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Com o coração na gaveta

Você sabe onde guarda o seu coração? Numa gaveta sem fundo? Num cofre inexpugnável? Ou não sabe mais o que possa ser um coração, se perdeu em fisicalidades pulsantes vadias…? Ou prefere esquecer? É um direito seu. Mas há um outro coração do qual não se pode fugir.

Sim, saiba que o teatro tem coração. E quem é de verdade de teatro sabe muito bem disto. E sabe onde ele está. O coração do teatro é a sua memória de arte, o fluxo de emoções e sensações que ele vem arrastando através dos tempos, sem bússola ou pontos cardeais.

Sim, o teatro é sentimento sem rumo, amor sem dono, alma delirante nômade e vadia. Como é que o coração desta coisa palpitante, mas vaga, pode existir? Memórias do nada?

Este debate esquenta os encontros dos historiadores de teatro e, claro, empolga todo o ser que é verdadeiramente de teatro. A cidade grega amava a tragédia? Como posso saber se João Caetano era mesmo um monstro em cena? Como assim, Offenbach foi um torvelinho popular? Machado gostava mesmo de teatro e se passou para a literatura ou muito pelo contrário?

Ah, qualquer um percebe logo: o coração do teatro é um coração imenso, um fluir de sensações alheio a idiomas, fronteiras, geografias, ilusões de ser nacional. O teatro é a grande pátria da espécie humana. Tão extenso, tão amplo, só pode ser um enorme emaranhado de problemas. Um desafio vivo, e não uma solução.

Não foi sem razão que os primeiros filósofos e, logo, o primeiro Cristianismo, demonizaram a prática: viram bem que o teatro inventava um outro mundo para cada criatura viver, e este mundo novo, inventado, não era deste reino concreto, de pasmaceira  e mesquinharias tantas.

Platão deu um belo exemplo. Argumentou rápido, expondo o que devemos fazer – peguemos os artistas, louvemos a sua arte, ornemos as suas cabeças com coroas de louro bem perfumado e mandemos que sigam, sumam no horizonte.

A sociedade platônica, salva da arte, seria a sociedade do conceito, da razão, do pensamento. Depois, com a primeira igreja excomungando a cena, seria a sociedade da luta eficiente contra o pecado, com a transformação do corpo em serviçal da salvação. Nestas sociedades, a história das sensações não importaria, pois elas estariam suprimidas. Não restaria nem o teatro, nem o coração do teatro.

E os olhos ávidos, pulando por estas letras longínquas, hão de perguntar, mas e o Brasil nisto tudo? Sim, o Brasil causaria uma tremenda dor de cabeça em Platão e nos padres fundadores da igreja. Impossível saber se eles conseguiriam raciocinar algo ao redor dos surpreendentes dados nacionais.

Por tradição, muito embora se alegue que o país contou com um imperador que teria sido douto, o Estado no Brasil tem horror à arte e à cultura. Temos sido, desde a miséria escravocrata colonial, uma engenhoca devotada à produção econômica, atrelada a uma máquina de calcular os cobres acumulados. Todavia, desmerecer a arte não gerou aqui uma forma social de vida elevada. Sequer erradicamos o analfabetismo, nem mesmo garantimos água encanada decente.

Pateticamente, toda a produção que acontece sob o estigma da miséria humana – miséria por escassez de recursos materiais, mas sobretudo miséria cultural, moral e ética – não se torna fortuna humana. Ela gera ao seu redor um deserto existencial bruto, um território de aridez crescente, onde o ser humano pouco importa e o outro não conta.

Surge, daí, o Paradoxo Brasil. O país expulsa os artistas, liquida a arte, desmerece o teatro, porém tal  não acontece por causa da inteligência de reis filósofos ou pastores iluminados, mas sim graças à ação de governantes estúpidos. Não se busca elevar o povo ao ideal, mas sim submeter as gentes às trevas.

E, no entanto, a arte sobrevive. Ela é parte constitutiva da existência humana. É inútil tentar liquidá-la – Aristóteles, discípulo de Platão, levou adiante o pensamento, resgatou a arte e foi o primeiro grande pensador do teatro. A igreja medieval incorporou o teatro às lides da catequese. Apesar dos podres poderes obtusos nacionais, o impulso para a criação artística é intenso no Brasil e o teatro tem se espalhado pelo território como rastilho de pólvora.

O coração do teatro brasileiro, no entanto, anda combalido, com taquicardias e oscilações de ritmo perigosas. A memória do teatro brasileiro não tem merecido os cuidados essenciais para a sua sobrevivência e para a sobrevivência da arte.

Veja-se o caso do Rio de Janeiro: o Museu do Teatro, casa de excelência que fora abrigo, na origem, de acervo ligado ao Teatro Municipal, desapareceu. Além do núcleo original de documentos – inclusive riquíssimos figurinos da história da ópera no país – foi recolhido, sem que se saiba ao certo para onde, um patrimônio fantástico de documentos da história do teatro brasileiro. Fotos, programas de sala, recortes de jornais….

Outro centro de referência nacional para as artes cênicas, o CEDOC/FUNARTE, arquivo dotado de uma coleção preciosa de registros vários a respeito da arte, mereceria uma política continuada de apoio às suas atividades. É uma casa de excelência. O quadro de funcionários abnegados se esmera em cuidados, mas nada consegue neutralizar a falta de política cultural de Estado. O acervo do CEDOC reúne materiais fundamentais da vida cênica nacional, coisa para alimentar a sensibilidade cidadã durante largos anos. Merecia muita atenção.

Contudo, nem tudo está perdido. O nosso sofrimento cardíaco não é um caso avançado de colapso da vida. Alguns exemplos da iniciativa privada, materializados em instituições abertas à consulta pública, deveriam funcionar como referência. E permitem ilustrar claramente o que está em discussão.

O Instituto Moreira Salles acolheu o acervo do crítico Décio de Almeida Prado, entre outros valores da arte brasileira, e permite consulta online com extremo conforto. Dá para examinar documentos básicos da vida teatral do país, um estímulo para o pesquisador e para o cidadão. A coleção de fotografias, num convênio com a Biblioteca Nacional, é extasiante. Muitas músicas da história do teatro de revista estão lá bem acessíveis – podem ser ouvidas online.

O outro exemplo vem do sistema S – e importa fazer um parêntese, pois cabe sempre louvar a grandeza desta situação institucional tão peculiar,  entre o público e o privado. Nenhuma outra instituição brasileira alcança, na compreensão inteligente da força social da arte e da cultura, a sua eficiência.

Pois, para provar esta avaliação, surgiu esta semana a notícia de um fato áureo, como aquele ponto nobre que, por tradição, no quadro, estrutura a bela perspectiva. No dia 5 de abril próximo estará no ar uma mostra virtual dedicada à montagem de Antígona, de 2005, direção de Antunes Filho.

E assim ficamos sabendo que existe um centro de documentação ágil ligado ao Sesc-SP. Em 2006 foi criado o Sesc-Memórias, para reunir, sistematizar e disponibilizar a documentação do Sesc São Paulo, produzida ou preservada pelo órgão, para preservar o seu patrimônio histórico e instituir a sua memória institucional.

Logicamente, o imenso tesouro de documentos relativos ao CPT – Centro de Pesquisa Teatral do Sesc – integra as ações do Sesc Memórias. E haja oxigênio para tão estratégico coração. A nova coleção dedicada à Antígona vai se integrar a outras cinco já disponíveis online, páginas decisivas da história recente do palco brasileiro. Estão lá as coleções relativas às montagens A Pedra do Reino, A Hora e a Vez de Augusto Matraga, Xica da Silva, Fragmentos Troianos e Medéias.

As coleções reúnem materiais selecionados das encenações, com fotos em alta resolução capazes de permitir a visualização requintada dos objetos, a observação de detalhes. Além das fotos feitas para a mostra, foram incluídas fotos de cena assinadas por Nilton Silva, da apresentação na Espanha.

As imagens revelam a maestria do cenário concebido por J.C.Serroni, inspirado nos cemitérios verticais. A ideia surgiu da informação de que monumentos inteiros gregos foram levados para museus europeus, que teriam se tornado assim cemitérios de antigas civilizações. O cenário de Antígona representaria uma destas paredes expostas nos museus, com nichos e gavetas por onde entravam os personagens.

O CPT, criado por Antunes Filho para ser um centro de renovação do teatro brasileiro, foi um núcleo efervescente de atividades teatrais – da formação de atores e diretores à produção de dramaturgia. Portanto, uma usina devotada à inteligência cênica. Nas Coleções e Acervos Históricos CPT_SESC figuram seleções de figurinos e de vários outros itens das peças encenadas nos 38 anos de trajetória do centro.

A conclusão é obrigatória: alguns abrigos permitem vislumbrar o coração teatral brasileiro palpitando. Contudo, sem querer desprezar iniciativas exemplares como estas, há uma pergunta que não se pode deixar passar. Como será preservado este teatro múltiplo, pululante, imenso, produzido agora?

Há um turbilhão inacreditável de peças online neste nosso momento pandêmico. São obras intensas, de qualidade muito variada, todas marcadas por um compromisso abissal com a vida.

A memória deste momento tão decisivo, o coração deste teatro, onde ele se abrigará? Este nosso teatro novo de cada novo dia é o atestado da vida que temos. Precisamos, então, com urgência, pensar em cuidar deste nosso coração: que ele não desapareça, que não fique esquecido, nem se perca numa gaveta ordinária sem fundo qualquer.

SERVIÇO

Lançamento: 05/abril/2021

ANTÍGONA – Coleções e Acervos Históricos do CPT_SESC

[disponíveis na plataforma Sesc Digital]

Coleção digital de figurinos, objetos de cena e materiais gráficos do acervo do espetáculo Antígona, de 2005,  direção de Antunes Filho.

Sobre o CPT_SESC 

O Centro de Pesquisa Teatral foi criado em 1982 como laboratório permanente de criações teatrais, formação de atrizes, atores, dramaturgas e dramaturgos. Foi coordenado por Antunes Filho por 36 anos.

Durante a pandemia, sob distanciamento social, a programação do CPT_SESC acontece online.

A programação de atividades conta com cinco eixos temáticos: Formação de Atores; Criação e Experimentação; Dramaturgia; Cenografia; e Memória, Acervo e Pesquisa. A equipe reúne artistas e técnicos com diversas formações, atuantes em diferentes instâncias da produção teatral, para a realização de um trabalho interdisciplinar, conforme a proposta do CPT.

As Coleções e Acervos Históricos CPT_SESC:

apresentam seleções dos figurinos e outros itens de peças encenadas pelo CPT.

Através de um minucioso trabalho de pesquisa, houve a recomposição e restauro de 150 trajes cênicos num total de 470 itens, de 12 espetáculos: A hora e vez de Augusto Matraga, Antígona, Foi Carmen, Fragmentos Troianos, Gilgamesh, Medeia, Medeia 2, Nossa Cidade, Toda Nudez Será Castigada, Trono de Sangue, Pedra do Reino, Vereda da Salvação e Xica da Silva.

Os figurinos foram registrados pelo fotógrafo Bob Sousa e as fotos são o fio condutor das Coleções.