evidentemente, poderiam oferecer uma produção de arte ainda mais contundente para a sociedade, se dispusessem de estruturas de produção mais favoráveis. Importa muito saber o que elas pensam, como se sentem e se movem.

Um exemplo de mulher de teatro batalhadora? Termina amanhã, terça-feira, a temporada do espetáculo Bastidores, de Cristina Fagundes. A artista responde pelo texto e pela direção e atua na montagem. O espetáculo nasceu do desejo de registrar os tempos de pandemia, quer dizer, focalizar os impasses diante dos quais a cena teatral  se viu obrigada a trabalhar.

Para o conhecimento da vida de teatro, ou seja, a dinâmica dos bastidores, a ideia é mais do que oportuna. Cristina Fagundes tem se destacado no mercado de teatro carioca, foi indicada já como diretora e autora a prêmios importantes (Cesgranrio e Shell). Em resumo, ela é uma voz sonante que se projeta, neste trabalho, para falar de um tema forte do presente, a crise do teatro vista por dentro.

A ideia é exatamente indicar a realidade dos bastidores, mostrar a intimidade de um grupo de teatro às voltas com a possibilidade de fazer uma peça para a plataforma Zoom. Estão lá as intrigas, a precariedade, as dificuldades, os amores e até as solicitações bizarras do patrocinador. Em defesa do teatro e a favor da divulgação da árdua batalha travada sempre para fazer teatro no país, a proposta merece destaque. Portanto, deveria ficar mais tempo em cartaz.

O destaque se faz prioridade, no fim das contas, por este importante diferencial – o fato de ser uma obra de mulher. A afirmação do poder criativo feminino é uma das pautas de urgência hoje, por todo o mundo, precisa ser colocada sob foco. Basta rastrear as prateleiras para ver como o tema aparece nas páginas de agora, todas apontando para a sua urgência.

Um dos marcos da consciência feminista continua atual e esclarecedor – O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, ainda não consegue escapar da condição de livro de cabeceira. Mas, de lá para cá, tanto a luta como o pensamento andaram. Não falta leitura preciosa para informar a ação de cada mulher e oferecer ferramentas para mudar o mundo. 

Nos textos nacionais, domina a ideia de que é preciso agir com pressa, para ontem, pois, exatamente, os números coletados no país revelam uma situação intolerável. Em paralelo com o renascimento internacional do feminismo, a mensagem aparece clara – no caso brasileiro, tão brutal, não é admissível manter os braços cruzados.

Portanto, prepare-se. Afine o seu olhar para perceber antigas leituras da realidade tortuosas, refine a mente para constatar os raciocínios maliciosos aptos para escamotear a verdade. Fique alerta. A hora é das mulheres: no teatro, nos lares, na política, na economia, enfim, na vida. E para quê? Para que se possa cogitar pensar seriamente em qualidade de vida social. Simples assim, como uma pilha de roupas bem lavadas.

SERVIÇO

Temporada: 04 a 19 de dezembro  – prorrogação: segundas e terças, até 26 de janeiro de 2021, 21h30.

Local: Sympla – espetáculo transmitido via zoom na plataforma do Sympla.

Telefone: (21) 98846-3721

Dias: sextas às 22h30 e sábados às 21h

Ingressos: R$100 (inteira) / R$ 50,00 (meia-entrada)

Classificação: 14 anos. 

Duração: 60 minutos

FICHA TÉCNICA


Texto e direção: Cristina Fagundes

Elenco: Acauã Sol, Alexandre Varella, Ana Paula Novellino, Cristina Fagundes, Flavia Espirito Santo, Karin Roepke,  Marcelo dias, Michel Blois, Verônica Reis e Verônica Rocha.

Direção de Produção: CultConsult – Elaine Moreira e Cris Rocha

Assistência de Produção/Operação de Zoom: Marselha Mercedes

Figurino: Flavia Espirito Santo

Direção de Arte: Alice Cruz

Trilha Sonora: Leandro Castilho e Cristina Fagundes

Programação Visual: Ivison Spezani

Vídeo de Abertura: Mariana Dias

Consultoria de Redes Sociais: Tatiana Borges – Agência e-Plan

Assessoria de Comunicação: Dobbs Scarpa

Realização: Fagundes Produções

PARA LER: