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Carnaval, desengano, o teatro lá fora, esperando…

Esqueça, o povo não lhe ama: o povo gosta mesmo é de carnaval. Você, teatro velho de guerra, se esforçou, mas a liga não rolou. Alguma coisa deu errado e o abraço tão sonhado, que já houve, desapareceu. Em especial aqui no Rio. Pois é.

A cidade finge que tem teatro. Tenta fazer um teatro apaixonado e dedicado, esforçado mesmo, mas… alguma parcela da população dá o fígado por isto? A turba seria capaz de desafiar o coronavírus, a prefeitura e a polícia para se acotovelar suada diante de um palco? Ou o povo só pensa no bloco e na escola? De samba, obviamente.

Quem é a plateia de teatro carioca? Quem vai ao teatro e morre por ele, além da própria classe teatral? Quantos teatros no Rio fecharam e provocaram a fúria de algum segmento do população?

Parece que em São Paulo a coisa tem um tom diferente – tem teatro por lá, em algum lugar. O povo gosta. Mais de uma vez, na pauliceia, constatei na fila de espera de teatros vários conversas anônimas admiráveis sobre a antiga arte. Eram pessoas comuns, seduzidas pelos encantos da cena, com juízos inteligentes a respeito do ofício.

Mas, mesmo em São Paulo, há um segmento acadêmico que se esforça – como os intelectuais esquisitos do século XIX – para desancar a arte corrente na cena. Para esta academia requintada, o teatro dito comercial devia ser banido para o inferno. Com requintes de crueldade: espetinhos cênicos apimentados.

Para eles, o caso mais grave é o teatro de sucesso, farta bilheteria, hábil na magia de embriagar o povaréu. E tem mais. Teatro de expressão universal? Fogo! Excomunhão! Sobretudo o musical – esta arte espúria que retrata os seres em cena em estado de total liberdade poética, dançando e cantando. Há um coro desafinado empenhado em torcer contra o musical. Linchamento letrado.

Já ouvi um acadêmico querido, ativista do teatro de altas ideias, desmerecer o deslumbrante desempenho de Claudia Raia em Sweet Charity, como se fosse apenas uma apresentação “boa no gênero”. Em compensação, as peças mais amadas pelo meu estimado amigo são recordistas de falta de plateia.

Costumam ser performances invisíveis ou rocambolescos altares de exposição de entranhas humanas. São rituais cênicos de vanguarda, com frequência herméticos, idolatrados por uma classe média urbana tão esnobe quanto os áulicos escritores do século XIX, aqueles estetas finos que despejavam saraivadas de letras iradas contra o Alcazar, a opereta, a revista, Artur Azevedo e seus pares…

Lembrei desta melancolia toda não apenas por ser, hoje, carnaval espiritival – quer dizer, carnaval sem carnaval, sem carne, só de espírito. Aqui no meu retiro – pois sou decididamente uma figura carnavalesca e recolhida contra a pandemia – fui arrumar uns livros. E deparei com uma bela surpresa.

Arrematei recentemente num leilão um pequeno volume raro que ainda não folheara. Sim, por causa do isolamento, o livreto chegou e ficou em quarentena. Agora, fui resgatá-lo. Nunca, antes, em toda a minha vida de amante de sebos, livrarias e bibliotecas, tive a glória de esbarrar nesta obra.

O título do livro já é uma  dádiva: Trovador de Esquina ou Repertório do Capadócio. O autor, na realidade o organizador do volume, pois trata-se de repertório colecionado por ele, assina várias obras assemelhadas da época – João de Souza Conegundes. Até agora, nada descobri a seu respeito.

Mas, ao escrever o livro, o seu objetivo era claro. Na folha de rosto, consta que é um livro  …”contendo canções populares, fandangos, sambas. Fadinhos e desafios; cantigas que prendem as raparigas, cantatas que deleitam as mulatas, modinhas que chocam as crioulinhas.”

A obra devia ter sucesso, pois o volume, de 1901, é a 15a.   edição, publicação da Livraria do Povo, Rio de Janeiro. O material reunido desperta a curiosidade do leitor facilmente: qual seria a finalidade de uma coletânea tão variada de textos? Seria um repertório para saraus, serenatas, rodas de música e de recitação? O que as pessoas faziam com este livro?

O tom geral, num primeiro exame, parece ser a busca do sucesso no flerte, nos jogos de sedução. Talvez a maioria absoluta dos textos pretenda encantar as moças. Seriam armas masculinas para a conquista. Sim, pode ser, mas  existem textos assinados por mulheres, declarações de amor femininas.

E a coisa vai além, permite insinuar uma radiografia da alma comum, situar a vivência poética popular da época. Ao lado de poesias de autores consagrados, tais como Fagundes Varella e Castro Alves, há  Mello Moraes e outros tantos grandes apagados no tempo. As pessoas gostavam de recitar isto, presume-se. E mais, há muito mais, para a surpresa deste nosso século em que o teatro se esvai…

O volume reúne vários monólogos e textos recitativos identificados como partes integrantes do repertório de atores e de palhaços. Pois é. Mas não é só – não se iluda, prepare o seu coração.

Lá está o delicioso tango de Artur Azevedo, Amor Tem Fogo, sucesso da ópera cômica A Princesa dos Cajueiros, dele e de Sá Noronha… Só aparece o nome do autor da letra, afinal uma consagração notável para o revisteiro. Artur Azevedo andava nas bocas populares.

E, por falar em revista, lá está toda a lírica do imenso sucesso Tim Tim por Tim Tim, de Sousa Bastos, uma revista portuguesa que encantou os dois lados do Atlântico. A estrutura do texto da revista, plástica, é um achado precioso. Permite  mudanças e acréscimos locais.

O ponto de partida é a despedida de Ulisses da ninfa Calipso, em cuja ilha ele descansou e amou.  O herói se prepara para visitar a cidade que fundara, Lisboa, e para andanças pelo mundo. Portanto, tanto é possível apresentar um toureiro como as quatro estações ou uma baiana quituteira de mungunzá.

Tanto tempo depois, a fieira de letras da revista, afinal um libreto, não é totalmente decifrável, para quem não conhecer o texto original. Portanto, o coração acelera ao imaginar o quanto este teatro estava no gosto, na boca e na memória popular.

A pergunta parece saltar clara, objetiva, das páginas amarelecidas do papel barato usado na edição  – por quê o teatro estava tão perto das gentes? Onde e como o palco perdeu o pé e o rumo, supondo-se, aqui, que o lugar do teatro é no coração do povo e não no colo dos intelectuais…? Algum teatro de hoje ousaria figurar numa antologia deste tom?…

Encontrei ainda na rápida leitura a letra de um lundu estimado, do século XIX, cuja autoria desconhecia. É o Lundu da Marrequinha, atribuído no volume a Paula Brito (1809-1861), jornalista, escritor, poeta, dramaturgo, tradutor e letrista.

Vale lembrar certas coisas de antanho. Marrequinha é uma ave de quintal, é um tipo de laço de fita dos vestidos da época e também se tornou nome para falar de umas moças que andavam na rua das Marrecas…

Gosto muito desta letra para ilustrar aulas, palestras. Ela fala de um sabor malicioso da arte talvez próximo de alguma explicação para a pergunta central deste escrito aqui. Talvez ela permita insinuar algo do sucesso do carnaval, desvelar matizes do crepúsculo da cena.  Assunto para outro texto.

Parece que, em algum momento, quem sabe no momento moderno, o teatro decidiu deixar de sintonizar com a sensibilidade, a pele, a percepção imediata da vida, o sentimento das pessoas. Enveredou por um tipo de busca de ideias, tramas racionais, lições de vida, ditados de atitudes normativas, julgamentos, em vez do flerte e da sugestão.

O palco desistiu de conversar e resolveu discursar. Como se retomasse a retórica autoritária afrancesada do século XIX, do teatro norma culta padrão de civilização. Saiu das ruas e se trancou nos gabinetes. Este se tornou um padrão geral, não uma ocupação válida (e minoritária) de um segmento.

Ok, é só uma pergunta – a cada um, amante do teatro ainda, apesar do ofuscamento da arte – o desafio de pensar a respeito, tentar responder. Não, não estou afirmando, só divagando carnavalescamente ao redor de um enorme vazio teatral, como se fosse uma serpentina ociosa.

Para afiar as mentes, ilustrar o amor teatral antigo, insinuar algo a respeito da origem do idílio popular cerrado com as lides de Momo, deixo aqui a letra da Marrequinha…

Os olhos namoradores

Da engraçada Iaiázinha

Logo me fazem lembrar

Sua bela marrequinha.

Iaiá não teime,

Solte a marreca,

Se não eu morro,

Leva-me a breca.

Se dançando à brasileira

Quebra o corpo a Iaiázinha,

Com ela brinca pulando

Sua bela marrequinha.

Iaiá, não teime, etc

Quem a vê terna e mimosa,

Pequenina e redondinha

Não diz que conserva presa

Sua bela marrequinha.

Iaiá, não teime, etc

Nas margens da Caqueirada

Não há só bagre e tainha:

Aí foi que ela criou

Sua bela marrequinha.

Iaiá, não teime…

Tanto tempo sem saber…

Tão jururu… coitadinha!

Quase morre de sede

Sua bela marrequinha.

Iaiá, não teime,…

SERVIÇO

Foto: Paula Brito.

Aproveite o carnaval de isolamento para ler teatro – o formato e-book é um sucesso tão grande quanto um animado bloco de carnaval…

E ouça uma bela versão do Lundú da Marrequinha, na voz de Tereza Pineschi: